Educação Antirracista e Guerras Culturais: o embate entre inclusão e conservadorismo no Brasil

O campo educacional brasileiro tem sido um dos principais palcos das chamadas guerras culturais, fenômeno caracterizado por disputas simbólicas intensas que refletem embates mais amplos sobre os rumos da sociedade. Essas tensões, embora tenham origem em contextos internacionais, como os Estados Unidos na década de 1980, foram reatualizadas no Brasil a partir da ascensão de movimentos sociais progressistas e das reações conservadoras que se seguiram. A educação, neste contexto, torna-se um território estratégico de disputa, pois lida com a formação de valores, a produção de identidades e a construção de sentidos sobre o mundo.

Silva e Ortellado (2022) analisam esse fenômeno a partir de sua configuração nos Estados Unidos, quando movimentos sociais ligados às pautas de gênero, sexualidade, raça e contracultura passaram a confrontar abertamente valores tradicionais, desestabilizando um consenso moral fundado na heteronormatividade, na supremacia branca e no conservadorismo religioso. A partir desse momento, o termo “guerras culturais” passou a designar o embate entre dois projetos distintos de sociedade: de um lado, as forças progressistas que buscam reconhecimento e igualdade; de outro, setores conservadores que tentam preservar um status quo baseado na exclusão de determinados grupos sociais.

No Brasil, esse cenário foi adaptado às peculiaridades locais, encontrando eco nas tensões políticas e morais que se intensificaram especialmente na segunda década do século XXI. Temas como direitos LGBTQIA+, legalização do aborto, discussões sobre racismo, gênero e laicidade do Estado passaram a ser alvos de forte rejeição por parte de grupos conservadores organizados, muitos deles com forte base religiosa. A educação tornou-se, então, um dos principais alvos dessa reação, sob a justificativa de que as escolas estariam promovendo uma “doutrinação ideológica” sobre os estudantes.

Nesse contexto, o movimento Escola Sem Partido (ESP) surgiu como uma resposta conservadora organizada, propondo a adoção de uma suposta “neutralidade ideológica” no ambiente escolar. Embora se apresente como uma proposta em defesa da pluralidade de ideias, o ESP visa, na prática, restringir discussões sobre temas considerados sensíveis, como identidade de gênero, sexualidade, relações raciais e desigualdade social. O discurso da neutralidade torna-se, assim, um mecanismo de exclusão, pois pretende silenciar debates fundamentais à formação cidadã e democrática.

Segundo o pesquisador Pablo Ortellado (2022), as guerras culturais no Brasil se estruturam a partir de uma concepção moral transcendental, geralmente ancorada em valores religiosos e autoritários, que se opõe frontalmente à racionalidade crítica moderna, ao pluralismo e à diversidade. O projeto político por trás do ESP não é a neutralidade, mas sim a reafirmação de uma visão de mundo única, excludente, eurocentrada e conservadora. O movimento instrumentaliza a ideia de imparcialidade para limitar a liberdade pedagógica e impor uma concepção homogênea de sociedade.

É nesse cenário de confrontos morais e epistemológicos que a educação antirracista assume centralidade como forma de resistência. Longe de ser uma simples diretriz curricular, a educação antirracista constitui uma prática político-pedagógica voltada à desconstrução do racismo estrutural que perpassa as instituições brasileiras. Conforme afirma a intelectual Barbara Pinheiro (2023), o antirracismo não pode ser reduzido a uma categoria ocidental de combate ao preconceito, mas deve se enraizar em epistemologias afrocentradas que recuperam a agência, a dignidade e os modos de existência africanos e afro-diaspóricos.

Nesse sentido, a educação antirracista propõe um enfrentamento direto ao legado colonial que moldou o sistema educacional brasileiro. Durante séculos, os currículos escolares promoveram uma visão eurocentrada da história, da ciência e da cultura, apagando as contribuições dos povos africanos e afro-brasileiros. A promulgação da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, representou um avanço importante nesse processo de reparação histórica. No entanto, sua implementação enfrenta obstáculos significativos, como a resistência de gestores e professores, a ausência de formação continuada, e a influência crescente de movimentos como o ESP.

A oposição entre o projeto de uma educação antirracista e as propostas do ESP evidencia o caráter profundamente ideológico das guerras culturais. Giorgi et al. (2018) argumentam que o ESP, ao se apresentar como um movimento técnico e neutro, disfarça sua intenção real: preservar um currículo mínimo, padronizado e alheio às diversidades que compõem a sociedade brasileira. Em nome da suposta imparcialidade, o movimento contribui para perpetuar estruturas de exclusão racial e epistemológica, negando aos estudantes a oportunidade de reconhecer-se nas narrativas escolares.

Essa negação, no entanto, não é apenas simbólica — ela produz efeitos concretos. Ao invisibilizar a contribuição dos povos africanos e afro-brasileiros para a formação nacional, a escola contribui para a reprodução do racismo, para a baixa autoestima de estudantes negros e para a manutenção das desigualdades. A educação antirracista, ao contrário, tem como horizonte a construção de um currículo plural, crítico e comprometido com os direitos humanos. Ela reivindica o direito à memória, à identidade e ao reconhecimento, pilares fundamentais de uma sociedade democrática.

O movimento ESP, ao tentar suprimir essas vozes, atua como um instrumento de regressão, promovendo o esvaziamento político da educação. Seus discursos contra a “doutrinação ideológica” operam por meio da censura, do medo e da intimidação. Diversos relatos de perseguições a professores e tentativas de criminalização de práticas pedagógicas críticas têm sido registrados em todo o país. Essa ofensiva atinge, sobretudo, educadores que se comprometem com uma educação antirracista, decolonial e inclusiva, comprometida com a transformação social.

Neste contexto, a defesa da educação antirracista torna-se um imperativo ético. Não se trata apenas de cumprir uma lei ou de adotar conteúdos específicos, mas de transformar a lógica do currículo e da pedagogia. Trata-se de romper com a tradição excludente que por muito tempo ditou o que é ou não legítimo ensinar, quem pode falar e quem deve permanecer calado. A educação antirracista propõe uma virada epistemológica: deslocar o centro da produção do conhecimento para incluir vozes historicamente silenciadas e combater o racismo em suas múltiplas formas.

As guerras culturais, portanto, não são apenas disputas de ideias, mas batalhas por poder simbólico e político. A escola, enquanto espaço de formação de subjetividades, torna-se o alvo privilegiado dessas tensões. A falsa neutralidade proposta por movimentos como o ESP é, na verdade, uma tentativa de manutenção das hierarquias raciais, de gênero e de classe que estruturam a sociedade brasileira. Ao tentar despolitizar o ato educativo, o ESP retira da escola sua potência emancipadora e a submete a uma lógica autoritária.

Frente a esse cenário, é urgente reafirmar a escola como espaço de resistência, de liberdade e de produção de sentidos diversos. A educação antirracista é um projeto que visa não apenas ensinar conteúdos, mas formar sujeitos conscientes, críticos e capazes de transformar o mundo. Enfrentar as guerras culturais implica reconhecer que o conhecimento não é neutro, e que toda escolha curricular é também uma escolha política. Como dizia Paulo Freire, “a educação é um ato político”. Negar isso é negar a própria natureza do processo educativo.

Conclui-se, portanto, que o embate entre o movimento Escola Sem Partido e a educação antirracista revela muito mais do que divergências pedagógicas. Trata-se de uma luta entre projetos de sociedade: um que aposta na exclusão, no silenciamento e na padronização; e outro que se constrói na valorização das diferenças, no reconhecimento das múltiplas histórias e na construção coletiva de um futuro mais justo. A escolha entre esses caminhos é, antes de tudo, uma escolha ética. E a escola, como espaço de formação humana, não pode se furtar a esse debate.

REFERÊNCIAS:

Giorgi, A., Daher, A., Vargens, R., & Melo, V. (2018). Escola Sem Partido: Neocolonizando as Escolas Brasileiras. Revista Sul-Americana de Ciência Política, (7), 11-23.Silva, F. M., &

Ortellado, P. (2022). “Escola Sem Partido”: análise das redes no Twitter durante as eleições de 2018. Estudos em Comunicação, (33), 177-193. doi: 10.20287/ec.n33.v1a12

PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Como ser um educador antirracista [livro eletrônico]. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Seção 1, p. 1.

ORTELLADO, Pablo; SILVA, Diogo de Moraes. As disputas políticas no campo da cultura. Política & Cultura Review, Salvador, v. 15, n. 1, p. 1-21, jan./jun. 2022.