Novo Museu da Liberação de Paris: crônica de uma visita

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Em um domingo movimentado, no fim das férias de verão, um sol ameno iluminava as bandeiras tricolores suspensas sobre a Avenida General Leclerc, no 14° distrito de Paris. Eram remanescentes das festividades do domingo anterior, 25 de agosto de 2019, quando foram comemorados os 75 anos da Liberação de Paris da Ocupação nazista durante a Segunda Guerra. A prefeitura da cidade (re)inaugurou na ocasião o novo « Museu da Liberação de Paris – Museu do General Leclerc – Museu Jean Moulin », situado na praça Denfert-Rochereau, carrefour de tempos e histórias, entre as quais a mais significativa para a presença do(s) museu(s) é o abrigo subterrâneo do Posto de Comando (PC) do Coronel Rol-Tanguy (1908-2002), chefe das Forças Francesas do Interior, para a insurreição parisiense.

Já na saída da estação Denfert-Rochereau, aliás, encontra-se uma placa com a indicação dos eventos passados e os nomes dos trabalhadores do metropolitano « vítimas da crueldade nazista » – o chão, abaixo da placa, coberto de ramalhetes. Nos poucos metros de caminhada até a entrada do museu, passei pela fila de turistas para visitação das « Catacumbas » de Paris e pude avistar à direita a magnânima escultura em bronze do « Lion de Belfort », homenagem à resistência da cidade de Belfort, mas durante a guerra franco-prussiana (1870). À esquerda, a Avenida General Leclerc, das bandeirolas, pela qual entrou (antes Avenida de Orléans) a 2a Divisão Blindada (DB), em direção à estação Paris-Montparnasse. Em Montparnasse se encontrava, por sua vez, o PC de Phillipe Leclerc de Hauteclocque (1902-1947), onde fora rendido o « governador militar » alemão da capital durante a Ocupação (1940-1944).

Em 1994, por ocasião dos seus 50 anos, fora criado, na estação Montparnasse, o primeiro « Museu da Liberação – General Leclerc – Jean Moulin », depois considerado de difícil acesso e mal sinalizado. A ideia de um novo museu, mais preocupado, à medida que desapareciam os atores e testemunhos do passado, em alcançar as linguagens das novas gerações, começou a sair do papel em 2015. Foram quatro anos de trabalhos, não apenas de transferência dos acervos, mas também de reabilitação da edificação que os abrigam : um dos pavilhões (o outro é entrada das « Catacumbas ») da antiga barreira d’Enfer – para tributação de mercadores na entrada da cidade –, construídos em 1787 por Claude-Nicolas Ledoux (1736-1806), e desde 1907, classificados patrimônio histórico.

O projeto científico e cultural, compreendendo uma totalmente nova cenografia, ficou a cargo da diretora do museu, Sylvie Zaidman, com apoio das equipes estabelecimento público « Paris Musées », que agrupa os museus municipais. Sua concepção, segundo o texto da diretora no « Guia da coleção » (assinado por Fabrice Grenard e Yan Simon), diferia da anterior e original, antes centrada no percurso do líder resistente Jean Moulin (1899-1943). Este, visto como elo de ligação entre a resistência interna (na França Metropolitana), e a externa (representada no museu pela trajetória militar do general Leclerc), comandada esta última por Charles de Gaulle (1890-1970), à frente da « France Libre », depois do « Conselho Nacional da Resistência », desde a Inglaterra.

Jean Moulin era civil, socialista e alto funcionário da República, prefeito do departamento de Eure-et-Loir em Chartres, onde tentou se suicidar em vez de colaborar, e de cujo cargo foi destituído pelo regime colaboracionista de Vichy (1940-1944). A partir de então, passou a reunir os movimentos resistentes desde o interior do país até, não sem conflitos internos, criar, em 1943, o CNR, sob a liderança do General de Gaulle. Jean Moulin seria preso pelos nazistas logo depois e, a caminho da Alemanha, não resistiria às torturas sofridas.

A trajetória do general Leclerc, por sua vez, prefigurava no museu as ações da resistência externa, desde seu alinhamento à « France Libre » em 1940 e as primeiras missões nas colônias francesas na África, até tomar a frente da 2a. DB e desembarcar na Normandia para a liberação de Paris em agosto e, ainda, de Strasbourg, em novembro de 1944. O general ainda desembarcaria na Indochina em 1945, com objetivo inicial de restabelecer a possessão francesa no território do Extremo-Oriente, antes de morrer em acidente de avião na Argélia em 1947. Em 1952, foi elevado postumamente ao título de Marechal da França.

A própria cidade e os resistentes populares, civis, « anônimos », com suas barricadas, encarnam o « terceiro personagem » do museu « da Liberação », que não ignora as particularidades de uma situação de clandestinidade e igualmente o colaboracionismo em alguns casos expostos.

Para a nova disposição dos cerca de 300 materiais do museu (entre objetos, vestimentas, cartas, testemunhos cartazes, fotografias e filmes), divididos em 12 salas temáticas (mais o subterrâneo), optou-se por um único percurso narrativo, aliás essencialmente cronológico, mas que procura ultrapassar o evento em si, inserido este no contexto anterior, do entre-guerras e posterior. A trajetória dos personagens centrais serve para retraçar a história da Ocupação ; sobre os eixos das trajetórias individuais, de dois homens que, como Zaidman lembra, jamais se conheceram, dois eixos paralelos, portanto, é que as histórias da Ocupação – da resistência e da colaboração – e da Liberação de Paris são contadas.

Um dos aspectos mais interessantes do percurso visitado foi a estratégia narrativa de evidenciar para o público tais sujeitos diante do momento de suas escolhas mais fundamentais. Escolhas dramáticas, posto que, naquelas condições, sem possibilidade de meio-termo ou de volta atrás. Interessante, no plano histórico, por desfatalizar e revitalizar uma história para muitos já conhecida de perto. No plano individual, e sobretudo para os visitantes mais jovens, pela aguda transmissão de que estamos implicados na história, que a qualquer momento pode nos solicitar ou mesmo exigir a tomada de posições, estas, por sua vez, plenas de efeitos, opressivos ou libertadores, e jamais inconsequentes.

Conhecê-lo melhor, esse passado traumático, e particularmente através de uma imersão assim pungente, pode servir, então, para nos interrogarmos sobre nossa implicação, de indivíduos hoje tão isolados e imersos em um tempo tão fugaz quanto repetitivo, nos movimentos da história, os grandes e os localizados. Vale ainda assinalar os esforços em dar ao público uma pluralidade de histórias e de posicionamentos e as ambiguidades da resistência, próprias de uma situação de ilegalidade. Isso, por um lado, ajuda a evitar uma abordagem abusiva da mitologia da resistência ; por outro, deixa claro que no mesmo momento de sua formação e dos acontecimentos mais importantes, eram projetados, no tabuleiro político, os próximos lances que determinariam a história subsequente. Nada inocente, portanto. Inclusive, na última sala, é lançada a questão dos revanchismos e das vinganças cometidas na sequência da Liberação, sobretudo para com mulheres consideradas colaboracionistas.

Quando da visita, as filas eram grandes – o acesso aos museus municipais são gratuitos –, e para conhecer o abrigo subterrâneo, foi preciso enfrentar muita concorrência. Havia uma surpreendente diversidade de pessoas reunidas, jovens, crianças, idosos – esses últimos impressionavam pelo grau de envolvimento corporal com os detalhes do percurso – e estrangeiros, como eu, a sugerir que a memória desse evento, embora algo particular, como parte do « paradigma » memorial do holocausto, tem atravessado gerações e fronteiras. Ainda que se possa questionar a imposição de um « dever de memória », como o faz o historiador Henry Rousso ao se perguntar até quando a Europa suportará uma « memória negativa », e se as novas gerações irão se encarregar desse fardo, a sua transmissão, sobretudo da forma viva com que é recontada, contribui para a reflexão sobre, ainda, a questão universal dos direitos humanos, sua vigilância e salvaguarda.

De volta às ruas, as pessoas enchiam os cafés na esquina da rua Daguerre, aquele sol insistia mais um pouco, e desfazia o air sombre do insuportável, que, afinal, me arrastou à escrita dessa breve experiência.

 

 

 

 

 

 


Créditos nas imagens: Acervo pessoal do autor.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Raphael Guilherme de Carvalho

Realiza estágio de pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros e Institut d'Historie du Temps Présent, com apoio da Fapesp.

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