MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (org). História Pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, 348 p.
Embora ainda pairem muitas dúvidas e imprecisões teóricas e conceituais, as reflexões sobre “história pública” têm sido crescentes no Brasil nesta segunda década do século XXI, o que pode ser atestado pela pertinente coletânea História Pública no Brasil, organizada pelos historiadores Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago e publicada em 2016. O livro é apresentado como resultado dos esforços empregados por um conjunto de historiadores após o curso Introdução à História Pública, de 2011 e após a criação da “Rede Brasileira de História Pública”,[1] em 2012, e certamente expressa os rumos que têm sido tomados por diversos e renomados historiadores/as no referente à “História pública”.
O interesse, a intenção e o esforço dos pesquisadores em refletirem, entenderem e/ou praticarem a “história pública” acabam configurando, nos vinte e quatro textos que compõem a obra, reflexões que, ora mais, ora menos, expressam caminhos para compreensões teóricas e metodológicas. O que se percebe, de fato, são as multiplicidades explicativas para o sentido de “história pública”, que poder-se-ia configurar ou enquanto uma prática, ou uma área, ou uma abordagem, ou um campo, ou uma escrita, ou uma perspectiva ou uma dimensão histórica. Nesse sentido, cabe mencionar a constatação feita pelo historiador Jurandir Malerba (2017, p. 141), que considera a “zona cinzenta em torno do conceito de história pública” – que também pode ser atestado ao final da leitura de todos os artigos que compõem o livro aqui resenhado, sem, é claro, diminuir o mérito e a qualidade de cada pesquisa – mas arrisca a explicá-la a partir da expansão das mídias: a história seria pública pela ampliação da produção, “que saiu da tutela acadêmica”; e seria pública pela “dimensão da audiência que é capaz de atingir”. O historiador Roger Chartier, ao se referir à França contemporânea, também destacou o importante papel das mídias na comunicação do saber acadêmico com um público mais amplo, mas lamentou a tendência ao desaparecimento da comunicação do “saber”: “o importante era que existisse uma relação entre esse saber e uma comunicação mais ampla” (SALOMON; CAMPOS 2016, p. 316).
O fato é que a discussão sobre “história pública” já acompanha as discussões historiográficas há algum tempo. Malerba (2017, p. 141), destacou que a “história pública” surgiu no contexto da amplificação dos públicos com as mídias digitais contemporâneas: “não como exclusivamente “audiências”, consumidores de história, mas, em alguma medida, como (…) público gerador de história”.
A obra organizada por Mauad, Rabêlo e Santhiago, que traz como subtítulo “sentidos e itinerários”, apresenta introdução dos organizadores, posfácio de José Newton Coelhos Meneses e está dividida em seis partes: “questões gerais” (textos de Ricardo Santhiago, Renata Schittino, Juniele Rabêlo de Almeida, Michael Frisch, Linda Shopes), “universo da criação” (textos de Ana Maria Mauad, Mônica Almeida Kornis, Miriam Hermeto), “as comunicações” (textos de Marialva Barbosa, Rodrigo de Almeida Ferreira, Anita Lucchesi e Bruno Leal de Carvalho, David King Dunaway), “Educação e Ensino de História” (textos de Everardo Paiva de Andrade e Nívea Andrade, Thais Nívia de Lima e Fonseca, Fernando de Araújo Penna e Renata da Conceição Aquino da Silva, Sonia Wanderley), “políticas culturais” (textos de Hebe Mattos e Martha Abreu, Marta Rovai, Lia Calabre) e “Debates no espaço público: construindo histórias” (textos de Beatriz Kushnir, Benito Bisso Schmidt, Jorge Ferreira, Adriane Vidal Costa, Daphne Patai), o que demonstra a profusão das dimensões temáticas e alguns de seus itinerários possíveis que dão conta de construírem sentidos para a “História Pública”. Os artigos e ensaios são escritos por inúmeros pesquisadores com ampla experiência de ensino e pesquisa, fundamentalmente doutores em História, mas também em Educação.
A tônica parece se situar em como considerar, abordar e dialogar com os sentidos históricos ou com as representações do passado (e do presente) construídos para além do mundo acadêmico. E, principalmente, em considerar, como destacam os organizadores na introdução do livro, o importante papel que a história passa a assumir como orientadora da vida política contemporânea.
Alguns perigos parecem ainda rondar as reflexões que configuram o entendimento e a prática de “história pública”, como o embaralho entre a história enquanto produção do conhecimento e a história enquanto processo vivido (como a experiência humana no tempo). Predomina também a consideração de que não são os historiadores “profissionais” os únicos a produzirem representações do passado/presente, e, portanto, não se poderia verticalizar/hierarquizar as diferentes narrativas, mesmo considerando que são fundamentalmente os “profissionais” que, através de um ofício que requer concepções teóricas e encaminhamentos metodológicos, produzem um conhecimento “cientificamente” conduzido, confiável e verificável.
Qualquer sujeito ou grupo social é capaz de produzir interpretação sobre o seu passado, e esse entendimento muitas vezes se configura como “um nível elementar de elaboração histórica”, como destacou Le Goff (2003, p. 49) ao se referir à memória como um objeto para a história. A interpretação do historiador pode ser idêntica, similar ou diferente daquela produzida por sujeitos e grupos sociais do presente, pois parte da construção de uma problematização e da certeza, desde o momento em que elabora tal problemática, de que apresentará uma interpretação “cientificamente” possível, mesmo que provisória.
Desse modo, ao se colocar lado a lado duas possíveis interpretações do passado e de construções de história (por parte do social e por parte do historiador) como configurador de significados compartilhados, corre-se o risco da simplificação ou da desconsideração da especificidade do ofício do historiador ou ainda de banalização do horizonte e pretensão de construção de um discurso de verdade/veracidade. Caberia retomar velhas questões: para a “história pública”, o que mais importa são as produções de significados, independente do mérito de veracidade?[2] A história poderia estar reduzida a opiniões sobre o passado/presente? A consideração de dados discursos sociais sobre o passado ou sobre a história – que existem independentes da ação do historiador – não implica, necessariamente, uma validação dos mesmos. Deveria o historiador validá-los? Como, por que, em quais situações e com quais instrumentos e mecanismos?
O historiador não estaria, e nem se pretenderia, em estado de disputa por legitimidade de narrativas sobre o passado. Ou talvez, sim? O passado existe, é construído, independente da história e as narrativas sobre este passado, realizadas por não-historiadores, podem ser conformadas como narrativas históricas, mas podem ser também de outra ordem.
A leitura da coletânea conduz mesmo a pensar a especificidade da produção “científica” de história. A contar pela perspectiva desenvolvida por Michel de Certeau, o historiador fala de um lugar, realiza uma prática e produz uma escrita, conformando a produção de conhecimento histórico como uma operação. O “lugar” do historiador pode não ser o mesmo do sujeito (individual ou coletivo) ouvido ou entrevistado. Desse modo, a perspectiva de “compartilhamento” e de “coautoria” entre historiadores e suas fontes/entrevistas na produção de narrativas históricas pode induzir à ideia equivocada, e já superada, de que a história – notadamente através da metodologia da história oral – acaba por “dar voz aos sujeitos”. Ainda que considere as memórias, as opiniões e o diálogo estabelecido, o trabalho do historiador é atravessado pela operação historiográfica, pela criticidade, pela problematização, pelo filtro teórico e político, pelas “fraturas” e “defeitos” realizados nas memórias (ALBUQUERQUE JR, 2012, p. 21), pelas “releituras e deslocamentos analíticos” (MONTENEGRO, 2016, p. 243).
Os resultados da construção do conhecimento histórico, a própria narrativa e interpretação das experiências humanas no tempo, mesmo no tempo presente, podem não ser idênticas, similares e compartilhadas pelo social, e ainda assim o historiador pode ter muitos motivos para considerar e dialogar com esse social e/ou para afirmar estar “fazendo” história pública. O “pública” parece às vezes ganhar o sentido de idêntica/similar/compartilhada, interpretações que aproximariam conclusões analíticas dos historiadores no exercício do seu ofício e considerações sociais a respeito de dado fato ou processo histórico.
A tônica ainda parece girar em torno da função social da história e da prática da história, as quais, como bem lembraram Caroline Bauer e Fernando Nicolazzi (2016, p. 831), devem considerar o sujeito que pratica/quer praticar e/ou escreve/quer escrever história e a função (social e política) desempenhada pelos mesmos, já que a história está entranhada de “impasses sociais e disputas políticas”.
Considerar os debates “sobre a história feita para, com e pelo público” (MAUAD, REBÊLO, SANTHIAGO, 2016, p. 12) ganha, hoje, uma importante relevância, não porque exista uma forma “correta” de compreensão histórica das sociedades e não porque haja, necessariamente, carência de se estudar mais história e de se construir conhecimento histórico. A relevância se apresenta na possibilidade de os historiadores demonstrarem “publicamente” e construírem com e para o “público” um fazer historiográfico que é permeado por marcos teóricos, escolhas filosóficas, atuações públicas e gestos políticos (BAUER; NICOLAZZI, 2016, p. 832), que configuram determinada compreensão da vida humana de um outro tempo e que permitam o estabelecimento de uma relação com o momento presente, o instante vivido, calcada em posturas éticas e defesas de valores como respeito às diferenças e à convivência democrática (ALBUQUERQUE JR, 2012, p. 33).
A leitura de História Pública no Brasil certamente se torna fundamental para a compreensão da complexidade dos mecanismos de relação entre a história e o público. Nesse sentido, o “público” passa a ser o foco da atenção dos historiadores, ganhando relevância questões como a “publicização” das interpretações históricas, o alcance público da produção historiográfica, a compreensão pública e política do passado e da história, as distintas formas de divulgação histórica de grande alcance social, os usos midiáticos da história, a construção de narrativas históricas por parte do “público”, a comunicação do historiador com o público, a ética do historiador no contato com o público, etc.
No nosso entender, dois são os grandes desafios (ou impasses) para os historiadores profissionais diante da história pública. O primeiro, de ordem teórico-metodológica, foi ressaltado pela historiadora Marieta de Morais Ferreira e anunciado por Ricardo Santhiago: “Como fazer uma história pública e garantir o respeito às práticas científicas da História?” (p. 27). O segundo, o de enfrentamento do sentido da história produzida: afinal, como o historiador se coloca na cena pública a enfrentar diálogos políticos que tratam da construção de narrativas históricas que alimentem a memória social e que correspondam a dadas perspectivas de convivência humana na contemporaneidade?
[1] http://historiapublica.com.br/
[2] Inspiração nas reflexões de Fernando Penna (2014), quando analisa diferenciações entre a história escolar como regime de discurso do passado e como forma de conhecimento.
Referências:
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de Almeida et.al. (org). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: FGV, 2012, p.
BAUER, Caroline Silveira; NICOLAZZI, Fernando Felizardo. O historiador e o falsário. Usos públicos do passado e alguns marcos da cultura histórica contemporânea. Varia História, Belo Horizonte, v. 32, n. 60, p. 807-835, set/dez 2016.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ª ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.
MALERBA, Jurandir. Os historiadores e seus públicos: desafios ao conhecimento histórico na era digital. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 37, n. 74, p. 135-154, 2017.
PENNA, Fernando. A especificidade da história escolar como conhecimento ensinado. In: GABRIEL, Carmen; MORAES, Luciene (Orgs.). Currículo e conhecimento: diferentes perspectivas teóricas e abordagens metodológicas. Petrópolis: De Petrus; FAPERJ, 2014, p. 133-150.
MONTENEGRO, Antonio Torres. O historiador e as vicissitudes do tempo presente. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 9, n. 2, p. 239-256, jul-dez 2016.
SALOMON, Marlon; CAMPOS, Raquel. Do mundo como representação à multiplicidade das formas de representação do passado: uma conversa com Roger Chartier. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 22, p. 296-319, dez. 2016
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Mauro Dillmann
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