A Constituição Federal de 1988, também chamada de “Constituição cidadã”, completou 30 anos de existência em outubro de 2018. Em termos jurídicos representou, pela primeira vez na atribulada história da política indigenista no Brasil, o esboço de garantias legais voltadas para o presente e para o futuro das populações indígenas, abrangendo o reconhecimento de direitos socioculturais e territoriais, além do abandono de orientações assimilacionistas e integracionistas que marcaram períodos anteriores na história brasileira. Contudo, passadas mais de três décadas da promulgação da Carta Magna e com a ascensão ao poder político de grupos de extrema direita no início de 2019, tais direitos, arduamente conquistados ao longo de séculos, encontram-se seriamente ameaçados. O objetivo do presente artigo é, pois, discorrer sobre o desafio da História Indígena e de seu Ensino no Brasil, pretensamente uma “democracia racial”, mas que se mostra, ainda, um país racista, preconceituoso, desigual e excludente.
O artigo é, também, uma singela homenagem ao saudoso John Manuel Monteiro (1956-2013), ex-professor da Unicamp e formador de toda uma geração de pesquisadores em História Indígena. Em meados da década de 1990, Monteiro publicou o texto O desafio da História Indígena no Brasil, em uma coletânea sobre a temática indígena nas escolas (LOPES DA SILVA; GRUPIONI, 1995). Em seu texto, John Monteiro apontava que se a chamada nova História Indígena no Brasil havia “brotado” em uma particular conjuntura entre a Antropologia e o Indigenismo, é porque encontrara um “campo fértil” para crescer a partir de, pelo menos, três elementos: a tendência de aumento demográfico entre as populações indígenas, verificada especialmente entre o final do século XIX e o início do século XX; o avanço do movimento em prol dos direitos históricos dos indígenas; um renovado diálogo entre a Antropologia e a História, que propiciou um aumento significativo de estudos sobre a história dos povos colonizados, oferecendo contrapontos a partir de dinâmicas locais e regionais para a História Indígena.
Equivoca-se, porém, quem pensa ser a História Indígena uma área particular de estudos, reduto de especialistas preocupados com populações diminutas e com trajetórias espaço-temporais de pouca ou nenhuma expressividade. Diferentemente do que se pensava no século XIX, em que aos indígenas era reservada apenas a Etnografia e não a História, as populações indígenas se veem cada vez mais no palco dos acontecimentos históricos, deixando os bastidores e o papel de coadjuvantes para assumirem também o lugar de protagonistas, na feliz expressão cunhada por Maria Regina Celestino de Almeida (2010). A história brasileira, bem como a americana, está marcada indelevelmente pelas presenças indígenas, além das presenças de africanos e de seus descendentes e de migrantes de outros “mundos”, europeus e não europeus. Isso significa que todas as histórias estão dolorosamente entrelaçadas, fundadas na incompreensão, no etnocentrismo, nas tentativas de assimilação e de integração, no extermínio físico e cultural, nas resistências e re-existências de coletividades ora consideradas uma ameaça à ordem, ora apontadas como “estorvo” e “entrave” ao desenvolvimento e ao progresso. Assim como no passado, assiste-se hoje a novas tentativas de “civilização” e de “redenção” das populações indígenas, dessa vez amparadas por frases de efeito como “O índio quer ser o que nós somos, o índio quer o que nós queremos.”
As populações indígenas que vivem atualmente no Brasil hão de sobreviver a mais essas e outras tantas tentativas de extermínio físico e cultural, de desrespeito pelos seus jeitos de ser e estar no mundo, de “integração” e “assimilação” promovidas pela ação de missionários cristãos e/ ou de agentes públicos. Os indígenas que sobreviveram aos últimos 509 anos de contatos vivem em verdadeiras “fronteiras” étnicas, negociando suas identidades, lutando para permanecer quem são, para decidirem o que desejam ser. Na composição dessas múltiplas formas de viver e representar a vida, distintas da lógica (chamada) Ocidental, as lembranças e as tradições orais são importantes componentes daquilo que pode ser chamado de memórias sociais, constituídas a partir da sabedoria dos “antigos” e reconstituídas por meio de performances e rituais. Há muito o que ser “descoberto” sobre os indígenas: suas trajetórias registradas em documentos escritos, em narrativas orais, em imagens que despertaram a curiosidade e, muitas vezes, a repulsa dos que vieram da Europa. É dever de todo os historiadores conhecer e reconhecer tais trajetórias, sem obliterá-las ou apequená-las.
O desafio da História Indígena e de seu Ensino no Brasil é, portanto, duplo: se por um lado tem-se a lei 11.645/2008, com recém-completados 10 anos de existência, que obriga ao estudo das histórias e culturas indígenas e afro-brasileiras, transversalizado em todos os componentes curriculares escolares da Educação Básica, por outro ainda é incipiente o número de pesquisas e estudos sobre o Ensino de História Indígena no país. Assim como Monteiro apontava em seu texto de 1995, “é de se estranhar a pouca atenção dispensada aos povos indígenas pelos historiadores” (p. 221), estranha-se igualmente a pouca atenção dada à diversidade étnico-cultural no Ensino de História. Ainda se pensa em termos eurocêntricos sobre o quê ensinar em História, relegando indígenas e outras populações não europeias a um segundo ou um terceiro plano. Apenas muito recentemente tal temática foi motivo de debates entre os pesquisadores da área, especialmente por conta dos embates sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), cuja primeira versão, com todas as suas limitações e deficiências, ousou propor uma História do Brasil diferente daquela que vinha sendo oferecida nas escolas, pelo menos desde o século retrasado.
Pensar a História Indígena articulada às histórias de outras gentes que chegaram aos territórios que seriam chamados de Américas e de Brasil, requer a adoção de pontos de vista bem diferentes dos que vem sendo abraçados há pelo menos um século e meio no país. São necessários esforços no sentido de se descolonizar conceitos, atitudes e procedimentos, afim de que pensamentos e ações sejam transformados, tornando-se, de fato, inclusivos. Sabe-se que isso não ocorrerá de uma hora para outra, mas é visível o quanto ainda é desafiador pensar a História que não seja aquela preconizada por franceses dos Oitocentos: quadripartida, dividida em Antiga. Medieval, Moderna e Contemporânea, balizada por marcos/ acontecimentos que envolvem as trajetórias no espaço-tempo de populações que habitaram o continente europeu. Haverá sempre aqueles que dirão que os brasileiros são tributários da cultura europeia, especialmente a ibérica, pois aqui se fala, majoritariamente, a língua portuguesa e adotaram-se as religiões cristãs, desde os tempos coloniais. Tal fala (falaciosa) escamoteia, entretanto, que língua e religiões foram impostas sob os signos da violência, da escravização, do desrespeito pelo diferente e da opressão.
Daí advém a enorme dificuldade de professores de História no Brasil lidarem com indígenas e outras coletividades em suas aulas. A formação de professores, as propostas curriculares, bem como a produção de materiais didáticos, notadamente os livros, estão eivadas por ideias de superioridade europeia sobre outros povos, podendo ser consideradas racistas e eurocêntricas. Foram “naturalizadas” as ideias de que ao se referir à História Antiga, por exemplo, está se referindo somente à Antiguidade na Europa ou no chamado Oriente Médio (sempre tendo o continente europeu como referência, inclusive geográfica). Aos indígenas há um “lugar reservado”: no “cenário do descobrimento” e em algumas tentativas vãs de resistência ao subjugo dos conquistadores. Estereótipos e preconceitos são veiculados e reiterados nas escolas brasileiras, ensinando a crianças, adolescentes e jovens que “índio é coisa do passado”. Geralmente “celebrados” no dia 19 de abril, cabe aos indígenas o papel de partícipes menores na constituição da sociedade e das culturas brasileiras. Ano após ano, rituais pedagógicos tratam “o índio” como exótico, folclórico, alvo da curiosidade de alunos que desconhecem suas próprias ascendências.
Em tal contexto, somadas as declarações estapafúrdias do (nem tão novo) presidente da República, o que se pode fazer para reverter um quadro de desconhecimento, de ignorância e de preconceitos generalizados? Em primeiro lugar, deve-se fazer valer a lei 11.645/2008, que não pode ser “letra morta” em um país como o Brasil. Não apenas os professores de História, mas os de todos os outros componentes curriculares escolares devem transversalizar os conteúdos com as histórias e culturas indígenas (além de africanas e afro-brasileiras). Em segundo lugar, cabe aos professores buscar informações corretas e atualizadas sobre a temática, uma vez que em muitos cursos de formação as histórias e as culturas indígenas são tratadas como “apêndices” da História (com H maiúsculo) e não merecem estudos e conhecimentos aprofundados. Finalmente, é preciso que o acervo de pesquisas e trabalhos que envolvam a História Indígena e o seu Ensino sejam colocados à disposição de toda a sociedade, que se rompam os círculos restritos de especialistas para que mais e mais pessoas conheçam, reconheçam, valorizem, respeitem e promovam o respeito à diversidade étnico-cultural ao longo da história do país.
As desculpas de que não se encontram materiais adequados ou de que a temática ainda se restrinja a teses, dissertações e monografias de difícil acesso ao público em geral, não se sustentam mais na atualidade. A Internet possibilita o contato com inúmeras informações que, selecionadas e estudadas adequadamente, permitem uma visão bastante abrangente e correta da História Indígena produzida no Brasil e no exterior. É importante não se perder de vista que houve avanços importantes nas últimas duas décadas e meia em relação à temática. Inclusive, nesse período, muitos indígenas, de diferentes etnias e provenientes de distintos lugares do Brasil, iniciaram estudos em nível superior e há um contingente expressivo de graduados e pós-graduados indígenas em diversas áreas do conhecimento. Isso significa que espaços/ lugares sociais outrora negados a determinadas coletividades hoje são ocupados e questionados por indivíduos tratados historicamente como marginalizados ou de “segunda categoria”. Os indígenas auxiliam, dessa forma, a repensar a História Indígena e o seu Ensino, trazendo aos debates outras lógicas, outras vivências, protagonizando o registro (escrito, oral, iconográfico, etc.) de suas existências em tempos e espaços outros.
Nunca será tarde para se rever ideias preconceituosas, atitudes discriminatórias, para se questionar formações tão eurocêntricas, para se relativizar as informações (equivocadas, estereotipadas) trazidas em propostas curriculares e em materiais didáticos que chegam às escolas. Em tempos sombrios como os que se vive no país é necessário reinventar-se como professor de História, acusado de “doutrinador” e marcado por outras alcunhas menos auspiciosas. Como diria o poeta Carlos Drummond de Andrade, “precisamos descobrir o Brasil”. Nesse processo de descobertas haverá a necessidade de se informar e formar novos pensamentos, novas ações a respeito da História Indígena. Sem esquecer que muitos foram “pintados” quando crianças, colocados para desfilar no “Dia do índio”, que participaram de aulas em que o “índio” era apresentado nos livros didáticos sempre com verbos conjugados no passado (“caçavam”, “pescavam”, “dormiam em redes”, etc.), criando estereótipos e formando mentes e corações que acreditam que “O índio quer ser o que nós somos, o índio quer o que nós queremos.” E o que, afinal, somos e queremos?
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. 167 p. (Coleção FGV de Bolso, 15).
MONTEIRO, John Manuel. O desafio da história indígena no Brasil. In: LOPES DA SILVA, Aracy; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (Orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º. e 2º. graus. Brasília: MEC/ Mari/ Unesco, 1995. p. 221-28.
Crédito Imagem: Retrato de três índios com cocar e arco e flechas, c. 1905. São Paulo / Acervo IMS. Vincenzo Pastore.
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Professor Giovani Silva, acabei de assistir a sua fala no nosso projeto de História (História em Tela) da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), do campus de Floriano-PI. Corri para ler seu artigo e fiquei encantado com sua lucidez ao falar sobre a nossa história e como ela negligencia os nossos primeiros habitantes. Que nosso pensamento europeizado fique cada vez mais para trás e que possamos “descobrir” o Brasil. E hoje, dia 24 de setembro de 2020, penso um pouco mais sobre o decolonialismo, graças a sua exposição oral. Parabéns!
Professor Giovani, agradeço a oportunidade de ler um artigo tão lúcido e visceral como o seu. Sinto a sensação dúbia de satisfação e incômodo por ter a certeza de que até hoje não compreendemos e, por isso mesmo, não valorizamos a nossa própria história. Afinal, somos desde cedo doutrinados por um sistema de educação excludente e alienante. Porém, a dedicação de profissionais como o Senhor em restaurar a história e corrigir injustiças, me instigam a continuar pelo mesmo caminho. Abraço!