A morte do Papa Francisco, em 21 de abril, deixou um buraco no meio da nossa esfera pública, preenchido apenas com pedaços de tristeza misturados com espanto, mas também reflexões interessantes e uma série de debates dispersos na internet. Embora o mundo tenha um cheiro laico, muitos diriam ácido e até encharcado de um desencantamento inabalável, como imaginava o sociólogo Max Weber, um líder religioso como o Papa carrega uma insígnia especial, marcante. Ou seja, esse chefe de Estado do Vaticano, com sua residência imponente ao oeste do rio Tibre, não é uma figura coadjuvante no teatro da vida, mas uma presença forte, famosa e carismática, com um destaque especial ao argentino Jorge Mario Bergoglio, o Franscisco. Com um nome meigo, muitos diriam até revolucionário, é impossível negar o seu impacto durante os seus doze anos de dedicação ao papado. Seja com olhos céticos, religiosos, ou uma mistura dos dois, Francisco era um personagem estratégico no tabuleiro geopolítico mundial, um grande mediador de conflitos. Depois da sua morte, acompanhada de uma reflexão sobre o seu legado, alguns debates reacenderam nos bastidores, como fogo no meio de uma floresta seca: “Qual é o status político desse líder católico?” Sem dúvida, ele é uma figura decisiva, repleta de adjetivos agradáveis, desde “generoso” até “humilde”, passando por “gentil” e “carismático”, mas o termo “progressista” faz parte desse dicionário? Apesar do que muitos acreditam, eu tenho dúvidas, muitas dúvidas… não vou mentir. Essa interrogação na minha cabeça pede uma válvula de escape, algum ponto de fuga… esse ensaio. Por isso, me empreste alguns minutos do seu precioso tempo, vamos mergulhar em algumas especulações sociológicas, temperadas com um pouco de pimenta filosófica. Nessa gastronomia de significantes, nessa panela de palavras, talvez minha comida metafórica alimente sua fome epistêmica… talvez!!!

“Quem foi o Papa Francisco?”, pergunta você, leitor curioso. Essa é uma dúvida complexa (eu sei), incapaz de ser preenchida por uma resposta aleatória, mas eu preciso arriscar alguma coisa, alguma definição, por mais simplificada que seja. Dentro de uma análise marxista, Francisco “liberalizou” as muralhas da igreja católica, oferecendo mais centralidade ao indivíduo, ao mesmo tempo que cutucava instituições, rituais e o próprio senso de sagrado. Até aqui tudo bem, nada de novo ou estranho no seu prato de expectativas, mas uma certa pergunta inevitável pede passagem: até onde uma religião ancestral como o catolicismo pode ser esticada, até onde o indivíduo pode ser centralizado? Existe, talvez, um limite em seu potencial de resiliência? Eu não sei você, mas sinto no ar um cheiro esquisito, como uma suspeita em decomposição. Provavelmente, um Papa é incapaz de satisfazer o nosso apetite progressista, ao menos aquele acostumado com dietas sem glúten, sem lactose, 0 açúcar, ou seja, o progressismo liberal. O indivíduo religioso não consegue assumir a centralidade desejada por nós, mesmo nesse mundo diverso e flexível como o nosso, uma atmosfera completamente privatizada. Sejam critérios estéticos (bonito e feio), éticos (certo e errado), epistêmicos (verdadeiro e falso) ou ontológicos (real ou ficção), tudo é reduzido ao sumo das privatizações, ou seja, “cada um tem o seu, cada um permanece em seu cercadinho identitário e viva a diversidade… viva a democracia!!!”. Nesse espaço onde o indivíduo ganha a insígnia de instituição mais poderosa, enquanto todas as outras permanecem em ruínas laicizantes e construtivistas, um Papa sempre encontra dificuldades de ajuste, mergulhado até o pescoço em uma tensão inevitável: o indivíduo x a transcendência.

Se, por um lado, Francisco era respeitoso com homossexuais em seus discursos, revelando uma tolerância rara no universo cristão, por outro, frases como “a Ideologia de gênero é uma das mais perigosas colonizações ideológicas hoje”, além da sua crítica declarada ao aborto, transparecem o forte contorno estrutural da Igreja católica, um limite na centralidade oferecida ao indivíduo, ou seja, um tipo de pedra no meio de sua suposta resiliência. O Eu Soberano, base das nossas democracias liberais, e do que muitos chamam de Nova Esquerda (Wright Mills), sempre encontrou obstáculos nas quatro grandes religiões do planeta: Hinduísmo, Cristianismo, Judaísmo e Islamismo. Seus pilares ideológicos não foram forjados por mãos contingentes e empoderadas, com humanos flexíveis repletos de hermenêutica da suspeita, mas por dedos divinos, ancestrais e místicos. Apesar de todas as tentativas de ajuste, ou de flexibilização, o coletivismo dessas religiões sempre oferece resistência ao “indivíduo institucionalizado” das democracias, um conflito impossível de ser resolvido, não importa o Papa em jogo. Ou seja, essa variação de flexibilidades ideológicas existe no universo dos candidatos ao papado, sem dúvida, como ficou muito claro no filme “Conclave”, de Edward Berger, mas esse adjetivo “flexível” tem um limite constitutivo, um teto, digamos assim. Isso torna qualquer traço supostamente “progressista” apenas uma miragem no deserto “ocidental”, nada mais do que uma projeção de indivíduos sedentos por progressismo. Sem dúvida, algumas minúsculas poças de água podem ser descobertas aqui e ali, como em Franscisco ou no novo Papa eleito (Leão XIV), mas nossa sede liberal permanece, sempre permanece.

Em outras palavras, não importa muito o Papa em jogo, a não ser superficialmente em debates de Blog e vídeos divertidos no Instagram. Sem dúvida, ele pode centralizar um pouco mais o indivíduo, como esperamos em sociedades liberais, incluindo gays, por exemplo, embora exista sempre um limite estrutural inviolável na própria religião, um conflito interno entre um indivíduo em busca de reconhecimento, de um lado, e grandes instituições e rituais com regras transcendentes, sólidas e coletivas, do outro. O que as democracias liberais desejam é um Papa liberal, alguém 100% amistoso com as determinações do indivíduo, assim como suas escolhas, gênero, fé, costumes, comportamentos, mas esse percurso é uma doce fantasia, talvez até um delírio. Existe um limite no jogo das flexibilidades: “Até onde o catolicismo pode centralizar a figura do indivíduo, qual é o ponto de ebulição dos seus valores mais ancestrais e sólidos, a que temperatura eles começam a evaporar?” Da mesma forma que existe um limite na elasticidade de um saco plástico, um sistema ideológico1 como o cristão apresenta igual fronteira. Algumas marcas aguentam um pouco mais do que outras, isso é um fato, embora todas rasguem quando o peso excede o limite estrutural. Por isso, comparar Francisco a um progressista não faz muito sentido, já que uma religião sólida como o cristianismo dificilmente se conecta com movimentos de esquerda, pelo menos não com seu perfil liberal. Sem dúvida, o Marxismo foi um camarada de muitos cristãos, um casamento possível nas décadas de 60, 70 e 80. Quem nunca participou dessa cerimônia metafórica? Eu, por exemplo, já presenciei várias… ainda recebo convites. A teologia da libertação é um dos frutos da lua de mel, o efeito imediato de um romance proibido. Embora com um corpo meio assimétrico, desproporcional, essa filha tinha os olhos bonitos da mãe e o sorriso contagiante do pai. Sendo discursos coletivistas, com uma base material compartilhável, o cristianismo e o marxismo encontraram pontos de contato, sem dúvida. Paulo Freire, Leonardo Boff, Frei Beto, são apenas algumas possibilidades nesse campo de convergência. Mas, com a versão de esquerda liberalizante é impossível chegar a um acordo, já que nesse novo progressismo o indivíduo é a instituição mais poderosa, ao transformar ele (ela ou elu) na matriz absoluta de realidade. Nesse cenário, não existe lua de mel, apenas um relacionamento tóxico entre um narcisista e um pervertido.

 

 

 


NOTAS

 

1  “Ideologia” aqui não corresponde a uma leitura marxista, a um sinônimo de má-consciência, mas simplesmente um conjunto de valores, símbolos e comportamentos compartilhados por um conjunto de pessoas.

 

 

 


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