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Crônicas, contos e ficções

Manuela quer ir para escola

Desde aquele dia em março de 2020 escrever sobre qualquer assunto pode começar com a frase: “desde que a pandemia de COVID-19 causada pelo novo vírus SARS-CoV-2…”. É como se um novo paradigma fosse criado, um marco temporal, algo que a sociedade contemporânea não tinha experimentado ainda e que nos colocou a conhecer assuntos, entender rotinas, compreender situações que não estavam no nosso horizonte. 

Os níveis de mudança, a natureza, a intensidade, o conjunto de possibilidades de cada um de nós em viver esse a pandemia se alteram de acordo com o nosso lugar no mundo. Ela expõe o universo das nossas contradições. Com ela uma face do capitalismo comparece: a aceleração das relações com os objetos técnicos havendo quem fale, inclusive, de capitalismo digital instaurado nas relações entre as pessoas: nos modos de comunicação para tudo que fazemos, desde compras de supermercado até aulas ou reuniões, consultas médicas, cursos de arte, de dança e etc. 

Porém as mesmas angústias de antes comparecem. A mim tocou profundamente uma, em específico, que me coloquei a pensar na última semana: a vida de crianças em idade escolar, realidade que eu acompanho diretamente por ter dois filhos, mas ainda, pelo contato com os filhos de amigos; pelos relatos de colegas professores e, ainda, pelo contato com os meus sobrinhos. 

Manuela é uma menina de 9 anos recém completados. É a filha do meio da minha irmã do meio. Eu e Carol, minha irmã, estivemos grávidas ao mesmo tempo e acompanhei a chegada de Manu junto com a chegada do meu primeiro filho, Tomás. 

Por um tempo não convivi muito com ela; eles moram em uma casa distante da minha e já moramos em cidades diferente. Também não estive tão próxima já que estava aprendendo a ser mãe quando a Manu nasceu. 

Nos últimos anos sempre soube das notícias acerca da sua relação com a escola, muito otimistas pra mim como professora. A Manu estuda em uma escola municipal de Aparecida de Goiânia, município da região metropolitana da grande Goiânia. Ela sempre gostou muito de ir para a escola, aprendeu a ler e escrever com facilidade, adora Matemática, Ciências, Artes. Soube que, uma época, ela perdia o recreio para ficar na sala lendo os livros e gibis que estavam disponíveis. E me deu muita emoção em saber que, por ter uma relação tão apaixonada com o conhecimento, Manu disse a minha irmã que queria ser “como a tia Rusvênia”, estudar muito, ir para a Universidade.

Somos de uma família de origem muito humilde. A realidade de Tomás, meu filho, e de Manu, minha sobrinha, se distancia em muitas coisas e mais ainda porque o Tomás estuda numa escola privada que tem ensino hibrido, com aulas online que foram organizadas tão logo a pandemia despontou. A escola de Tomás adotou um programa de atendimento aos alunos; as professoras se viram do avesso para dar as aulas e, ao mesmo tempo, para garantir o interesse das crianças. 

Porém o que se chamou ensino hibrido é na verdade uma gambiarra que a escolar de Tomás fez: organizou as turmas em bolhas de duas cores. Em um dia vai um grupo de uma cor e no outro dia o grupo da cor diferente. As crianças mantem distanciamento social, são monitoradas por câmeras, usam máscaras e tem protocolo de não dividir o lanche, lavar as mãos algumas vezes ao longo da manhã. Por outro lado, a professora dá aula para turma que está online ao mesmo tempo em que para os alunos e alunas que estão em sala, ou seja, tem que dividir a sua atenção em dois ambientes no mínimo.

Essa realidade já me causava muita aflição e tristeza o suficiente para saber que a mudança na forma de ensinar é também uma mudança de relação com as pessoas; é uma mudança de paradigma do significado da aula como uma construção espacialmente dependente de muitas variáveis. A aula como espaço criativo ficou monitorada pelos olhos das famílias, entrou nas casas e invadiu a vida privada. Na vida de Manu, é diferente.

Um dia eu furei a pandemia e fui visitar a minha irmã, pela primeira vez, em quase dois anos. Foi aí que eu soube o que aconteceu com a Manu. 

Eu já tinha sabido que as crianças estavam desmotivadas e com muitas resistências em estar na escola do computador. Ano passado cheguei a desmatricular meu filho menor – não fazia mais nenhum sentido força-lo a estar onde não queria; correr atrás dele no quintal para convencê-lo de assistir as aulas online. Confesso que achei graça de quando ele falou que estava gostando da pandemia – para Santiago, de cinco anos, ficar em casa é ótimo: ele brinca, corre e está o tempo todo com um dos pais. Mas para Manu, Tomás, Pedro e tantas outras crianças, a pandemia inaugurou, cada uma a sua maneira, outra relação com a escola. 

Manu nunca mais foi na escola. Nunca mais viu os amigos, não conhece a sua professora atual e essa também não a conhece pessoalmente. Tanto ela como todas as crianças da rede pública têm “aulas” exclusivamente por um aparelho de celular. Ela recebe, diariamente, uma lista de atividades que tem que executar. A professora grava áudios e vídeos explicando a matéria. Algumas crianças escrevem as suas dúvidas no grupo de WhatsApp. Ela não escreve. Ela não faz mais as atividades dos livros que a escola deu. Ela não usa mais o caderno. 

Manu está triste. Vê-la assim me dilacerou o coração. Todos os sonhos que ela tinha, toda relação com a escola, toda a alegria com o conhecimento se transformou em uma melancolia permanente que é perceptível nos seus olhos. Minha irmã tenta amenizar as coisas com uma frase: “quando tiver vacina, volta, tudo será como antes”. Mas a tristeza que se assenta em Manu, instaura um tempo que não tem retorno. Nunca mais ela terá 8, 9 anos de novo. Ela tem nove anos e um olhar adulto e, nesse contexto, foi descoberto um problema grave de visão que nunca antes havia se manifestado.

O que Manu não quer ver? Porque esse problema se manifestou agora? Parece que é melhor não ver mais o mundo do modo como ele se colocou: retirando de muitas crianças um dos mais importantes espaços de sociabilidade cotidiana que elas tinham, por mais críticas que nós tenhamos as tantas contradições que a escola tem e a maneira como essas contradições se apresentam na vida das pessoas. 

Como acreditar que é só uma questão de tempo? É possível ter esperança de que a escola vai voltar e de que Manu irá recuperar aquela alegria, aquela emoção, aquela relação tão genuína? Aquele desejo em mostrar a atividade para a professora que ela tinha? O orgulho que sentia da própria letra (ela me mostrou o livro e eu esbocei um elogio a letra dela, que prontamente não foi aceito: “não tia, minha letra não está boa”). 

O tempo não volta. Sendo assim, Manuela nunca mais terá 8 e 9 anos de novo. Só resta ter a esperança de que ela possa, de novo, recuperar sua alegria em conhecer o mundo das letras, que para ela era um mundo dependente de sua relação com a escola. O sentido da escola para Manuela era o encontro com um mundo que ela não acessa pelo aparelho de celular.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. A vida continua II – Cotidiano. Foto: Chronosfer.

 

 

 

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