Sobre enegrecer a intelectualidade

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É preciso questionar as regras que me fizeram ser

reconhecida apenas aos 71 anos.

Conceição Evaristo

 

 

Questionar as disposições que afunilam e, por vezes, aniquilam a possibilidade de negras e negros ocuparem lugares sociais relacionados à produção intelectual, traz consigo a perspectiva de expurgar aspectos relativos à estrutura social colonialista, racista, machista e classista, sobre a qual ossificamos socialmente.

A ideia hegemônica de intelectual, tal como conhecemos, pode ser entendida como parte das formas de autoinscrição da mecânica típica dos modernismos ocidentais no mundo. Diferencia os afeitos à problematização reflexiva e ao debate público daqueles localizados no lugar da escuta e da audiência (passiva ou não). Embrionariamente, a representação do intelectual trata-se de um sujeito (o gênero masculino não é um descuido da redação) detentor e herdeiro de elementos da erudição necessária à proposição reflexiva de questões relevantes ao tempo no qual está inserido, tendo como armas discursivas, especialmente, a cultura escrita e o domínio das regras cultas dos modernos vernáculos nacionais – a pena, a oratória e a retórica fizeram e fazem sua fortuna.

A autoridade conferida ao domínio da erudição evidencia as fraturas racializadas que hierarquizam a humanidade entre grupos detentores da escrita, das línguas modernas, do conhecimento científico, etc. e, portanto, produtores de artefatos culturais eruditos e legítimos representantes do mais alto nível de “civilização”; e grupos condenados da terra (FANON, 2005), submersos assimetricamente à lógica colonial, tanto em sua fantasmagoria, como em carne viva.

Por certo, a despeito da crença que ainda persiste quanto às luzes da modernidade como uma promessa de iluminação simétrica do mundo, tal promessa trata-se de um projeto assimétrico, quer seja nos territórios organizados como despojos coloniais, quer internamente nos principais centros da produção cultural e material elevados a partir dos quatro últimos séculos, onde identifica-se amplas coletividades não detentoras, ou parcialmente possuidoras, dos artefatos do fazer-se ouvir moderno, tais como, a cultura escrita, o conhecimento erudito, o domínio da língua culta, etc. Entretanto, esta arquitetura não conseguiu interditar a inserção de novos sujeitos na arena política e cultural, trazendo novas questões ao concepto hegemônico e socialmente sancionado de intelectual.

Distante da questão posta sobre a autorização da subalternidade ter fala e/ou ser ouvida, entendemos que tais sujeitos, individual ou coletivamente, problematizam seu tempo e interferem no debate público, possibilitando que o pressuposto da atuação do intelectual seja interpelado pela rasura. Desconforme de uma localização hegemônica, nossa compreensão da necessária adjetivação do termo intelectual está ancorada em um tipo particular de experiência, que neste caso é a fragmentação da realidade social a partir de critérios raciais. Ainda precisamos potentes decibéis para ecoar que intelectuais negras e negros existem. O relevo dado ao adjetivo trata-se de um posicionamento político atual e estratégico, tendo como fim a não necessidade de adjetivar sujeitos pelos fenótipos. Sem perder de vista que este caminho não ocorre somente nos locais e por meio de estratégias de rompimento da interpretação dominante de intelectual.

Dos objetos e lugares projetados para as modernidades coloniais, muito embora nunca mortos, submergem novas inscrições no mundo que buscam dizer – estamos vivos, não sucumbimos à espoliação material e simbólica, a despeito do empreendimento de silenciamento histórico e de desfiguração e demonização cultural e religiosa.

Wilson das Neves, certa vez, falando sobre o instrumento que o consagrou, disse que a bateria teria supostamente sido criada para que os americanos (sic) tocassem as coisas deles. Contudo, ele conta que acabou utilizando tal instrumento em gêneros e sonoridades que eram de seu interesse e que o representavam, adaptando para tocar samba e “outras bossas” estranhas ao projeto original. Peças são retiradas, trocadas, tomam outros lugares, novos tons e compassos são introduzidos, a batera passa a conviver com cuíca, tamborim, ganzá e tal, corrompendo com a pretensão universal da monosonoridade. Este trabalho de reconfigurar os artefatos criados em outros contextos para o deleite de outros sujeitos aparenta ser uma das formas de atuação de intelectuais diaspóricos.

Diante de inúmeras dinâmicas que se entrecruzam, enegrecer a agência intelectual trata-se de buscar desconstruir tempos, espaços e narrativas hegemônicas, dando vivacidade e positividade à experiencia histórica negra, construindo visibilidades e reconhecimento diante do conhecimento construído pelos negros, movimento realizado através de intelectuais acadêmicos e de outros espaços, como as artes e os movimentos sociais. Tal percurso intelectualizado, acadêmico ou não, engloba a luta política antirracista cotidiana, bem como a ocupação e reconfiguração de espaços de poder.

Somente nas últimas décadas e pela ação de agentes diversos, inflexões insurgentes à leitura culturalmente sancionada que compõem hegemonicamente o que é ser intelectual por meio da convergência de aspectos que incluem raça, gênero e classe, vem sendo constituída, não sem tensões. As tensões provocadas causam deslocamentos quando dizemos de intelectuais africanos e afrodiaspóricos, na medida em que a possibilidade de construir conhecimentos legítimos era possível apenas ao sujeito pretensamente abstrato e universal forjado no interior da perspectiva da branquitude, sua imagem e semelhança. A partir de um discurso binário, constituía-se uma monocultura da história que silenciava a humanidade não inscrita nos mitos de origem da ocidentalização.

Quando inserimos a inscrição da negritude na intelectualidade, o que vem sendo construído por intelectuais negras e negros (Gomes, 2010; Santos, 2008; hooks, 1995; Alberto, 2017), ocorre uma transgressão de um padrão hegemônico em que corpos negros são interditados. Não desconsiderando a representatividade, o giro em questão ultrapassa a mesma, ao colocar possibilidades de curto-circuito ao regime de produção de conhecimento pautado em uma suposta isenção científica.

Enegrecer a intelectualidade significa interferir contundentemente numa política de produção da animalização, incapacidade, inferiorização, exotização, esteriotipização. Não é de hoje que tal política, de forma organizada ou não, faz-se em curso entre nós e, muito embora, estruturada discursivamente, orienta ações práticas, objetivas e reais.

Desconstruindo discursos binários, questionando hierarquias e privilégios, em diálogo com o povo preto e o cotidiano deste, a reconfiguração da atuação torna-se uma possibilidade para a intelectualidade negra que, em diversos momentos, aciona a dinâmica da oralidade em suas práticas discursivas, sejam elas organizadas pelo protocolos científicos ou não, de forma a propor um diálogo em amplo diapasão. Lançar mão de tais estratégias não representa o desconhecimento dos protocolos do lugar nos quais eventualmente estão inseridxs, mas sim, uma contestação de tais normas, e especialmente a manifestação de um compromisso com seus pares de forma ampliada.

Podemos dizer ainda que a subversão dos espaços acadêmicos ocorre a partir de uma relação próxima ao que Wilson das Neves diz da sua batera. Estar dentro e questionar a tradicionalidade acadêmica passa por dominar seu campo de produção de conhecimento, e a partir daí, a subversão que se manifesta no compromisso com os seus e pela compreensão de que a produção do conhecimento socialmente relevante, tanto simbólica, como materialmente, não ocorre pela via de mão única da instrumentalidade  científica, mas, sim, por meio da circularidade e retroalimentação da pluralidade de conhecimentos radicalmente imbricados – científicos, populares, ancestrais, práticos, sensíveis, etc., afinal no princípio era a roda. Cada um defronte ao outro, compartilhando o mesmo céu. E a roda continua a girar.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALBERTO, Paulina L. Termos de inclusão: intelectuais negros brasileiros no século XX. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2017.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005. 374p.

GOMES, Nilma Lino. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In: SANTOS, Boaventura de Sousa  (Org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p.492-516.

hooks, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas. Ano 3, 2/1995. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16465/15035 Acesso em: 12 mai. 2017.

SANTOS, Sales Augusto dos. De militantes negros a negros intelectuais. VI Congresso Português De Sociologia. Lisboa, 2008. Disponível em: http://flacso.org.br/files/2015/11/De-militantes-negros-a-negros-intelectuais-71.pdf Acesso em: 05 jul. 2016.

 

 

 


Créditos na imagem: ESCREVIVENCIAS NEGRAS – arte em colagem de @arte.de.maria. Conheça o trabalho pelo site Arte de Maria.

 

 

 

SOBRE OS AUTORES

Isis Silva Roza

Isis Silva Roza é professora no curso de Serviço Social da UFOP e doutoranda em Educação na UFMG. Suas principais temáticas de pesquisa são: Intelectuais negrxs e NEABs, relações étnico-raciais e prática profissional em Serviço Social.

Luciano Roza

Luciano Roza é professor no DEHIS/UFOP e no PPGHIS/UFOP. Tem discutido temáticas como Ensino de História, Materiais Didáticos, História afro-brasileira e História e Música Popular.

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