A arte e a produção de temporalidades

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Claudio Ulpiano se aventurou repetidas vezes junto ao entendimento da temporalidade, dialogando e indo além da filosofia de Gilles Deleuze. Pares de Ulpiano também são, entre outros, os epicuristas, Spinoza e Nietzsche. O filósofo brasileiro possuía grande bagagem cultural, sendo conhecedor de cinema e de literatura, de dentro e de fora do cânone. Interessante para nós serão, neste ensaio, as aproximações que são efetuadas entre o cinema de Luchino Visconti e a literatura de Marcel Prost, porque desse encontro seremos capazes de compreender a noção de imagem-tempo, que seria uma maneira de se perguntar pelo ser do tempo, ou seja, pela essência das temporalidades.

Quando se fala na conquista do tempo, expressão recorrente nas aulas de Ulpiano, se quer dizer a assimilação das temporalidades, a apreensão do tempo, experiência as historicidades. Em todo caso, o tempo seria acessível aos seres humanos, conforme pensava o filósofo, por meio das suas dimensões, das suas extensões, das suas proporções. Algo que é passível de ser entendido no nosso cotidiano: existe passado, existe presente e existe futuro. Essas instâncias são dimensões do tempo. Mas esse processo de conquista do tempo, de apreensão da realidade temporal, é capaz de produzir, pois, novas dimensões do tempo. É o processo pelo qual a arte invade as temporalidades e as decodifica.

O tempo aceitaria, dessa maneira, processos, produções, intervenções, criações. O filósofo brasileiro usa a imagem do caos para a fala dele, porém o que a arte produz, em sua leitura, é algo próximo da eternidade. E esse processo de conquista da eternidade é gerador de tempos. Para o entendimento dessa matéria se faz necessário, antes de mais, compreender duas noções filosóficas importantes, quais sejam, essência e acidente. A primeira deriva daquilo que pertence ao ser, enquanto que o acidente é o desdobramento que poderia, ou não, ocorrer daquele. A vida humana é, nesse sentido, acidentada.

Mas o que Visconti faz é buscar o ser do tempo. Mas antes de avançarmos sobre esse entendimento, acompanhando a didática de Ulpiano, precisamos diferir imagem-tempo de imagem-movimento. Não é muito difícil: a imagem-movimento é a sua passagem artificialmente mediada por algum vetor cultural – ao menos no modo mais tradicional de articulação de narrativas e de temporalidade. De uma maneira ou de outra, o que a imagem-movimento faz é compreender os acidentes. A imagem-tempo é, por outro lado, a sua essência. Ela é passível de se apreendida pelo artista, na medida em que ele se lança na eternidade, para um âmbito que não tem início e nem fim – próprio do ser.

O encontro com a eternidade é o encontro com o caos – aqui está a sua matéria, a sua ontologia. Do encontro do artista com a esse universo emergem as temporalidades.  O sentido de tempo criado pelo artista não é, em todo caso, de utilidade prática. O tempo seria, para Visconti por exemplo, uma dimensão que se manifesta, que é feita emergir. E o cineasta produzirá, na leitura de Ulpiano, uma dimensão que é própria do ser do tempo, qual seja, o tempo tarde-demais. O tarde-demais é aquele tempo da inexorabilidade da sua passagem. Não há retorno. Essa ideia atravessa o cinema de Visconti, e teria a ver com, por exemplo, o nunca mais do famoso poema O corvo, de Edgar Alan Poe. Vejamos:

 

O corvo

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura

Com o solene decoro de seus ares rituais.

“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,

 Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!

Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.” Disse o corvo, “Nunca mais”

 

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,

Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.

Mas deve ser concedido que ninguém terá havido

Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,

Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome “Nunca mais”.

 

Ulpiano se abrirá ao diálogo com Deleuze. Uma noção se acoplará ao tarde-demais: revelação. Existiria uma prática humana, conforme explica o professor, que seria extraordinária, qual seja, a do revelar. Em determinados momentos da vida existiriam esses momentos de revelação. Um amor, uma tristeza, uma sensação. Isso seria marcado por um olhar, por um gesto, por uma palavra. Nesse sentido, a revelação estaria na base desse tarde-demais. É algo do instante – há a revelação, mas já seria tarde demais. Aqui estaríamos diante da emergência das temporalidades. Não há um tom pessimista na ação nem otimista também. A arte, recuperando um sentido nietzschiano, seria trágica.

Então, Claudio Ulpiano se vale da leitura de Deleuze sobre Visconti, mais especificamente do seu filme O Leopardo. Deve ser dito que ele não apenas vertia a filosofia deleuziana quando movimentada para produtos culturais transversalmente, mas ele mesmo era conhecedor desses produtos, quer dizer, artes plásticas, cinema, literatura. É recobrado o momento em que os personagens de Cláudia Cardinale e de Burt Lancastar estão dançando. Temos, nessa cena especificamente, um príncipe e a filha de um burguês rico. De todo modo, ela se casa com o sobrinho do príncipe. Mas naquela dança há a criação do instante do “tarde demais” quando ela se entrega a Dom Fabricio Salina. Há uma flexão epifânica no momento, em que o próprio sobrinho, Tancredi Falconeri, assiste a cena de amor, porém, era “tarde demais” para o tio e para Angelica Sedara. Visconti seria, dessa maneira, um artista do tempo porque ele criou a dimensão do “tarde demais”.

Partimos para outro filme de Visconti, qual seja, A morte em Veneza. Na película tarde demais e revelação aparecem se informando mutuamente. O enredo do filme se dá em torno da história de Gustav von Aschenbach, um renomado escritor alemão que passa por um período de bloqueio criativo. Em todo caso, Ulpiano seleciona uma cena específica para discorrer sobre a matéria, que seria o espanto que o escritor teve com a beleza do jovem Tatzio. A persona de Aschenbach é toda estruturada na racionalidade, na elaboração intelectiva, não dando muita importância ao mundo sensível do seu entorno. Sua atividade é absolutamente cerebral. O filme nos é apresentado pelos olhos do escritor, dado que Visconti, assim como fez Pasolini, se vale do recurso da subjetiva indireta livre. Na cena em questão, que se dá em um hotel, há toda uma preparação estética, em que se percebe o encontro do ótico com o sonoro, o que Ulpiano nomeia como transbordância da imagem visual. A revelação manifesta na película é a de espanto do escritor com a beleza do rapaz, sendo ela projetada para aquilo que faltara a sua arte da escrita, isto é, a beleza sensual. Aschenbach nunca mobilizara esse recurso, essa dimensão de esteticidade, em seus escritos. Essa é a revelação, mas já era “tarde demais”.

A revelação oferece, nesse sentido, as condições de possibilidade para a criação da imagem-tempo, que seria um âmbito essencial da temporalidade. Tarde demais pertence, então, ao tempo, como o passado, o presente e o futuro. Algo interessante é postulado por Claudio Ulpiano: “Se você quiser operar com o tempo saiba que isso vai acontecer: os paradoxos do tempo, as dialéticas do tempo” (ULPIANO, 1993).

Mas ainda é possível explorar a cena de arrebatamento de Aschenbach face a beleza Tatzio. O garoto seria algo como uma exuberância natural, algo que não estava ao alcance da racionalidade intelectiva do escritor. E algo desconcertante é que, como aponta o professor brasileiro, aquilo o enlouquece. A força da natureza se revela; ela abre dimensões no tempo, rompe com o tecido da temporalidade acessando a essencialidade. Essa abertura, uma espécie de abertura de portais temporais, é possível pela arte, e Visconti, na percepção de Ulpiano, faz isso muito bem. Ulpiano faz, nesse momento, uma citação de Deleuze na integra, o que mostra o professor pensamento juntamente com ele:

 

A obra de arte é feita de uma queixa, como com as dores e os sofrimentos de que tiramos uma estátua. O tarde demais condiciona a obra de arte e condiciona seu êxito, já que a unidade sensível e sensual da natureza com o homem é por excelência a essência da obra de arte.

 

Aqui estamos ante a essência da arte, que significa a sua identidade, as suas características, algo bastante diverso de uma metafísica vulgar. A arte, na perspectiva deleuze-claudiana, é o encontro com o singular natural. A revelação é quando se acessa o ser das obras de arte, que tem como intenção revelar, concomitantemente, dimensões da temporalidade. Se é possível, nesse movimento, experimentar a dimensionalidade temporal. Chega-se, então, àquilo que tratávamos lá no início: a imagem-tempo. O artista busca se agenciar com dimensionalidades do tempo que são possíveis por meio da arte. É, então, a criação de algo que foge ao senso de utilidade. Geralmente, até mesmo pela formação de tipo ocidental, as pessoas tem diante de si um quadro de significações, sendo a vida ordinária o entendimento e, também, a recriação desses significados sociais, que se apresentam como as matérias perceptivas ao tempo histórico. Como aponta Ulpiano: “Porque você é educado para entrar nas significações dessa matéria perceptiva. Você entra nelas” (ULPIANO, 1993). A diferença do artista é que ele não se movimenta nessa direção, transcendo, assim, o status quo. Ele se arisca em matérias vazias, sem significação, o que faz surgir, o que faz emergir, novas temporalidades, bem como imprime no ser humano o verdadeiro poder de pensamento.

Ulpiano considerada esse gesto um movimento de pensamento, pois busca o vazio e força o pensamento para além da representação, para além das significações, informando o campo social. Uma experiência, no limite, que se aproxima da loucura e da morte. O artista pode criar no e a partir do nada, sendo que nesse campo se pode acionar temporalidades ainda não conhecidas ou encobertar. É uma experiência original, sendo, então, o processo de construção de novas dimensionalidades temporais. “Ele entra nessas dimensões do tempo, rompendo com as significações clássicas, com as percepções ordinárias, com o modelo de campo social de um determinado tempo histórico” (ULPIANO, 1993).

Por sugestão de Deleuze, Claudio Ulpiano, na aula aqui trabalhada, aproxima Visconti de Proust no intuito de compreender o tempo reencontrado, um desdobramento do tempo “tarde demais”. A ideia dos autores é que Visconti traduzira, em linguagem cinematográfica, as preocupações estéticas de Proust com a temporalidade. Ulpiano se vale, então, de uma frase do literato francês para continuar a sua investigação sobre o sentido da arte e como ela flexiona novas temporalidade e, mesmo, o pensamento: “Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem, de seu universo que não é nosso”. Aqui estaria a síntese dos seus esforços de letramento em filosofia, em que se pretendeu mostrar como Visconde é tocado pela revelação, pelo “tarde demais”. Pela produção artística há, acompanhando a leitura que o filósofo brasileiro faz de Proust, uma multiplicação de mundos possíveis, que seria sinônimo da multiplicação do tempo histórico. Sem a arte as pessoas estariam, pois, vinculadas ao um mundo só.

A arte é, na perspectiva aqui em discussão, desalienadora, pois retira os sujeitos do mundo único, do mundo tomado de modo unidimensional. A arte retira as pessoas desse estado, das práticas sociais condicionadoras, as lançando a mundos possíveis, que existem em quanto possibilidade, o que faz deles reais. Ulpiano diz que a arte produz “sistemas individuados”, o que implicaria a possibilidade de viver em múltiplos mundos. A obra de arte produz sensibilidade, ou melhor, produz modificações nas sensibilidades disponíveis. Altera-se, e Claudio Ulpiano vai de Modigliani à psicodelia, as formas possíveis de percepção. A arte altera a percepção. Ulpiano deixa clara a sua posição quanto à obra de arte: “Então, é bobagem pensar-se que a arte é apenas para tomar o chá das cinco… Não é nada disso! A arte produz mundos. A arte é uma coisa seríssima – produz mundos!” (ULPIANO, 1993). Pode-se dizer que há, em todo caso, até mesmo uma mensagem política contida nessa ideia, porque a vida sem arte implicaria na sujeição aos modos ordinários, às práticas sociais majoritárias. O ser humano deve buscar as formas de liberdade – o mundo das multi-existências que a arte propicia. Segundo o professor brasileiro, sem a arte as pessoas estariam sufocadas, estariam, de uma forma ou de outra, submetidas a um único ideário. A arte tem aquela função reveladora. Ela não deve ser entendida de maneira utilitária, porque ela não traz nada, sendo puro experimentalismo. E Ulpiano recupera, então, um pensamento de Rilke: a arte enquanto revelação das experiências. Experiência no sentido de experimentação: você, com a arte, atravessa temporalidades, visita espaços, cria experiências. A pessoa é levada a disposições de temporalidade inatuais, se vive em dimensões do tempo impensadas. Tudo isso pela arte.

A leitura de um livro, de um poema, de um quadro. Todos esses gestos são de experimentação. Mas são sentidos que nunca emergiram. São mundos possíveis, temporalidades que tornaram um “sistema individuado” por que o artista agiu nesse âmbito. A discussão agora é, de qualquer maneira, com Bergson: o passado é em si, o sentido é em si, a ideia é em si. Mas é o pensar que se movimenta e tira aquilo do estado de ontologia puro, gerando algo que se mostra fundamental à vida. Foi em Fernando Pessoa, através do seu poema o Guardador de rebanhos, que Ulpiano promoveu a sua didática, no sentido de mostrar a seus alunos como a arte cria mundos (im)possíveis:

 

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás…

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo

Estamos, então, ante àquele movimento que Ulpiano chamou de conquista do tempo, mas que podemos compreender como experiência do tempo, ou como assimilação do tempo. Esse gesto produz, em sua leitura, subjetividade. Mais: ela produziria uma subjetividade até então inexistente. A libertação do tempo do movimento está associada à produção de subjetividades, que seria o mesmo que a produção da liberdade, ou da própria vida. É um processo libertador, de desalienação. É um diálogo que se estabelece com Espinoza. A arte produz vida, produz liberdade. É a maneira de habitar outros mundos, de experimentar novas percepções e extravasamentos pluriversalizadores da existência, que passa a ser cingida pelas multiplicidades. A vida se pluraliza com a arte. É a criação de temporalidades, o que leva, consequentemente, a novas formas de subjetividade. Porque na arte se experimenta mundos em estado de ficção, mas com desdobramentos reais. Por isso é um movimento de experiência. Aqui tem algo de Foucault com a sua estética da existência, quer dizer, produzir a sua própria vida como arte. Mas é uma existência, quando percebida pelo modo estético, trágica. A discussão é com Nietzsche. Ulpiano acha que a vida é dura, sendo a arte um meio não apenas de suportá-la. A imagem nietzschiana do “viking” diz muito: endurecer o coração, não ceder. E seria justamente daí que resultaria a sua beleza. A vida é trágica, a vida é tomada pela finitude, a vida bate. Daí Claudio Ulpiano dizer: “(…) a finitude está aí, vai bater mesmo, nós temos que efetuar uma prática qualquer de potencialização! Pode ser pela ciência, pela arte, pela filosofia” (ULPIANO, 1993).

 

 

 

 


REFERÊNCIAS

ULPIANO, Claudio. O “tarde demais” como dimensão do tempo (Aula transcrita). Disponível em: encurtador.com.br/dtv01 Acesso: 17 de fev. 2023.

 

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Segurando o tempo, de Isa Whitaker. Behance – Isa Whitaker.

 

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

SOBRE O AUTOR

Piero Detoni

Historiador, professor e psicanalista. Graduado e mestre em História pela UFOP, doutor em História Social pela USP e pós-doutor em História pela UNICAMP. Realiza pesquisa de pós-doutoramento na UFRRJ com bolsa Faperj Nota 10. Em sua tese de doutorado, abordou a experiência historiográfica no IHGB na Primeira República. Estuda, atualmente, a recepção da filosofia de Friedrich Nietzsche no Brasil. Tem interesse nos seguintes temas: Teoria da História, História da Historiografia, História Intelectual, História da Leitura e da Recepção, Ensino de História, além de História do Brasil Republicano e História Moderna e Contemporânea.

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