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Ensaios e opiniões

O conflito entre a imaginação e a história em sala de aula

A fertilidade da imaginação da consciência humana é ilimitada. O auge dessa fertilidade pode ser identificada em jovens dos seis aos quinze anos que, por coincidência, fazem parte do período escolar e se deparam com a matéria de história medieval. Durante a fase infanto-juvenil suas mentes entram em contato com inúmeras obras audiovisuais, um fator que é considerado como alimento dessa fertilidade, além de estimulá-la. Por vezes, o imaginário das crianças cria um aspecto sobre o período medieval baseado na experiência de assistirem aos filmes hollywoodianos. Obras que possuem um compromisso demasiado com o entretenimento do público, exploram formas específicas que acentuam o objetivo da obra a ser criada e, não necessariamente, com a vertente historiográfica. Logo, o presente trabalho tem por finalidade exibir o conflito que o imaginário preconcebido sobre a época medieval causa ante o imaginário que o professor cria em sala de aula.

O conceito “Idade Média” foi gestado por um duplo fenômeno, tanto cultural quanto religioso, que se constitui da vontade dos humanistas – do atual Estado da Itália – desde o século XIV, de retornar às fontes da antiguidade clássica a fim de atingirem a pureza que eles acreditavam existir no período e autenticidade filológicas1. Abordagem que favorece o empreendimento da Reforma Protestante de retornar ao texto sagrado, reencontrar o cristianismo original e a igreja católica de tornar-se indiferente aos ideais evangélicos. Logo, a “Idade Média” será, adiante, identificada como decadente intelectual, desenvolvendo uma posição artística e temporal entre dois cumes, a Antiguidade e o Renascimento. Portanto, a terminologia possui como inventores os humanistas do século XIV. O século XVIII assume e desenvolve a divisão da história (cronológica concebida como Antiguidade, Idade Média e Tempos Modernos) a fim de celebrar a vitória simbólica das luzes ante a obscuridade e a ascensão de uma civilização refinada.

As representações na época Moderna sobre o período medieval transcendem a metáfora de terem superado o tempo médio e assumem formas específicas para fins instrumentais. Por exemplo, na política em que, numa perspectiva de ressurreição integral do passado, indivíduos remotos surgem do período medieval como heróis que personificam e encarnam as virtudes imortais da França. As práticas instrumentais, presentes até hoje na política, tem por fim, construir uma herança cultural conveniente às personificações necessárias para cobrir de inspirações metafísicas nos indivíduos – dentre os quais um sentimento próprio de nacionalismo. Nessas práticas se constroem noções próprias sobre a época medieval2, comumente inventadas. O fenômeno da invenção de tradições manifesta-se, via de regra, em contextos similares; a fim de contribuir para a instrumentalização do passado.

O conceito “tradição inventada” em um sentido amplo, do autor Eric Hobsbawm, em sua obra “A invenção das tradições”, acende o fator essencial que o permite analisar tanto tradições criadas, quanto as repetidas. Isso se insere de maneiras distintas e não surge de tempos antigos. Há uma característica fundamental para inventar uma tradição: a capacidade de aplicar na criação o caráter singular de invocar para si um passado histórico e estabelecer uma continuação histórica artificial. Esse exercício de invenção na prática significa que as tradições inventadas são reações não espontâneas diante de circunstâncias novas, que assumem uma forma que se relaciona com as circunstâncias anteriores ou estabelecem um passado próprio através da repetição ininterrupta e paulatina. Logo, o caráter referencial da tradição depende de um sentimento histórico em relação ao seu uso.

As instituições políticas, movimentos ideológicos e grupos que não possuem antecessores empreendem a criação de um passado antigo que vá além da continuidade histórica por intermédio da lenda ou por invenção. Pode-se observar que Stalin utilizou do herói Alexandre Nevsky e sua batalha contra os cavaleiros teutônicos para inventar uma identidade guerreira para o povo às vésperas do confronto ante os alemães. Há também a criação de novos símbolos e acessórios, como os hinos, as bandeiras e a personificação da nação por intermédio de símbolos próprios de identificação. O fim prático da tradição inventada consiste em sua capacidade de coesão social, instrumentalizado o passado contido na continuidade histórica a fim de legitimar suas ações.3

Portanto, há formas de invenção da representação do passado a fim de instrumentalizá-lo para o tornar coercitivo ou vendável para um grande público. O cinema é um, dentre os inúmeros formatos que os meios assumem para esse fim. A sétima arte possui um poder de propagação enorme que possui como objetivo principal o entretenimento, sendo capaz de inventar imaginários através de suas obras. Por exemplo, o satírico filme “Em busca do cálice sagrado”, explora os elementos da Idade Média para criar uma obra de humor, que utiliza das práticas do passado – que são inadequadas aos contemporâneos – a fim de confeccionar personagens estúpidos ao público4. Logo, o interlocutor inventa um imaginário equivocado sobre o período medieval, por meio de obras que exploram os estereótipos sobre o período. Logo, o aluno que as assiste acredita em uma forma inventada por filmes similares a matéria que está estudando, elemento que dificulta a sua compreensão do período, pois as práticas e os significados da época já estão construídos no imaginário do aluno.

O conflito entre o imaginário que os longa-metragens inventam e o proposto pelo professor é prejudicial para a educação. Esse conflito pode criar equívocos que se generalizam no imaginário. O acesso à internet facilita o consumo desses filmes, que se contrapõem ao tempo limitado das aulas, o que pode minimizar o conflito e o imaginário inventado das obras prevalecer. Logo, é necessário estimular a pesquisa e o senso crítico dos estudantes para verem os conteúdos que tratam do passado medieval, como forma de sanar o conflito em prol da educação. Uma alternativa seria transmitir os filmes em sala de aula, para que o professor possa desconstruir os equívocos.

 

 

 


NOTAS

 

1  “Resulta da vontade manifesta dos humanistas italianos, desde o século XIV de retornar às fontes da Antigüidade Clássica em sua pureza e autenticidade filológicas, livre das escórias e das alterações lingüísdcas provocadas pelas glosas posteriores e os ‘sorbonnards’.” AMALVI, Christian. Idade Média. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (Dir.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2002. Página 537.

2  “Desde o início, a noção de Idade Média se descolou da convenção cronológica que ela estava destinada a representar, tornando-se um conceito, o receptáculo de idéias contemporâneas sobre o passado.” CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo, História Medieval, São Paulo, editora contexto, 2019. Página 144.

3  “Isso porque toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão social.” HOBSBAWM, Eric, A invenção das tradições; paz e terra; sexta edição; Rio de Janeiro; 1997. página 21

4  “Não são rara as vezes em que ele é evocado para realçar aspectos negativos da atualidade: a tortura, a intolerância religiosa, a submissão da mulher e os crimes hediondos, entre outros. Ainda que nenhuma dessas práticas seja uma exclusividade daquele período, elas são identificadas como ‘medievais’.” CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo, História Medieval, São Paulo, editora contexto, 2019. Página 138

 

 

 


REFERÊNCIAS

 

HOBSBAWM, Eric, A invenção das tradições; paz e terra; sexta edição; Rio de Janeiro; 1997.

Monty Python em busca do cálice sagrado; direção: Terry Gilliam, Terry Jones; Python (Monty) Ltd; Gales, Escocia; Michael White Productions, National FIlm Trustee Company; 1975; Netflix.

AMALVI, Christian. Idade Média. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (Dir.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2002

CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo, História Medieval, São Paulo, editora Contexto, 2019

 

 

 


Créditos da capa da imagem: DIÁRIO CAUSA OPERÁRIA. Monty Python. Acesso em: 18 de dezembro de 2024. Link: https://causa.org.br/2022/montypython-e-monarca.

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