Madonna: Histórias, Temporalidades e Identificações

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Conhecida popularmente como a “rainha” da música pop, Madonna é uma das principais figuras atuais da indústria cultural no mundo. Peça chave para entender a própria história do final do século passado e início do XXI, a cantora se consolidou na âmbito mundial como a primeira grande (e maior) diva do gênero musical, contribuindo para a definição do que é ser um artista na música pop. Contrariando uma série de elementos e características em torno do que seria ser uma diva no século passado, pensamento associado geralmente as grandes atrizes de ópera e do cinema (VALENTE, 2007), a cantora ressignificou a imagem feminina dentro do mainstream ao procurar se (re)construir constantemente como figura antagônica aos estereótipos e perfis pré-definidos. Não parando nesse movimento, a artista foi sempre plural e instável, sendo essa resignificação não um processo estático, mas constante e reinventivo do ser a própria Madonna. Ou seja, sua identidade artística é a mudança, é a fluidez do tempo, é em si mesma o presentismo na acepção de François Hartog (2013).

Desde a assinatura de contrato com a Sire Records, selo de música ligado a Warner Bros. Records, Madonna investiu pesadamente nessas reinvenções, consideradas por ela e pelos críticos da cultura pop como “Eras” ou “Fases”, definidas a partir dos próprios álbuns lançados pela artistas (O’BRIEN, 2018). Esse processo iniciou com um estilo muito mais disco, dançante e comercial, começando a mostrar os primeiros indícios de mudança em 1984 com o lançamento de Like a Virgin. A década de 1980 foi marcada por uma série de embates e revoluções culturais e sociais, sendo uma delas a sexual e a transição da segunda para a terceira onda do feminismo. Foi nesse contexto que a artista lançou a referida canção, que a inseriu no centro do debate sobre o “ser mulher” e a reivindicação do corpo feminino, dando início a projeção de um perfil engajado da cantora em suas performances e canções. Ao mesmo tempo, a partir dessa década é possível observar a emergência de uma Madonna calculista e inteligente do ponto de vista comercial e mercadológico, o que possibilitou que soubesse como jogar muitos dos jogos da indústria fonográfica, assim como lutar por certa independência dentro das decisões sobre sua própria carreira.

Em junho de 2019, após quase quatro anos sem lançar um álbum completo após os problemas de vazamento enfrentados com Rebel Heart, Madonna lançou um novo disco, marcando seu retorno na indústria fonográfica e, principalmente, no mainstream dentro do seu próprio perfil artístico. Madame X (2019, Interscope), é o décimo quarto álbum solo da cantora, marcando, deste modo, sua décima quarta “era” e/ou “identidade” artística. Apesar de ser uma “nova” fase artística, a cantora conservou e retomou uma série de características fundamentais para a sua consolidação e (re)afirmação na indústria fonográfica, como as parcerias com artistas em ascensão (em especial do ponto de vista midiático) e seu engajamento em torno de pautas sociais.

Esse talvez seja o principal elemento que desperta a atenção dos críticos musicais e pesquisadores de ciências humanas em Madonna: Sua capacidade de dentro de um produto comercial tornar-se uma figura engajada mergulhando, diretamente na contemporaneidade e em múltiplas camadas temporais que constituem as sociedades ocidentais atualmente. Tais trânsitos nas teias de temporalidades que compõem o presente, quase que um mergulho nos estratos de tempo (KOSELLECK, 2014), são referenciais para compreender uma série de elementos em Madame X, não apenas em suas sonoridades, mas também nos videoclipes já lançados. Produções como Medellín (ft. Maluma) e Dark Ballet são alguns exemplos destas questões, onde som e imagem obrigatoriamente devem ser cruzados para compreender as produções de Madonna, como é de fato característico em sua trajetória. Elementos como religião, racismo e  misoginia, assim como transfobia (essa possível de observar apenas no clipe de Dark Ballet) são demonstrativos do tipo de narrativa que é estruturada a partir da cantora dentro dos pontos citados anteriormente.

Madame X é um álbum ao mesmo tempo plural, necessário e comercial. Madonna manteve um perfil de diva da música pop já consolidado por si própria ao construir sonoridades relativamente simples, ousando romper barreiras em produções já bastante plasmadas que utilizam a base eletrônica. Ao mesmo tempo, seu perfil bastante controverso e polêmico desde os anos 1980, discutido pela teórica Bell Hooks (2019), se repete ao incorporar elementos africanos, afrodescendentes e negros nas suas sonoridades e discussões. Não cabendo aqui qualquer exercício de prognóstico, é importante destacar que mais uma vez a cantora se utilizou de referenciais das populações negras em sua composição e construção sonora para o álbum, como fica explicito na faixa Batuka.

Como destacou Hooks, discutir essa questão é um ponto extremamente pertinente e fundamental para compreender as representações negras na sociedade contemporânea, afinal esse é um perfil já tradicional da cantora que utilizou de referenciais de diferentes identificações em sua construção não sendo condenada por faze-lo muitas vezes por ser branca, como é o caso de Vogue. Porém, a teórica aponta que esse processo foi fundamental também em contextos passados no sentido de chamar a atenção para esses grupos, e tais representações e sonoridades sendo por isso uma discussão extremamente complexa e que talvez caiba um ensaio futuro nessa coluna apenas sobre isso. Apesar disso, a principal questão, ao observar as relações do álbum com as temporalidades, inclusive no que se refere a própria trajetória da artista, é a necessidade de destacar que esse processo existe, é perceptível e deve ser amplamente discutido.

A faixa God Control, que tem como tema o controle de armas, é outra canção fundamental para a relação engajamento-música comercial presente no novo álbum. Temática em constante debate nos Estados Unidos, o controle de armas tem ocupado o centro de discussões em diversos outros países ao redor do mundo, como no Brasil. Uma série de canções de artistas mundialmente conhecidos como Shawn Mendes e Khalid, assim como Donald Glover, tem referenciado essa discussão, demonstrando não só a pertinência de tais legislações de controle, mas também provocando a ampliação dos debates e conscientização dentro do mainstream. De maneira bastante experimental, a canção com 6:19 promove esse debate, demarcando novamente a opinião da cantora e de vários artistas internacionais sobre o tema, comparando o armamento da população a um vício e a perda da humanidade. Pouco tempo após o lançamento de Madame X, a artista lançou o clipe da canção, que passou a ser também um dos singles de trabalho do álbum, em que reafirmou seu posicionamento trazendo cenas fortes envolvendo tiroteios e a morte de jovens.

No Brasil, uma das principais repercussão do novo disco foi a parceria de Madonna com a cantora e funkeira Anitta, principal representante musical do país no exterior. A canção “Faz Gostoso”, que alterna trechos em português e em inglês, é a regravação, autorizada, da música que foi primeira popularizada na voz da cantora portuguesa Blaya. Grande parte das repercussões em torno da faixa esteve lidado ao processo de hibridização das línguas e a ideia da música como forme de linguagem plural, não se restringindo apenas a um idioma específico.

Alternando trechos em português e inglês Faz Gostoso foi adaptada para uma sonoridades mais funk, marcando a consolidação do gênero brasileiro como parte do mercado internacional, o que já vinha sendo registrado progressivamente nos últimos anos. A decisão de convidar Anitta para a gravação, assim como Maluma e Quavo para outras faixas, reafirma uma das estratégias de Madonna para sua constante (re)invenção: apoiar-se em gerações de artistas mais recentes. Desta maneira a cantora se aproxima de novos públicos, atualiza seu repertorio, e consegue assim se apresentar novamente a indústria cultural. Nesse sentido, é preciso reconhecer um dos principais elementos da própria carreira da cantora: ela é estratégica em suas decisões, juntamente a sua equipe de produção, o que transmite novamente a relação comercial e mercadológica presente em sua construção.

Pensar Madonna através de Madame X, mesmo que de maneira geral em função do espaço limitado dessa coluna, é discutir a própria indústria cultural contemporânea, suas estratégias e, principalmente, a mobilização de dimensões temporais. A algum tempo escrevi meu primeiro texto para a HH Magazine no qual discuti como a ideia de crise da indústria estava pautada em uma crise do tempo através da ideia de retromania (REYNOLDS, 2012). Dentro dessa discussão, Madonna pode ser pensada como uma figura bastante interessante de análise. Seu novo álbum está mergulhado na relação e sensação em que o ouvinte percebe a influência das sonoridades e o estilo de voz que a consolidaram na indústria, mas também nota uma reinvenção que mobiliza questões “presentes”, muitas vezes não tão recentes. Situada entre o hoje e as experiências passadas, a cantora lançou um disco que lembra a própria ideia de estratos de tempo no qual, através de estratégias na indústria e de um perfil engajado-comercial, transita entre diferentes temporalidades para se constituir como artista.

Muitas vezes esse processo significa uma presentificação de diferentes “Madonnas”, assim como de diferentes pautas e representações como no caso de questões ligadas a sexualidade ou o racismo, muitas vezes articuladas em torno de figuras como Joana D’Arc e a representação transexual negra presente em Dark Ballet. Outro caso ainda é o exemplo de Medellín em que a religião é mobilizada, assim como as menções ao seu Alter Ego, a própria Madame X, ecoa de certa maneira as tensões em torno da imagem de agentes secretos durante a guerra fria. Neste sentido, pensar Madonna é pensar um sujeito temporalmente diverso, uma mulher estratégica e, principalmente, uma figura polifônica, que muitas vezes é contraditória e que constantemente demonstra que o pop comercial talvez não seja apenas mercado, talvez exista muito mais que isso e que só iremos compreender quando passarmos a refletir sobre.

 

 

 


REFERÊNCIAS

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

HOOKS, Bell. Olhares negros: Raça e Representação. São Paulo: Elefante, 2019.

O’BRIEN, Lucy. Madonna 60 anos: A biografia do maior ídolo da música pop. 2. ed. amplo. e. rev. Rio de Janeiro: Agir, 2018.

VALENTE, Heloisa de A. Duarte. Madonna, madonnas e prime donne: da ‘diva assoluta’ às divas‐ pop In: BAITELLO, Norval Jr et al. (org.). Os símbolos vivem mais que os homens: ensaios de comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume Editora Comunicação, 2007.

 

 

 


Créditos na imagem: Performance de Madonna no 2018 MET Gala, em Nova York – Fotografia de Kevin Mazur Getty Images Entertainment [https://www.flickr.com/photos/madonnaphotos/27113029197/]

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Igor Lemos Moreira

Doutorando em História pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH-UDESC), na linha de pesquisa Linguagens e Identificações. Mestre e Graduado em História (Licenciatura) pela mesma instituição. Integrante do Laboratório de Imagem e Som (LIS/UDESC) e associado a ANPUH-SC e a IASPM-AL. Tem experiência na área de História, com ênfase em História das Américas, Teoria da História, História Moderna e Contemporânea. Atua principalmente nos seguintes temas: Relações entre Estados Unidos e Caribe; Biografias e Trajetórias Artísticas; Representações; Música Latino-americana; História da Música e Musicologia Histórica; História, Mídia e Internet; Música Pop; Audiovisual e Canção; História Pública e História do Tempo Presente.

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