[este texto é puro spoiler.]
Por que o Coringa não matou aquele anão? Segundo o próprio personagem, porque ele foi o único que nunca o caçoou naquela empresa de palhaços. Na verdade, ninguém mata anões em filmes, ainda mais a sangue frio. É uma norma oculta do cinema, pelo menos desse cinema produzido em estúdios americanos e distribuído pelo mundo há já quase uns cem anos. Anões eram empregados em cortes medievais, circos, shows de “bizarrices” e, parece, que Maria, a Louca, mãe de Dom João VI e avó de Dom Pedro I manteria uma anãzinha negra em sua corte que teria sido abandonada em Lisboa na rápida fuga da família real portuguesa para o Brasil em 1808. Pelo menos é o que mostra o filme Carlota Joaquina, dirigido por Carla Camurati. Por um misto de curiosidade, mistério, infantilidade inofensiva, diferença da norma e deus sabe mais o que, as pessoas portadoras do nanismo quando representadas em espetáculos, livros, filmes, cartazes, piadas e shows em geral são associadas pelo espectador a algo cômico, mas carismático, bizarro e grotesco, mas passível de controle. Portanto é possível salvar a cara do anão e, ao mesmo tempo, fazer a velha piada do anão, momento que parece mais arrancar risadas da sala de cinema, quando o Coringa comete o seu quinto assassinato, executando um colega de profissão que lhe havia cedido um revólver que mudara sua vida. Matar um anão a sangue frio seria algo inédito na história do cinema Cinemark e, seguramente, não era algo corrente anteriormente. Mas a opção do diretor foi a tradicional. Mais, fez o público se identificar com aquele anão e, ao mesmo tempo, rir dele, o que disfarça e até nega essa identificação. Mas ela está lá. Somos todos o melhor amigo do Coringa. Fica aí a velha piada e a velha representação do anão.
Nesse sentido, a originalidade do filme do Coringa estaria em outro lugar. Um filme tem de ser original? Bem, teoricamente essa é uma característica dos produtos de arte (livros, quadros, filmes, músicas etc.), mas não apenas deles, solicita-se, também, que as políticas sejam originais, novas, modernas, atualizadas, up-to-date, também a economia deve se guiar pela novidade, o empreendedorismo, a nova economia, a nova previdência, o ultimo pensamento econômico etc., da mesma maneira que a ciência deve sempre trazer novas descobertas e a moda revelar novos looks e novas mercadorias de consumo. Dessa forma, a demanda por originalidade, novidade, surpresa e distinção com o passado é algo que marca a vida contemporânea em geral e não apenas a nossa apreciação de filmes e afins. No caso do Coringa ou Curinga, a sua suposta novidade estaria imersa no campo cinematográfico que trata de personagens e universos de revistinhas ou HQ’s adaptadas para as telas, gênero que há décadas vem se reproduzindo incessantemente e, confesso, não sou muito adepto. Antes se optava pelo protagonismo dos heróis dessas revistinhas, agora, foi-se para o lado dos “vilões”. Pelo sucesso do filme, certamente virão por aí Pinguins, Duas Caras, Charadas, Chapeleiros Malucos e outros, para ficar apenas no universo do Batman, onde os “vilões”, em sua maioria, habitavam o manicômio chamado de Asilo Arkham. Aliás, quando eu era criança, uma das séries que mais acompanhei das revistinhas do Batman foi a “Fuga em massa do Asilo Arkham”, há uns 25 anos atrás quando eu ainda lia HQ’s.
As adaptações para cinema desse tipo de literatura tendem, e isso fica claro no caso do Coringa, a reproduzir a estrutura narrativa dessas grandes empresas-universos de revistinhas (Marvel e DC Comic’s) marcada pela linearidade, curiosidade, viradas de enredo, surpresas e causalidades definitivas. Basicamente há o herói e o vilão. A riqueza, ou seja, a capacidade dessas narrativas em atrair um público massivo em diferentes países do mundo residirá em explorar essa oposição ao máximo, complexificando-a, criando novas perspectivas, caráteres, personagens, visões de mundo, enfim, da distância que iria do Super-Homem ao Watchmen. No caso do Coringa, é preciso fazer o vilão virar herói, o que não é muito difícil, uma vez que não existe uma categoria específica de vilão associada a uma prática qualquer (roubo e assassinato para ficar nos mais tradicionais). A história do cinema está repleta de heróis bandidos e vilões tecnocratas.
Fui ver o filme do Coringa instado por minha bolha-rede-social que celebrava a obra cotidianamente. Gente, portanto, que eu admiro, gosto, respeito a opinião e tendo a compartilhar dos mesmos valores. Aí eu fui lá num Cinemark da cidade de Uberlândia, interior de Minas Gerais, que é onde eu resido há uns meses. O filme está “todo” já na primeira cena. Será aquilo, humilhação e espancamento do protagonista que toma 7 remédios controlados e possui uma curiosa patologia nervosa de dar gargalhadas involuntárias quando sua mente entra em algum tipo de confusão mental que envolve a percepção de alguma injustiça, a experiência de uma ansiedade aguda, um nervosismo desmesurado e outras situações. Ele não gargalha quando está trabalhando em hospital de crianças com câncer, nem quando esmurra a porta para fazer a mãe lhe revelar seus segredos de infância ou quando mata alguém. Ele gargalha quando uma mãe o repreende por fazer caretas a sua filha num ônibus, acreditando que o protagonista estaria importunando a criança; quando vai se apresentar num bar de stand-up comedy e já começa a rir antes de fazer a piada; quando três homens começam a assediar uma mulher dentro do metro. Várias outras vezes, é claro, essa gargalhada será disparada, porém, me lembro melhor dessas cenas. Que são cruciais no filme: a primeira é quando ele apresenta um cartão à senhora e revela sua doença, a segunda é quando seu plano B de trabalho é um fracasso e ele começa a ter delírios e a terceira é quando ele comete seu primeiro triplo homicídio.
Não há nada de errado ou certo em revelar todo o filme na primeira cena ou melhor toda a narrativa, afinal um filme possui sequencias de imagens, perspectivas, planos, trilhas sonoras, fotografia, uma série de recursos técnicos que compõem essa narrativa, mas que, ao mesmo tempo, possuem uma independência mais ou menos relativa dela, o que ficará mais explícito dependendo da capacidade realizadora do cineasta. Neste pequeno texto, não falarei dessas técnicas pois o próprio filme não parece chamar atenção para elas, adotando uma perspectiva de enquadramento realista e padrão, não se importando com um tema marcante de trilha sonora (com exceção da música do Cream, “White Room”) e se limitando a tomadas fotográficas do Coringa de qualidade duvidosas. O filme não tem comprometimentos maiores com inovações formalistas. Assim, o analiso este em suas termos: a história narrada. Voltando ao “filme está todo na primeira cena”, é técnica narrativa do romance e da novela policial, e também do cinema, dispor “pistas” ao leitor/espectador para que ele mesmo desvende ou recolha certos “achados” ao longo do percurso a fim de, assim, ser ainda mais entretido na ficção. Aqueles que gostam de ver o mesmo filme algumas vezes sabem da diversão que é encontrar esses pequenos tesouros de percepção. Porém, isso aplica-se pouco ao filme do Coringa, porque todo mundo já sabe que ele é o Coringa. A questão é saber como ele vira o Coringa.
E é aí que o filme é uma linha de trem monocausal e maniqueísta ao extremo. É necessário dizer que, afora a sua curiosa patologia, o sofrimento mental que acomete o Coringa não lhe retira os sensos de proporção, realidade, justiça, alteridade, cálculo, escrita e leitura. A sua escrita é prejudicada pelo seu sofrimento excessivo, seus tormentos interiores, mas que ele reprime com altivez estoica, mirando-se como o homem da casa a cuidar da sua mãe, como ele mesmo imagina, ao assistir seu programa de televisão favorito e que lhe arranca um sorriso de satisfação. Esse programa era um típico talk show americano do estilo Jô Soares, cujo apresentador será assassinado ao vivo pelo Coringa, após passar o vídeo de sua apresentação fracassada de stand-up show em rede nacional. O vídeo fez sucesso, o coringa convidado e ali ele confessa seus crimes dizendo que mesmo o seu ídolo que o fazia sonhar só queria rir dele e o humilhar como o resto do mundo. Esse é um, dentre os vários movimentos da oposição maniqueísta do filme: assim ele é recusado em sequência pelo trabalho, pelos colegas, pela assistente social, pelo governo que cancela a proteção social, pela vizinha que ele por um olhar ficou apaixonado e começou a delirar uma relação com ela, pelo milionário pai que ele acreditava ter, por fim, ele descobre que a mãe dele guarda em seu passado um mundo de psicopatia, abusos infantis e violências de todo tipo, realizando o filme de modo agudo o mito do amor materno. Confesso que fiquei surpreso de ele não ter sido traído ou, como se diz no Brasil, chifrado pela própria namorada imaginária.
Foi difícil para mim encontrar essa complexidade suposta que muitos viram no Coringa. Ela certamente existe e a recepção de uma obra é, para um historiador, uma das coisas mais importantes para a compreensão da mesma. Mas eu não a encontrei na minha leitura. Do outro lado do Coringa, está o lado do mal. A família Wayne que domina a cidade divulgando um ideal de meritocracia e empreendedorismo em meio a uma sociedade pauperizada, suja, em que super-ratos precisariam de super-gatos para serem combatidos, conforme piada do apresentador do talk show. Há pouca referência porém, à luta dos trabalhadores, dos desempregados, dos indignados etc. É uma pobreza genérica oposta a uma riqueza genérica, como nos contos de fadas refeitos no mundo moderno. Não os contos populares anteriores, em que a marca era a fome, o abandono de crianças, a violência sexual e familiar. É o mundo das fadas depois dos Irmãos Grimm.
Em sua narrativa linear e monocausal o Coringa vira símbolo para esses desalentados que aparecem sob o signo da multidão. Seu triplo homicídio de jovens empresários capitalistas parecia tocar a pobreza genérica da cidade sobre a justiça daquele ato. Isso dá a atenção ao Coringa que ele nunca teria tido. Agora ele existe, uma coisa da qual teria duvidado ao longo da sua vida. Foi um assassinato para o bem. O público no cinema aprova. Mesmo que, simbolicamente, é um suicídio. Pois o cinema não é aquele pobre genérico do filme. Esse pobre genérico não existe. Agora há pouco presenciei um espancamento no Rio de Janeiro, certamente o mais pobre era o ladrão morador de rua, mas não havia rico ali também. Foi o segundo em 4 dias. A multidão ou coisa que o valha não é genérica em sua efetividade. Se ela existe realmente para além das teorizações contemporâneas ela é, antes, um ponto de partida do que de chegada. Como as manifestações de 2013 que em poucos meses dividiram-se conforme suas orientações políticas.
Assim, haveria um componente extremamente comprometedor na narrativa política do Coringa, aliás, algo tipicamente recorrente nas narrativas do cinema norte-americano e também das histórias em quadrinhos da DC e da Marvel, que faz da luta social genérica de pobres genéricos contra ricos genéricos a “obra” de um sujeito louco, de alguém que perdeu a razão e que, portanto, não teria raízes na sociedade capitalista, mas seria apenas fruto de um momento de crise ou de super-ratos ou de falta de “empatia” no mundo. Isso faz com que o filme, além de ruim, seja reacionário.
Atento às recepções, sei que a maioria das leituras são bem distintas dessa que faço. Ainda bem. E, no Chile, há gente nas ruas com máscaras do Coringa, será que vai ter aqui também?
Créditos na imagem: Reprodução.
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Thiago Lenine
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