A performance Mitos vadios aconteceu em São Paulo no ano de 1978, com participação de artistas como Hélio Oiticica, Lygia Pape e José Roberto Aguillar, num momento delicado em que a vigência do AI-5 implementado pela Ditadura Militar limitava e cerceava as manifestações políticas e artísticas em espaço público. Foi um encontro bastante plural de artistas ocorrido em um estacionamento baldio localizado na Rua Augusta. O projeto tinha o objetivo de propor experimentações e alcançar a liberdade criativa. Enquanto movimento de performance é possível dizer, até mesmo se pensarmos a sua especificidade como linguagem, que a liberdade necessária e oferecida aos artistas (neste caso, do personagem por ele/ela criado e/ou inventado) fez com que a intenção do grupo fosse alcançada através do estabelecimento de diálogos íntimos e interativos com o público, o que não quer dizer que se esperava uma audiência posta em estado de adequação aos propósitos. É importante destacar que a performance trabalha diretamente com as noções de presença e de participação. Sendo assim, os impactos de uma obra-ação como Mitos Vadios revelam-se na multiplicidade de narrativas e de interpretações possíveis sobre o seu contexto de criação e de execução em ambiente público externo.
O projeto dos Mitos vadios ficou a cargo de Ivald Granato, artista carioca e muito conhecido na cena cultural paulista da época por conta das suas irreverentes performances, além de todo um trabalho combinado que envolvia pintura, gravuras, materiais têxteis, elementos textuais, desenhos, colagens. Era um provocador. Um artista que torcia as ordens discursivas formuladoras dos costumes estabelecidos, não sendo incomum se valer do deboche, da ironia e do riso. A invenção da obra, da performance, também passava pela constante (re)invenção de si, em que não se delimitava um ser do artista, assim como a obra também não era eivada de essencialismo, algo que o fará dialogar abertamente com o neoconcretismo, especialmente com Hélio Oiticica. Arethusa Almeida de Paula traça um possível ethos artístico para Granato: “Pensando sempre com muita irreverência e ironia crítica o papel do artista na sociedade ele transitava entre o mundo das galerias e o mundo dos artistas mais engajados com as questões políticas e artísticas daquela época” (PAULA, 2008, p. 99). Granato investe na presença ante à hermenêutica e/ou a verbalidade. Quer romper linhas discursivas, quer flexionar a diferença; torcer a identidade. A realização da obra é feita ao calor da própria ação, sendo possível dizer que a sua elaboração se opera no próprio movimento performativo. Não há distanciamentos entre o projetado e a realização. A sua performance é acontecimento. Carlos von Smith, ainda em 1978, já conseguira acompanhar estas linhas de força:
Da emoção ao gesto, do gesto à expressão, Granato caminha sem hesitações, criando um universo particular alimentado por uma diversidade de estímulos que se multiplicam em constante feedback, artista-obra-artista. Espaço, tempo, ritmo, estabelecem a verdade de Granato que se concretiza através do automatismo do gesto rápido, dinâmico, veloz (SMITH, 1978, p. 1979, p. 6).
Mitos vadios acompanha a estética da art performance de Granato. A sua preocupação é com o cotidiano, ou melhor, com a (des)naturalização dos costumes sociais, com a acondicionamento da vida humana pela identidade, movimentando-se criticamente diante da gama de acontecimentos que atravessam e o afetam, posicionando a sua obra também em estado de afetação. A performance dos Mitos vadios pretendeu, a partir desse panorama, promover um lugar de encontro para artistas transgressores, que poderiam, então, expressar a multiplicidade do fazer artístico, em um espaço orientado pela liberdade, pelo elogio das vontades e dos desejos, que não seriam, ali, interditados socialmente. Mitos vadios era polifônico, plural, diferencial. Cambiante no afetar e no deixar-se afetar; recorrendo, aqui, às potencialidades da noção de afeto.
Mitos Vadios emerge de uma manifestação contra a realização da I Bienal Latino-Americana de São Paulo, que trouxe em sua chamada o polêmico tema Mitos e magias. Sob esta perspectiva, Mitos Vadios marca uma importante intervenção face às estruturas elitistas e culturalmente condicionadoras inscritas nas grandes instituições do campo artístico à época. Granato iniciou os preparativos e a divulgação da performance com antecedência de tal modo que a mesma parecia já estar acontecendo. Nos materiais distribuídos percebe-se a atenção aos detalhes de forma a criar diálogos com as várias manifestações artísticas neoconcretistas, combinando palavra e imagem. A recepção da arte-performance coletiva foi variada, passando do estranhamento ao desgosto, da curiosidade aos elogios. As palavras “vadiagem” e “vadios” foram exploradas pelos veículos de comunicação, mas a ligação entre a performance e a realização da Bienal não deixou de ser mencionada, demonstrando certo sucesso da iniciativa em visibilizar as contradições, além das estruturas de poder internas, de um campo artístico ainda lento em suas desenvolturas para além das instituições.
A performance de Hélio Oiticica, a qual nos deteremos com mais vagar, levou o nome de Delirium ambulatorium. O texto-release foi publicado em 5 de novembro pelo Diário de São Paulo. Em seus estudos teóricos, Oiticica planejou circular pela área baldia sem preocupação com a linearidade. A palavra “ambulatoriar” aparece como norteadora, e o artista a definiu como “inventar coisas para fazer durante a caminhada”, flexionando a característica da performance enquanto linguagem artística a qual falamos anteriormente. O uso da indumentária nessa arte-ação aparece na performance através da capa de morim (tecido 100% algodão) plastificada com cola vinílica levada pelo artista para ser utilizada para enrolar corpos diversos. A capa ainda estava por ser feita quando Oiticica redigiu as anotações teóricas. A ideia anotada a seguir complementa o possível significado da performance inicialmente idealizada pelo artista brasileiro. Ele planejou levar “tokens do Rio”, que eram elementos naturais, ou não, e que remetiam a locais culturalmente marcantes da cidade do Rio de Janeiro. Alguns exemplos seriam estes: o asfalto da Avenida Presidente Vargas, a terra do Morro da Mangueira, a água da Praia de Ipanema e pequenos objetos comprados na Rua Larga.
Aqui é possível realizar algumas análises relacionadas aos processos criativos de Oiticica. O elemento da caminhada e o da movimentação corporal já aparecera em outros dos seus trabalhos, algo que remete tanto às suas memórias afetivas quanto à exploração de locais e de circunstâncias do Rio de Janeiro que não apresentavam características de regulação expressiva, de moralismos e de intelectualismos, tais como nas regiões boêmias. O uso de materiais têxteis como integradores corpo-arte, já bem conhecido desde Parangolés, apareceria novamente com o uso da faixa-morim. É importante destacar que ele não cumpriu o planejamento inicial para a performance aqui explorada, causando-lhe, de certa maneira, alguma frustração e, também, estranhamento a seus amigos e a suas amigas face a uma intervenção que pretendia, não de outra maneira, movimentar-se através da potência simbólica e estético-filosófica, mas que mesmo assim seguiu o seu caminho através do rompimento com diversos modos de arbitrariedade postos no âmbito dos costumes, dos comportamentos, das ações sociais.
O vídeo que registra alguns momentos de Mitos Vadios, disponibilizado por Ivald Granato, nos mostra a preparação para a performance de Hélio Oiticica. O chão da área baldia a ser ocupada foi marcado, e as palavras delirium ambulatorium estavam em destaque. Grande quantidade de pessoas circulava pelo local. Sendo possível dizer, a partir das notas referentes à performance disponíveis nos materiais de divulgação, que elas traziam consigo o sentimento de enfrentamento e de revolta ante o intelectualismo e, principalmente, ante a ideia de uma arte contemplativa. Artistas se movimentavam a todo tempo em interações que variavam da conversa à dança, da dança à destruição de objetos. Nas imagens, Hélio aparece dançando, sendo filmado algumas vezes. Já na vídeo-montagem disponibilizada por Felipe Barrocas, ele registra em áudios as suas próprias impressões sobre Delirium ambulatorium. O artista inicia a sua reflexão lembrando das suas propostas para a saída do/para o espaço ou, mais especificamente, para a desintegração do quadro ou da pintura, baseando-se nos conceitos neoconcretistas, que estão atravessados, no caso, por uma perspectiva filosófica deleuziana. A obra de Deleuze referência para Oiticica é Nietzsche e a filosofia (1962), o que nos faz perceber esse caminhar como algo sem destino, sem finalidade última ou pré-estabelecida. O destino manifesto no caminhar do artista é irracional, seguindo as apropriações de Nietzsche efetuadas pelo filósofo francês. Por isso esse caminhar ambulatorial é feito ao acaso, em fragmentos, sem preocupação com os fins. O caminhar, o caminho, e não o fim, como dimensão do próprio existir. Uma existência, cabe destacar, aberta à surpresa, à descoberta, à (re)descoberta e à (auto)descoberta.
Oiticica resume bem, ao longo das suas reflexões expostas na vídeo-montagem de Barrocas, o que pretendia o neoconcretismo em suas décadas iniciais:
o espectador transformado em participador, proposições em vez de peças, propor práticas não ritualísticas. O artista não mais como criador de objetos, mas propositor de práticas. Descobertas apenas sugeridas em aberto. Proposições simples e gerais ainda não completadas. Situações a serem vividas (OITICICA, 2020).
Sobre o Delirium ambulatorium dirá que a caminhada pelo Brasil o permitiu um encontro intuitivo com imanências indisponíveis, encobertas ou em latência, naquela década de 1960. No período em que Mitos Vadios toma espaço, em 1978, deseja a desmistificação do caminhar. Na percepção do artista, Delirium ambulatorium é um delírio concreto que sintetiza a sua redescoberta da rua através do andar enquanto plano de abertura, como horizonte múltiplo de possibilidades e de agenciamentos, explorando a potência de uma verdadeira confusão mental. A caminhada é este descobrir espontâneo, no sentido da estratégia dos dados que Deleuze identifica em Nietzsche. “Lançar os dados confiando em obter o duplo seis: Oiticica trabalha com o acaso como destino, que encontrou no Nietzsche de Deleuze” (BRAGA, 2007, p. 87). O artista carioca fez esse encontro com Nietzsche e com Deleuze por intermédio de Silviano Santiago ainda durante a década de 1970. Ele deixou isso registrado no Memorando Caju, de 1979: “Caiu-me nas mãos o livro de DELEUZE sobre NIETZSCHE e só esta semana descobri a abordagem do artista trágico que faz” (OITICICA, 1979).
Embora a performance tenha fugido ao planejamento divulgado anteriormente, e tenha sido até mesmo considerada um fracasso aos olhos do próprio Hélio, mais tarde ela seria reconhecida como uma obra de passagem em sua trajetória. É a partir de Delirium ambulatorium que Hélio Oiticica terá a ideia de criar, ou de inventar, os acontecimentos poético-urbanos, que consistiam em
(…) criar um ambiente – aberto e contíguo ao espaço urbano – propício à emergência de um ‘estado de invenção’ em quem lá esteja e se deixe levar pelo acontecimento, provocando o surgimento de experiências poéticas programadas ou não (ANJOS, 2012, p. 39).
Mais do que a caminhada enquanto meio para vencer as moralidades e explorar as presenças e as ausências dos espaços urbanos, o vestir-se em delirium ambulatorium será, posteriormente, discutido pelo artista como a incorporação de uma nova realidade. Que não seria outra coisa do que a ideia de transmutação nietzscheana vertida para as artes plásticas. As referências musicais (nas camisetas de bandas de rock utilizadas na performance) serão discutidas sob a ótica da música e da dança como a descoberta do corpo. A relação de Hélio Oiticica com a música era de tal identificação que o artista definia o que fazia, ou o que (re)criava inventivamente, como “Música e que Música não é ‘uma das artes’, mas a síntese da consequência da descoberta do corpo” (OITICICA Apud ANJOS, 2012, p. 40). De qualquer maneira, isso também é um jogo de dados, algo não programado, realmente um deixar-se descobrir e ser afetado que se opera na facticidade mesma dos devires, nos corpos em trânsito, no caminhar sem destino, como o impacto da música nos/sobre os corpos, que os retira do estado de enquadramento social, transmutando a si, os outros, o real em modo combinatório e flexionando os espaços e os tempos, assim como um Dionísio nietzschiano.
Delirium ambulatorium, acompanhando as reflexões de Paula Braga, é o gesto do artista trágico que Oiticica se apropria de Nietzsche sob mediação de Deleuze. É possível fazer uma relação entre os jogos de dados, a arte trágica e o movimento performático delirante, valendo-se, ainda, das fortes intuições teóricas da autora (BRAGA, 2007). O que está em jogo é a torção da realidade, a sua desnaturalização, o descongelamento das estruturas sociais, daquilo que é visto e percebido, incluindo espaços e corpos. O lance de dados é caminhar pelo acaso, pela multiplicidade. É transmutar, transvalorar, transgredir. Ver (e fazer ver) novos atores sociais, sobretudo, aqueles não enquadrados. Não é por acaso que vadiar é um verbo intransitivo, que significa vaguear, andar à toa. No Memorando Caju, em que o delirium ambulatorium é caracterizado, temos a sua visão trágica da arte que se projeta para a performance como linguagem, na leitura deleuziana de Nietzsche e que sintetiza o seu experimento: “Nunca se compreendeu que o trágico era positividade pura e múltipla, alegria dinâmica. Trágica é a afirmação: porque afirma o acaso e, do acaso, a necessidade; porque afirma o devir e, do devir, o ser; porque afirma o múltiplo e, do múltiplo, o uno. Trágico é o lance de dados” (DELEUZE, 2001, p. 57).
O caminhar de Hélio Oiticica, o seu vaguear delirante, ou seja, fora dos padrões estabelecidos social e culturalmente, a criação de acontecimentos poéticos-urbanos, é feito totalmente ao acaso, em uma multiplicidade não passível de prefiguração, de organização ou de ordenação. É, de fato, um “delírio concreto”, como o artista costumava dizer, uma disposição que desarranja, que mistura, que confunde, que torce, que desloca espacialidades, corpos e sujeitos. A afirmação da vida.
REFERÊNCIAS:
ANJOS, Moacir dos. As ruas e as bobagens: anotações sobre o delirium ambulatorium de Hélio Oiticica. ARS (São Paulo), 10(20), 22-41, 2012.
BRAGA, Paula Priscila. A trama da terra que treme: multiplicidade em Hélio Oiticica. Tese (Doutorado em Filosofia), Programa de Pós-graduação em Filosofia, FFLCH/USP, 2007.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Porto: Rés-Editora, 2001.
GRANATO, Ivald. Ivald Granato art performance. São Paulo: Editora J.J. Carol, 1979.
OITICICA, Hélio. Memorando Caju. AHO docº 114/79.
PAULA, Arethusa Almeida de. Mitos vadios. Uma experiência da arte de ação no Brasil. Dissertação (Estética e História da arte), Programa de Pós-graduação em Interunidades Estética e História da arte, FFLCH/ECA/FAU, 2008.
Créditos na imagem: HÉLIO Oiticica. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa48/helio-oiticica. Acesso em: 01 de fevereiro de 2023. Verbete da Enciclopédia.
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Paula de Souza Ribeiro
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