“Eu estava lá, no centro do furacão. E repito palavras que são e não são minhas”.

Caio Fernando Abreu

 

Abro o primeiro texto deste ano de 2021 solicitando antes, uma educada licença poética ao editor para que possa permitir o ato sugestivo e consequentemente subjetivo que se sucederá.

Diante das circunstâncias ocasionadas pela pandemia no ano anterior, inspirar tragédia e expirar arte, tornou muitos de nós sobreviventes à deriva de uma realidade solapada pela decadência política e social.

Poderia nomear tal ação como um tipo de sublimação freudiana ou de criação camusiana, fato é que, repito, não haverá curiosidades científicas nessa coluna, pelo menos nesse mês, assim como Sísifo levo hoje minha pedra até o topo da montanha e apenas contemplo sua queda livre.

Nessa vontade de viver temperando palavras com azeite de dendê, começo esse relato descrevendo uma estrangeira de si mesma, e assim o faço como uma criança dando seus primeiros passos, tateando a superfície desconhecida da particularidade que nos constitui.

Particularidade essa, presente no imagético cinematográfico, corporificado na última lágrima a escorrer no rosto da jovem Cabíria, nas primeiras nuvens assistidas por um Otelo descartado ao lixo de Pier Pasolini, ou no último Close Up de Norma Desmond e que caracteriza o fragmento, daquilo que chamo de “subjeto” do subjetivo, consubstanciado em Clarissa.

A tal da dita cuja, que já nascera póstuma filha de outra realidade menos mórbida, que aprendeu com Belchior a não levar flores para a cova de inimigos, uma vez que as lágrimas de Patrícia Franchini, poderiam fazer renascer um mal antigo, para aqueles que não seguiram os conselhos realistas de  Augustos dos Anjos de que “o beijo amigo é a véspera do escarro”.

Assim como você, Clarissa é a dama decaída que se deita com um Cristo Ateu e se levanta como Antígona, dando luz a Medeias e Medusas, sorrindo do escárnio da flor sem espinhos, mas guardando consigo a ingenuidade do enclausuramento finito de um desejo mnemônico antigo, caracterizado pela fantasia de um futuro límpido e contínuo.

Clarissa perdoa Deus e dá entrevistas em seu estado mais lúcido, saudando a tragicidade da vida que a espera e sepultando toda alegria de quimera, pois para ela só as felicidades clandestinas são dignas de primaveras.

Clarissa é como a esposa do médico criado em um ensaio, sob as mãos de Saramago, aquela que renasce todos os anos, na argúcia que anseia pela revolta, ou nas sátiras de uma Tina cibernética, que expele injúrias de uma mulher branca de classe média.

Clarissa não morre porque ela não é uma persona, mas também não é um sentimento, sob  meteoros busca conselhos com a mulher mais sábia, envereda por caminhos  distantes e às vezes se encontra com Ludo, o viajante. Clarissa sabe que as palavras são duras, por isso não se auto-intitula, apenas tenta apalpar o inaudível, morando na filosofia e percorrendo nosso sangue latino.

 

 

 


Créditos na imagem: Jorg Immendorff – Society of Deficiency

 

 

 


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