Desde os sete anos de idade a criança já ajudava os pais na lida. Ainda que meados do século XX, a distinção entre criança e adulto não havia sequer começado a engatinhar no Povoado da Beira. Os pais, Sebastião e Antônia, trabalhavam como meeiros em uma das terras do Coronel Ubaldo. Meeiro forma de dizer, pois os produtos do trabalho não eram divididos pela metade, já que a casa onde moravam ficava também dentro das terras do coronel, que lhes cobrava mais uma parte da “meia” como aluguel. As poucas coisas que conseguiam comprar na venda mais próxima, propriedade do coronel, também eram deduzidas de seus rendimentos. Quase toda alimentação da família vinha do plantio e da colheita. O pequeno Raimundo já tinha sua própria foice, adaptada para seu tamanho, dada, como um mimo, em seu aniversário de sete anos, pelo generoso Coronel Ubaldo. Desde então passou a trabalhar pelo mesmo tempo que seus pais, ainda que não produzisse como eles. Aos oito anos de idade, cansado de trabalhar com fome, o menino Raimundo acordou antes dos pais e se escondeu no matagal que se avizinhava de sua casa. Ele já estava de olho em uns pés de mandioca escondidos no matagal, sua mãe havia os mostrados e dito que aquilo era mandioca do mal, que não era coisa de se comer. Ele não acreditou, se era do mal não havia razão para mantê-las, aos montes, por ali. Escondido, esperou os pais irem para a lavoura para que assim pudesse colher e preparar aquela mandioca supostamente amaldiçoada. Os pais acharam que ele tinha saído antes deles para a lavoura e rumaram para lá. Ele, escondido, ainda ouviu seu pai xingando. Arrancou dois pés da mandioca e colheu até lenha própria, a fim de diminuir as chances de ser descoberto. Começou a cair uma leve chuva, os pais voltariam mais cedo caso a chuva aumentasse, se apressou. Descascou a mandioca brava, cortou em poucos pedaços. Com pressa, pegou uma das latas que faziam as vezes de panela em sua humilde cozinha, lavou e cozinhou as raízes, sem sal mesmo. Primeiro porque até o sal era contado e era arriscado que os pais percebessem, segundo porque a fome se encarregava e dava conta do tempero. Se esbaldou, comeu por duas vidas, até passar mal. Passou mal antes pelo quanto do que pelo porquê, o porquê só chegou depois.
Ao voltar e se dar conta, ainda do lado de fora, que Raimundo estava em casa, seu pai já foi tirando o cinto, até que sua mãe entrou na frente e viu o menino sentado no chão, encostado em uma das paredes, tentando chorar sem conseguir, empapuçado. Raimundo parecia fazia força para respirar, seus braços abraçavam suas pernas contra a própria barriga. No chão, vômito e cascas de mandioca. Delirava – Deus veio aqui e brigou comigo, painho, disse que eu ia morrer pra aprender e não teimar, eu vou morrer mainha, eu não quero morrer, Deus disse, ele disse pra mim agorinha …
Certamente, se o menino se aguentasse sobre os próprios pés, tomaria uma surra, mas não havia tempo pra isso, ele precisava de ajuda com urgência. Seu pai, depois de xingar um tanto, o tomou nos braços e o colocou na garupa da bicicleta Barra Circular, o amarrou às suas costas e rumou para o postinho de saúde. Quatorze quilômetros, de bicicleta. Chegaram lá, o médico não estava, tinha apenas um enfermeiro. Não havia muito o que ser feito. O enfermeiro deixou Raimundo no soro por quatro horas para hidratá-lo e pôs-se a rezar ao seu lado junto com o pai. Raimundo não morreu. Ficou até o resto do dia em repouso e no dia seguinte, após visita e recomendação do coronel, voltou a trabalhar. Uns dizem que foi milagre, outros dizem que foi milagre. De toda essa experiência Raimundo levou uma lição: mandioca brava incha, enche barriga, mas não pode abusar. O que não mata, engorda. Foi, ao longo do tempo, aperfeiçoando suas técnicas de escamoteamento e preparo, e agora sempre que os pais davam uma brecha, ele preparava um bocado e escondia, para depois comer pequenos pedaços. Ficava com aquela sensação de estar estufado por horas e horas, só sentia fome quando voltavam da lavoura. Assim ele fez por anos, já que fome e mandioca brava eram espécies de raiz brava que não faltavam por ali.
Raimundo cresceu, parcialmente graças à mandioca brava. Vingou. Arrumou uma namorada, que o trocou por outro e foi pra cidade grande. Seus pais envelheceram, morreram, e Raimundo ficou, sozinho, naquela pequena rocinha, mantendo o velho hábito de amassar a fome réptil com a braveza da mandioca. Nunca mais teve alguém, se desiludiu por completo após a primeira e única experiência amorosa e carregou por toda vida essa mágoa. Já a caminho da velhice, a mandioca brava passou a fazer parte definitiva de sua dieta diária, pois não eram mais três a trabalhar como antes e ele não trabalhava tanto quanto seus pais, talvez pela ausência de um filho, talvez pela certeza da mandioca no prato. Além disso, a mandioca brava do matagal não era descontada de seus rendimentos pelo ex-coronelzinho e agora coronel Ubaldo Filho, o que a tornava ainda mais apetitosa.
O povoado da qual sua pequena rocinha — teoricamente, pois muito afastada — fazia parte cresceu, ganhou corpo, ainda que magro, se modernizou um tanto: luz elétrica, telefone, computador, mas Raimundo, avesso a tudo isso, era conhecido precisamente por isso no povoado, também pela sua ranzinzice e pela sua longa história com a mandioca brava. Alguns o consideravam o eremita como patrimônio cultural do Povoado da Beira.
Numa tarde de domingo, Raimundo recebeu a visita de três estudantes de jornalismo da cidade grande que foram até ele com o propósito de entrevistá-lo, com negócio de câmera e tudo, Eduardos Coutinhos. Raimundo achou aquilo muito estranho, de pronto torceu o nariz. Então eles explicaram que a entrevista fazia parte de um projeto de conservação da memória e da história do Povoado da Beira. Nada. Só cedeu após trabalharem com o quase extinto ego do ranzinza: disseram que Dona Valmira, da vendinha da beira da estrada da Beira, já tinha sido entrevistada, ainda faltava seu Raimundo e seu Custódio, que era vaqueiro. Raimundo consentiu, parou suas atividades por um instante, convidou os jovens a se sentar no interior de sua casa, onde só haviam três cadeiras, e foi passar um café. Cês devem tá com fome, né? Vou cozinhar aqui um negocinho pra gente comer, pode ir falando… Café da roça, mandioca cozida e manteiga de garrafa. Conversa vai, conversa vem, Raimundo contou sua história de vida, sem grandes acontecimentos, enfatizando que gostava mesmo era de trabalhar, de ver o milho crescer, de chuva e de uma cachacinha de vez em quando. Esqueceu-se do fatídico episódio da infância ou preferiu não narrá-lo, o que poderia acabar por publicizar sua imagem como uma pessoa muito pobre, obrigada a comer mandioca brava. Quando a entrevista se encaminhava para o fim, um dos jovens perguntou sobre a famosa história da mandioca e, ao mesmo tempo, os outros dois jovens começaram a passar mal. O perguntante caiu. Tontura, falta de ar, enjôo. Raimundo se lembrou, era a mandioca brava! Desgraça! Vocês me perdoem, é que eu como isso desde menino, minha gente, me criei comendo isso, tinha até me esquecido que isso num é coisa de gente comer! Vocês vão me perdoando, pelo amor de Deus…
Dois dos jovens já caíam no chão com as mãos sobre a barriga. Raimundo pegou sua bicicleta, a mesma que havia sido do pai, e foi até o povoado buscar por socorro. Foi no postinho, o médico só ia duas vezes por semana e não estava, a enfermeira não podia sair. Não havia ambulância. Tentou falar com Tião, um antigo conhecido que tinha carro, o carro estava quebrado. Não havia a quem mais pedir ajuda. Raimundo voltou. Ao chegar lá, encontrou dois dos jovens desmaiados e um semi consciente, se desesperou, mas não havia nada a fazer. O coronel não estava. Ele se apressou, juntou suas coisas numa trouxa, poucas roupas, farinha, carne seca, um bocado de mandioca brava, fez o sinal da cruz, montou em sua bicicleta e se foi, sumiu no mundo. Ninguém mais ouviu falar de Raimundo.
Créditos na imagem: Njideka Akunyili Crosby at the Pinchuck New Generation #Art Prize. Detail of Cassava Garden.
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