O Incorreto no “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”

 

NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. 2 ed. São Paulo: Leya, 2012. (Primeira edição em 2009), versão ebook.

 

Apresentação

 

A leitura de livros de História permite uma compreensão mais profunda do presente.

O que se pensa a respeito do passado orienta decisões atuais e futuras. Daí a importância de se criticar o livro “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, que apresenta graves deficiências de pesquisa e interpretação.

Cometer erros não é grave, todos que escrevem estão sujeitos a isso. O problema realmente grave é que nesse livro a História está a serviço da propaganda de preconceitos.

Já foram feitas análises teóricas da produção de Narloch e de outros autores da História Pública brasileira. Para o leitor que queira conhecer esse debate, uma sugestão é começar pela leitura do artigo de Jurandir Malerba, cuja referência bibliográfica completa, tal como os demais autores abaixo citados, encontra-se ao final do presente texto.

A análise que desenvolvi é de natureza metódica. Li os capítulos do “Guia politicamente incorreto da história do Brasil” e consultei as fontes utilizadas, mostrando as lacunas e manipulações das interpretações originais.

A noção de “verdade” em História relaciona-se a esses procedimentos. É preciso compreender o contexto de produção da fonte e seu conteúdo. Reconhecer que o relato histórico é sempre uma aproximação do real não significa que afirmações absurdas têm o mesmo valor das análises honestas.

Tendo em vista que o livro foi publicado em 2009, evitei utilizar referências bibliográficas posteriores a essa data.

Para cada capítulo ou tema, sem dúvida, haveria centenas de referências complementares, mas não sobrecarreguei o texto com citações, o que afastaria a maioria dos leitores.

Cabe também esclarecer a razão dessa resenha tardia, quase dez anos após o lançamento do Guia. A razão disso é a percepção de que as aberrações e preconceitos afirmados no livro de Narloch estão sendo assimiladas como “conhecimento”, o que implica no risco de chegarem às salas de aula.

É preciso, portanto, que a comunidade acadêmica se manifeste mais incisivamente a respeito dos riscos desse tipo de pseudo-história. Essa resenha é apenas uma pequena contribuição nesse sentido. Espero que ela estimule outras iniciativas semelhantes e mais abalizadas.

 

Introdução

A melhor forma de contar uma mentira é incluir nela um elemento de verdade.

No “Guia politicamente incorreto da história do Brasil” são mencionadas, como fontes, sérias pesquisas acadêmicas da década de 1990 em diante. Seria melhor que o autor não as tivesse utilizado, pois ao mesmo teria a desculpa de atribuir as deficiências do texto à bibliografia. Não é o caso. O “Guia politicamente incorreto da história do Brasil” utiliza ótimo repertório de livros e artigos de História.

O que torna ainda mais perversa a iniciativa, pois aproveita a credibilidade dessas fontes para agregar confiança ao texto. Quase sempre o conteúdo da bibliografia utilizada é distorcido para justificar uma interpretação que “choque” o leitor, tal como uma manchete de um jornal sensacionalista. Não sabemos ao certo a intenção do autor. Talvez tenha querido apenas divertir o leitor com afirmações surpreendentes, mas o resultado final é decepcionante.

 

Parte 1 – Índios/ Os índios eram bêbados?

“Em 1646, os jesuítas que tentavam evangelizar os índios no Rio de Janeiro tinham um problema. As aldeias onde moravam com os nativos ficavam perto de engenhos que produziam vinhos e aguardente. Bêbados, os índios tiravam o sono dos padres. Numa carta de 25 de julho daquele ano, Francisco Carneiro, o reitor do colégio jesuíta, reclamou que o álcool provocava ‘ofensas a Deus, adultérios, doenças, brigas, ferimentos, mortes’ e ainda fazia o pessoal faltar às missas. Para acabar com a indisciplina, os missionários decidiram mudar três aldeias para um lugar mais longe, de modo que não ficasse tão fácil passar ali no engenho e tomar umas. Não deu certo. Foi só os índios e os colonos ficarem sabendo da decisão para se revoltarem juntos. Botaram fogo nas choupanas dos padres, que imediatamente desistiram da mudança.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH).

Assim começa o primeiro capítulo. Ele não distingue o período anterior e posterior à colonização.

Para entender essa diferença, é preciso lembrar que os jesuítas estimularam a transferência dos índios para proximidades de vilas e fazendas. Isso deu origem a um processo de aculturação. O alcoolismo foi um flagelo, dentre vários, trazidos por essa transformação.

Não por acaso, o livro começa um século e meio após 1500. O autor desconsidera os primeiros relatos, anteriores à aculturação da população local. Na Carta de Caminha, por exemplo, os índios rejeitam o vinho. Alexandre Marchant, que estudou o escambo no século XVI, não inclui o vinho e a aguardente como itens de trocas com os indígenas.

Conforme mostram pesquisas de Oswaldo Lima e Alfred Métraux, a bebida tradicional dos índios, o “cauim”, tinha fraquíssimo teor alcóolico. Além disso, era utilizada apenas coletivamente e em certas ocasiões (casamentos, nascimentos, festas comemorando a vitória na guerra etc.).

O europeu introduziu o hábito de beber sozinho e cotidianamente. Pior ainda: introduziu a aguardente, bebida destilada muitíssimo mais forte do que o cauim. Enfim, os índios não eram originalmente bêbados, mas a colonização, ao destruir seu modo tradicional de consumir bebidas alcoólicas, abriu caminho para que entre muitos deles esse problema surgisse e prosperasse.

 

Parte 1 – Índios/Era chato viver em aldeias?

“Em pleno período colonial, muitos índios deviam achar bem chato viver nas tribos ou nas aldeias dos padres. Queriam mesmo era ficar com os brancos, misturar-se a eles e desfrutar das novidades que traziam.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Só faltou dizer que eles gostavam de shopping center …

Seria interessante saber o que o autor entende por “achar bem chato viver”. Mas, conforme mencionamos, há sempre uma gota de realismo, mesmo nas afirmações mais absurdas do texto politicamente incorreto.

De fato, estudos antropológicos mostram que os povos indígenas, não só do Brasil, tendem a aceitar “novidades” trazidas por colonizadores. Marshall Sahlins, em estudo clássico sobre a economia das sociedades “primitivas”, mostrou que, nelas, homens e mulheres trabalham cerca de duas ou três horas por dia para garantir a sobrevivência. Se o europeu introduz uma nova ferramenta – enxadas de ferro, por exemplo -, os índios tendem a adotá-la para diminuir ainda mais o tempo de trabalho. Não fazem isso por serem preguiçosos, mas sim por não terem a acumulação de bens como um valor cultural. Além disso, a adoção de novos instrumentos não significava abandono da cultura original, nem desejo de viver entre os brancos. Mostra apenas que é possível haver trocas culturais sem violência, bastando que duas culturas não se imponham uma a outra.

Outra dúvida é saber se os índios “Queriam mesmo era ficar com os brancos”. Se isso existiu, por qual razão foi necessário tanto esforço dos jesuítas para convencê-los a se mudar para as proximidades das vilas e fazendas?! Se essa aproximação acontecia espontaneamente, por qual razão os bandeirantes tinham de ir caçá-los no mato?!

 

Parte 1 – Índios/Os índios destruíram a mata atlântica?

“Antes de os portugueses chegarem, os índios já haviam extinguido muitas espécies e feito um belo estrago nas florestas brasileiras. Se não acabaram com elas completamente, é porque eram poucos para uma floresta tão grande.

As tribos que habitavam a região da mata atlântica botavam o mato abaixo com facilidade, usando uma ferramenta muito eficaz: o fogo.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Há várias décadas, a confluência de estudos arqueológicos, botânicos e históricos revelou um dado surpreendente. Em razão de as sociedades humanas existirem há mais de 100 mil anos, quase todas as paisagens que hoje chamamos de “naturais”, na realidade, sofreram algum tipo de intervenção social. Várias espécies vegetais consideradas “nativas” foram espalhadas pelo homem. Uma savana pode ter surgido em razão de sociedades humanas; muitos animais também podem ter sido extintos em razão disso.

O impacto dessa descoberta foi tão grande que o filósofo Serge Moscovici chegou a questionar a existência da contraposição natureza/sociedade. A natureza, de acordo com esse ponto de vista, teria sido uma criação social.

Não é preciso abraçar essa tese radical para admitir que os índios brasileiros alteraram parte do meio-ambiente. O mesmo pode ser dito em relação aos antigos povos africanos, australianos, europeus ou esquimós, que também alteraram seus respectivos meio-ambientes.

Não existem sociedades compostas por homens-anjos pairando sobre a natureza – eis o grão de verdade da passagem citada.

O erro dela é o exagero.

Para fundamentar o texto acima, Narloch recorre ao livro de Warren Dean, A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Trata-se de um estudo pioneiro, de leitura recomendada. Ao se consultar essa obra, constata-se que os índios desmatavam, através do fogo, pequenas clareiras nas florestas. Essa parte era explorada e depois abandonada por um tempo que parece ter sido “de vinte a quarenta anos”, afirma Warren Dean.

A floresta podia, assim, pelo menos em parte se recuperar.

Segundo cálculos de W. Dean, cerca de 50% da Mata Atlântica foi queimada pelo menos uma vez ao longo do milênio anterior ao início da colonização portuguesa. Um detalhe dessa constatação chama a atenção: essas queimadas se distribuem em 1.000 anos! Para se ter ideia do que isso significa, basta dizer que no Brasil são registrados anualmente até 100 milhões de raios (descargas elétricas) durante tempestades. Um pequeno percentual desses raios dá origem a incêndios florestais. Portanto, se considerarmos na escala de milênios, é bem provável que as queimadas florestais decorrentes dos raios tenham sido mais frequentes ou pelo menos equivalentes às provocadas por índios, até mesmo porque esses últimos tentavam ao máximo controlar a área a ser desmatada.

Faço essa comparação para enfatizar que nunca existiu natureza estática e intocada.

Outro exagero do texto, não citado na passagem acima, é afirmar que os índios consideravam a mata um “inferno verde”. Não precisamos ir longe para desmentir isso. Basta ler o livro de Warren Dean, em que cita colonizadores dizendo que “Os índios são como feras da floresta”, são “um peixe no rio e uma raposa na mata” – a floresta era a casa deles.

Por último, mas não menos importante, a afirmação de que “os portugueses ensinaram os índios a preservar a natureza” também é falsa, pois o movimento ecológico surge apenas no século XIX. Conforme mostra José Amaral Lapa, a legislação portuguesa impedia apenas a derrubada da mata onde havia madeira a ser utilizada na construção de caravelas e outras embarcações.

Não era a motivação ecológica que inspirava a legislação colonial, mas o uso estratégico da madeira, que no início do século XVII já se mostrava escassa em Portugal.

Uma leitura politicamente honesta de Warren Dean mostra que em momento algum ele considera a destruição da Mata Atlântica causada por fazendas de açúcar e pecuária, ou pela exploração de ouro e diamantes, inferior à ação pontual da horticultura indígena.

Parte 1 –Índios/Os índios eram maus?

“Os historiadores já fizeram retratos bem diversos dos índios brasileiros. Nos primeiros relatos, os nativos eram seres incivilizados, quase animais que precisaram ser domesticados ou derrotados. Uma visão oposta se propagou no século 19, com o indianismo romântico, que retratou os nativos como bons selvagens donos de uma moral intangível. Parte dessa visão continuou no século 20. Historiadores como Florestan Fernandes, que em 1952 escreveu A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, montaram relatos em que a cultura indígena original e pura teria sido destruída pelos gananciosos e cruéis conquistadores europeus. Os índios que ficaram para essa história foram os bravos e corajosos que lutaram contra os portugueses.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

É difícil identificar, a partir desse texto, quais seriam os “historiadores” que retratam os índios “como bons selvagens donos de uma moral intangível”. Na ausência de fonte que dê suporte a essa afirmação, Narloch cita o sociólogo Florestan Fernandes. Basta ler o título do livro, “A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá”, para descartar a ideia de “bom selvagem”. Nele, Florestan dedica 70 páginas aos “ritos de destruição dos inimigos”, com relatos apavorantes de massacres de prisioneiros.

Também não é possível identificar, em “A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá”, os “relatos em que a cultura indígena original e pura teria sido destruída pelos gananciosos e cruéis conquistadores europeus”.

Como se trata de um estudo sociológico, baseado nas teorias norte-americanas funcionalistas, o enfoque de Florestan é comparativo, revelando o que há de comum e de diferente entre a guerra tupinambá e a europeia. Mostra, por exemplo, que a noção de chefia militar era fraca entre os índios, mas forte entre os europeus. Mostra também aspectos em comum, como o uso de tambores durante conflitos.

No “A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá”, o termo “expansão colonial” é citado apenas uma vez, mas como marcador cronológico, ou seja, como “época”. A palavra “exploração” é utilizada em relação aos dados da pesquisa ou ao meio físico. A expressão “colonialismo”, por sua vez, não é mencionada.

Como se vê, a referência a Florestan Fernandes é distorcida.

Uma compreensão mais justa da questão mostra que as sociedades indígenas estavam longe de ser modelos de perfeição. Isso, contudo, não justifica o genocídio a que foram submetidas.

 

Parte 1 – Índios/Os índios contaminaram os brancos?

“Apesar de pouca gente falar sobre isso, centenas de milhares de mortes devem ter sido causadas na Europa por males americanos. Ao chegarem à América, espanhóis, franceses, portugueses e holandeses penaram com doenças novas e as transmitiram pelo mundo. O antropólogo Michael Crawford, diretor do Laboratório de Antropologia Biológica da Universidade do Kansas, nos Estados Unidos, cita alguns desses males: purupuru, bouba e sífilis venérea, doenças infecciosas causadas por treponemas, novas cepas de tuberculose …” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

De acordo com o biólogo Jared Diamond, os contatos entre europeus e povos do Novo Mundo foram muito desfavoráveis a esses últimos.

A razão?! Os europeus tinham muito mais resistência microbiana do que os indígenas. Os colonizadores vinham de áreas que há milhares de anos domesticaram animais. Para se ter ideia da diferença, enquanto os primeiros domesticaram uma dezena de mamíferos, os índios brasileiros não haviam domesticado nenhum.

A domesticação implica na seleção dos animais e no cruzamento entre descendentes próximos, o que torna os bichos mais suscetíveis a doenças. Os cães de raça, por exemplo, têm mais doenças do que os vira-latas. Quanto mais cruzamentos consanguíneos ocorrem, maior é o risco do desenvolvimento de doenças. Algumas delas passam para os homens. Diamond denomina isso de “presentes letais de nossos amigos animais”. Os bois transmitiram o sarampo, a tuberculose e a varíola. Os porcos e patos transmitiram a gripe. Os cães, a coqueluche. As galinhas, a febre maligna.

Como essa domesticação ocorreu há muito tempo, os colonizadores desenvolveram resistência a algumas dessas doenças. A gripe raramente matava portugueses, mas era fatal entre os índios.

Em razão da domesticação de animais, o número de doenças trazidas pelos portugueses era bem maior do que as aqui encontradas. Além disso, ao estruturarem o tráfico de escravos, os colonizadores abriram mais uma via de contágio, como é o caso da febre amarela de origem africana.

Outra observação a ser feita é que a citação acima trata as Américas como um único território. Os índios brasileiros não tinham contato direto com os povos pré-coloniais do Caribe e da América Central. Então, é possível que muitas doenças “indígenas” dessas regiões tenham primeiro sido transmitidas a marinheiros, que as levaram a Europa e daí trouxeram para o Brasil.

Todos esses argumentos, de fato, não têm muita importância frente a um aspecto fundamental: não foram os índios que invadiram Portugal e aí contraíram novas doenças. Foram as caravelas que as trouxeram.

 

Parte 1 – Índios/Houve um genocídio indígena?

“Em 2000, um estudo do laboratório Gene, da Universidade Federal de Minas Gerais, causou espanto ao mostrar que 33% dos brasileiros que se consideram brancos têm DNA mitocondrial vindo de mães índias. ‘Em outras palavras, embora desde 1500 o número de nativos no Brasil tenha se reduzido a 10% do original (de cerca de 3,5 milhões para 325 mil), o número de pessoas com DNA mitocondrial ameríndio aumentou mais de dez vezes’, escreveu o geneticista Sergio Danilo Pena …” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Narloch aceita a estimativa de que desde 1500 a população indígena teria sido reduzida em 90%. Entretanto, a cifra de 350 mil indígenas registrada na pesquisa genética, realizada em 2000, retrata uma situação de recuperação desses grupos, em razão de políticas públicas implementadas na segunda metade do século XX.

Segundo dados da Funai, antes da multiplicação de reservas indígenas, a população indígena chegou a ser de apenas 70 mil indivíduos, o que representaria uma redução de 98,0%, tendo em vista a estimativa de 3,5 milhões índios no início da colonização.

Diante de tal constatação, é difícil não reconhecer o genocídio indígena. O artificio utilizado por Narloch para negar o genocídio é mencionar que “33% dos brasileiros que se consideram brancos têm DNA mitocondrial vindo de mães indígenas”.

Desse modo, sustenta que o que teria havido foi uma integração dos índios à sociedade colonial e não o extermínio deles. Houve mestiçagem e não genocídio. Como ocorre em outras passagens, aqui também há elementos aceitáveis misturados a outros não tanto.

Durante todo o período colonial, a população pobre espalhou-se pelo território, abrindo clareiras nas matas. Em razão de nem sempre representar uma ameaça, mantiveram contatos com os índios, inclusive via casamentos. Nas regiões açucareiras, devido à agricultura, os índios podiam ser assimilados como escravos. As índias também foram aí incorporadas, unindo-se a africanos, mestiços e brancos pobres. Muitas também foram raptadas em aldeias e estupradas, havendo até quem se orgulhasse disso, dizendo que gostava de pegá-las “a laço”.

A mestiçagem, portanto, existiu. Paralelamente a ela, ocorreram muitos massacres. Nas áreas de pecuária, por exemplo, o gado era visto pelos índios como um animal selvagem a mais, disponível para caça. Além disso, fazendas de pecuária não precisavam de muita mão-de-obra. Um homem montado a cavalo podia tomar conta de centenas de cabeças de gado. A conjunção desses fatores estimulou ações de extermínio indígena, como as ocorridas entre 1651 e 1704, no sertão nordestino. Eis o que afirma o historiador Pedro Puntoni: “longe de serem guerras de conquista e submissão de novos trabalhadores aptos ao manejo do gado, eram tendencialmente guerras de extermínio, de ‘limpeza do território’”.

A melhor forma de não ser enganado pela história politicamente incorreta, ou qualquer forma de história militante, é sempre lembrar que a realidade é complexa. Por trás dos “33% dos brasileiros que se consideram brancos têm DNA mitocondrial vindo de mães indígenas”, há muitos casos de amores nascidos do encontro entre caipiras e índias, mas também há guerras de extermínio de índios e sequestro de mulheres indígenas.

Quem consultar o texto do geneticista Sergio Danilo Pena, acima citado, constata a seguinte observação: “Os resultados obtidos demonstram que a imensa maioria (provavelmente mais de 90%) das patrilinhagens dos brancos brasileiros é de origem européia, enquanto a maioria (aproximadamente 60%) das matrilinhagens é de origem ameríndia ou africana”.

Em outras palavras, comprovou-se um grande número de brasileiros brancos descendentes de mulheres índias, mas não de homens índios, pois esses foram alvo de um genocídio.

 

Parte 1 – Índios/É bom pensar

Os índios não eram originalmente bêbados, não eram volúveis consumidores, não eram necessariamente maus, não eram desmatadores compulsivos, nem muito menos eram perigosos empesteados.

A visão do passado, baseada em preconceitos, pode perversamente influenciar decisões atuais e futuras. Fazer propaganda de preconceitos contra os índios é abrir caminho para que a sociedade deixe de apoiar políticas públicas de direitos e de reparação aos danos causados pela colonização.

Existiram muitos genocídios no passado, assim como existem muitos negacionistas no presente. Não seja um deles.

 

Parte 1 –Índios/ Os bandeirantes eram heróis?

“No variado elenco da história do Brasil, os bandeirantes ganharam recentemente o papel dos grandes facínoras, dos fura-olhos por excelência, dos arquicanalhas. Os mamelucos paulistas, que exploraram o interior do país em busca de ouro, pedras preciosas e índios, não eram uma nobre raça de gigantes, dizem os professores, e sim assassinos inspirados por ‘motivos deploráveis’, que incendiavam as aldeias onde os padres jesuítas viviam com os índios, praticavam execuções aleatórias e até mesmo jogavam o corpo de velhos, crianças e doentes para os cães.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Não existe pesquisa histórica sem controvérsia. Do passado sobraram apenas alguns vestígios, alguns documentos de arquivos, alguns itens da cultura material. Então, é necessário muito esforço para conseguir entender como as sociedades se estruturavam e as pessoas viviam.

A história dos bandeirantes é controversa. Eles quase não deixaram escritos do próprio punho. Narloch discute isso mostrando que muito da imagem negativa deles foi construída a partir de registros feitos por jesuítas, que em alguns períodos – não em todos – foram seus piores inimigos.

Imagine, leitor, como seria um texto sobre sua vida contata por seus inimigos? Com certeza, esse relato seria o pior possível, não é mesmo?!

Os historiadores escapam dessa armadilha criticando e comparando as fontes.

Esse foi o caso de John Monteiro, autor de um estudo clássico sobre os bandeirantes paulistas.

Monteiro percebeu que felizmente muitos documentos, além dos relatos azedos dos jesuítas, sobreviveram. Neles se mostra que nem tudo que os missionários escreviam era “mentira”.

Os inventários de bens após o falecimento dos bandeirantes é um desses casos. São documentos de natureza civil, produzidos em cartórios. Portanto, não controlados pelos padres. Tais documentos mostram que a sede dos bandeirantes por escravos índios era imensa: alguns chegavam a ter várias dezenas deles.

A escravização de indígenas, por exemplo, não era uma mentira, uma calúnia inventada pelos jesuítas contra os bandeirantes.

Na documentação da câmara municipal paulistana, destaca-se que, em 1615, na lista de prisioneiros trazidos de missões jesuíticas de Guairá, região que compreendia boa parte do Paraná, 70% deles são identificados como mulheres e crianças. Tal desequilíbrio sugere não só um interesse dos bandeirantes por índias – que melhor se adaptavam ao trabalho agrícola -, como também é sinal de que os guerreiros indígenas resistiram a invasão e foram massacrados.

A violência dos bandeirantes não é uma ficção. Se você a cultua, eles são seus heróis.

 

Parte 1 – Índios/É bom pensar

O grande desafio é entender a seguinte questão: se os homens não nascem necessariamente maus, o que os tornam maus?! O que fazia os bandeirantes cometerem atrocidades, que os índios respondiam com igual ou superior violência?

Uma forma de responder essa questão, ou pelo menos ter alguma esperança de respondê-la, consiste em dizer que as instituições das sociedades, ao conformarem os valores morais e éticos das pessoas, eventualmente produzem situações em que os homens se tornam maus e cruéis.

Ao adotar a escravidão, a colonização passou a depender de instituições fundadas na violência. Como São Paulo não produzia bens de exportação (o açúcar e café só foram aí produzidos nos séculos XVIII e XIX), quase não conseguia comprar escravos africanos, a alternativa a isso consistiu em capturar índios e índias.

O mesmo ocorreu no Maranhão, que dependeu de escravos indígenas da Amazônia.

Os bandeirantes, portanto, eram resultado do seu tempo e circunstância. Não devemos julgá-los a partir de valores atuais, mas também não devemos admirá-los.

 

Parte 2 – Negros/Zumbi, um herói?

“Zumbi, o maior herói negro do Brasil, o homem em cuja data de morte se comemora em muitas cidades do país o Dia da Consciência Negra, mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forçados no Quilombo dos Palmares. Também sequestrava mulheres, raras nas primeiras décadas do Brasil, e executava aqueles que quisessem fugir do quilombo”. (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Quem pesquisar a palavra “herói” no google encontrará os seguintes primeiros resultados: “mortal divinizado após sua morte; semideus”; “figura arquetípica, personagem modelo, que reúne, em si, os atributos necessários para superar, de forma excepcional, um determinado problema de dimensão épica”; “filho de um deus ou uma deusa com um ser humano”.

Bastam essas acepções para mostrar que o “herói” é, por definição, um ser mítico.

Geralmente se considera um “mito” como uma “mentira”. Mas essa definição é incompleta. Ela deixa de lado os aspectos positivos dos “mitos”, pois eles também podem servir de modelos de comportamento morais e de valores éticos.

Quanto contamos estórias de Pinóquio às crianças, sabemos que bonecos de madeira não falam. Também sabemos que o nariz não cresce à medida que se conta uma mentira. Porém, não sentimos remorsos ao contarmos essas estórias, pois o importante é que elam condenam o hábito de “mentir” – além, é claro, de serem divertidas e boas para se pensar.

Os heróis nacionais são contos de fadas para gente grande. Embora, é claro, quase sempre menos divertidos do que as estórias de Pinóquio. O importante são os valores que eles representam no presente e os caminhos que apontam para o futuro.

Os semideuses não existem. Submetidos a uma lupa existencial, os heróis deixam de existir. Afinal, todos os homens são contraditórios, apresentam falhas, são resultado das circunstâncias a que estão submetidos.

Isso é válido para Zumbi, assim como para os demais heróis nacionais. Eis o que escreveu William Cohen a respeito de um herói dos Estados Unidos: “Parece paradoxal que Thomas Jefferson, um dos eternos heróis da democracia norte-americana, fosse também o proprietário de mais de 180 escravos exatamente à época em que proclamava que todos os homens foram criados iguais e foram ‘dotados por seu Criador’ com os ‘direitos inalienáveis’ à ‘vida, liberdade e à busca da felicidade’”.

Portanto, quem estiver em busca de heróis desista de futricar a vida do personagem eleito, pois, como disse Caetano Veloso, “De perto, ninguém é normal”.

Mais importante ainda é o reconhecimento de que não há suporte documental para se afirmar que Zumbi possuía escravos, mandava matar fugitivos ou sequestrava mulheres.

Cabe aqui aplicar a crítica às fontes, da mesma forma que Narloch a utilizou em relação aos bandeirantes.

Os quilombolas de Palmares não deixaram escritos do próprio punho. Nesse caso, não é possível fazer a comparação documental, pois não havia cartórios, tribunais e repartições públicas nos quilombos. O que os livros citados por Narloch dizem a respeito deles foi escrito por holandeses (ou alemães que os acompanhavam), portugueses e fazendeiros que atuavam em câmaras municipais.

Essa gente, por razões óbvias, odiava o Quilombo de Palmares e tentava o tempo todo provar que a vida ali era ainda pior do que nas senzalas, daí as acusações de o lugar ser um antro de ladrões, assassinos e estupradores. Imagem, aliás, coincidente com a que boa parte da elite brasileira atual faz das comunidades carentes.

Se você achar que Zumbi representa o ideal de luta contra a opressão e a desigualdade, luta contra o preconceito racial e social, continue a considerá-lo um herói.

 

Parte 2 – Negros/Os escravos eram escravistas?

“Não há motivo para ativistas do movimento negro fecharem os olhos aos escravos que viraram senhores. Ninguém hoje deve ser responsabilizado pelo que os antepassados distantes fizeram séculos atrás. Além disso, na época em que eles viveram, ter escravos não era considerado errado: tratava-se de um costume tido como correto pela lei e pela tradição. ” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Em 1500, a escravidão era legal em Portugal e, no Brasil, foi proibida somente em 1888. Uma questão fundamental é saber: por qual razão esse sistema social extraordinariamente injusto sobreviveu tanto tempo?

“Dividir para reinar”, eis a fórmula utilizada pelos escravistas. Antes mesmo de chegar ao Brasil, os escravos estavam politicamente divididos.

O uso do termo “africano”, por sinal, era semelhante ao uso atual da expressão “latino-americano”. Seria interessante saber quem já esteve fora do Brasil e respondeu “Sou latino-americano”, ou “Nasci na América Latina”, às perguntas: “De onde você é?” ou “Onde você nasceu?”.

Esse tipo de resposta pode ocorrer, mas deve ser infinitamente menos frequente do que as definições: “Sou brasileiro” ou “Nasci no Brasil”. A predominância dessas últimas respostas se deve ao fato de a identidade “latino-americana” ser “fraca”, muito pouco mobilizadora, e por vezes esconder antipatias.

O mesmo ocorria na África, só que de forma bem mais intensa. Nos séculos XVI-XVIII, não existia uma identidade africana. O que havia era uma infinidade de grupos étnicos, com múltiplas rivalidades locais, que não raramente acabavam em guerras. Os prisioneiros delas eram vendidos como escravos para o Brasil.

Além disso, os reinos africanos não eram socialmente homogêneos. Reis, guerreiros e comerciantes ocupavam o topo da escala social e participavam do tráfico, que existiu antes mesmo de os europeus chegarem a esse continente.

A escravidão, portanto, existia na África pré-colonial. Até aí é possível acompanhar Narloch. O problema é o uso abusivo do termo “africano”. Quem se envolvia com o tráfico não eram os “africanos” como um todo, mas sim uma pequena parcela.

No Brasil, conforme mostram Manolo Florentino e José Góes, as rivalidades étnicas africanas criavam conflitos nas senzalas. Os cativos também se diferenciavam entre estrangeiros e nascidos no Brasil. Além dessa divisão, havia aquelas decorrentes de se morar na cidade ou no campo, ou ainda de se trabalhar na agricultura ou na casa-grande.

Há tempos, João José Reis e Eduardo Silva chamaram a atenção para os múltiplos efeitos dessas divisões. Um escravo ou escrava nascidos no Brasil conheciam apenas, do ponto de vista existencial, a vida no cativeiro. Se fossem escravos domésticos, a tendência seria de conviver mais com a família senhorial do que com o pessoal da senzala. Se vivessem em cidades ou vilas, ficavam expostos a contatos com a vizinhança, conseguindo amigos e protetores brancos.

Dessa forma, as trajetórias de vida dos cativos e cativas domésticos nascidos no Brasil e moradores em cidades podiam ser muito diferentes das registradas entre escravos africanos cortadores de cana-de-açúcar. Os primeiros eram fortes candidatos à alforria. Já os trabalhadores da senzala – principalmente os africanos, que viveram a experiência de não ser escravos – eram potencialmente mais seduzidos à fuga.

Baseado em um autor, Narloch cita possíveis “chicas da silva” mineiras do século XVIII, afirma que elas podiam ser poucas, mas serviam de modelo de conduta. Sim, mas é bom qualificar esse modelo como “escravista”. Paralelamente a ele, havia o modelo “antiescravista”, evidenciado nos mais de 100 quilombos da Capitania de Minas Gerais, identificados por Carlos Magno Guimarães.

Portanto, havia escravos conformados à escravidão e os que a ela não se submetiam – da mesma forma que hoje existem jornalistas subservientes ao poder e os críticos a ele. Por isso mesmo, desconfie sempre da expressão: “na época em que eles viveram”, pois ela encobre diferentes anseios, conflitos e visões de época, quase sempre substituídos pela falsa imagem do conformista generalizado.

A experiência da escravidão mostra que sistemas sociais extremamente injustos podem perdurar durante séculos, desde que haja divisões e rivalidades entre os oprimidos.

 

Parte 2 – Negros/ O que devemos aos abolicionistas ingleses?

“Em 2007, completaram-se duzentos anos da proibição do tráfico de escravos, a primeira vitória da campanha abolicionista da Inglaterra. Nenhum país da África ou movimento negro da América prestou homenagens ou agradecimentos aos ingleses.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Narloch critica livros didáticos que defendem a motivação econômica – interesses mesquinhos dos industriais ingleses em ampliar o mercado de consumo – na abolição do tráfico de escravos.

Segundo ele, essa tese, simplista e ideológica, foi superada pelos estudos de Seymour Drescher, dentre outros pesquisadores. Trata-se de uma crítica válida. Numa rara desatenção, Narloch faz um comentário “politicamente correto”, dizendo que o movimento abolicionista inglês, surgido na segunda metade do século XVIII, foi a primeira grande campanha popular bem-sucedida da “história moderna, um molde para as lutas sociais do século 19”.

Quem tiver dúvida quanto a isso, eu indico o livro de Adam Hochschild, onde ele conta como um pequeno grupo de pessoas conseguiu mobilizar a opinião pública britânica, inclusive com a adesão de quase 300.000 pessoas ao boicote do consumo de açúcar produzido em áreas escravistas.

O abolicionismo inglês foi a vitória da nascente sociedade civil democrática sobre os interesses de grandes traficantes e investidores no comércio internacional colonial. Rapidamente, o movimento tornou-se mundial. No Brasil, ele influenciou as primeiras leis restringindo o tráfico e foi fundamental para o término oficial desse comércio em 1850.

Sem dúvida, devemos ser gratos aos abolicionistas ingleses, que lutaram contra a elite econômica inglesa da época, até vencerem a batalha.

Tentem, porém, lembrar de algum livro que mencione a pressão inglesa pela abolição da escravidão em 1888? Não conheço nenhum. Portanto, a importância inglesa no fim da escravidão brasileira é só parte da História. É preciso também conhecer a luta dos escravos e dos abolicionistas brasileiros nesse processo.

Além disso, é importante lembrar que na segunda metade do século XIX, o movimento abolicionista inglês entra em declínio. O historiador português João Pedro Marques faz um balanço dessa questão e aponta como uma das razões disso a ascensão das teorias biológicas racistas.

Esse período também foi acompanhado pela conquista europeia de novos territórios. Na África, a escravidão voltou a ser tolerada, sobrevivendo em colônias inglesas, como ocorreu em Serra Leoa, até 1928. Conforme afirma Mike Davis, quando não era possível a escravidão, a alternativa era o extermínio. Na África do Sul chegou-se a adotar o genocídio como política oficial.

Enfim, no século XIX, não é difícil encontrar muitíssimas relatos de atrocidades cometidas pelo Estado inglês contra africanos. Por isso, o melhor seria combinar que o agradecimento da “África”, ou do “movimento negro da América”, aos ingleses fosse acompanhado por um pedido de desculpas desses últimos ao continente africano e demais grupos humanos atormentados pelo imperialismo vitoriano.

 

Parte 2 – Negros/É bom pensar

A história politicamente incorreta é uma história com partido. O partido do conformismo e do preconceito. Essa modalidade de pseudo-história ataca ou tenta desmobilizar movimentos sociais em busca de reparação de direitos.

Como faz isso? Desmoralizando os símbolos desses movimentos ou fazendo generalizações abusivas. Outra estratégia utilizada consiste em transformar conquistas desses movimentos em concessões das elites ou de potências estrangeiras.

 

Parte 3 – Escritores/ Uma coletânea de bobagens

“Quando tinha 28 anos, o baiano Jorge Amado conseguiu defender, ao mesmo tempo, dois dos maiores tiranos do século 20: Adolf Hitler e Josef Stálin.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Uma dica importante é começar a leitura dos livros de História pelas fontes, pelas notas de rodapé e referências finais. Isso permite saber se o autor utilizou fontes variadas ou únicas, diretas ou de segunda-mão. A qualidade das fontes é um elemento importante para avaliar um texto de História, como ensina Ciro Flamarion S. Cardoso.

Ao tratar de intelectuais famosos, Narloch utiliza quase sempre fontes únicas ou de segunda-mão. Para definir Jorge Amado como defensor de Hitler, recorre a um comentário furtivo de mesa de bar, reproduzido por Oswald de Andrade em uma coletânea de depoimentos.

Bastaria dois minutos de consulta na internet para constatar que essa fonte é, no mínimo, polêmica. Em entrevista a Geneton Moraes, Jorge Amado negou a acusação e acrescentou: “Houve, realmente, um atrito. Oswald – de quem eu era amigo – desejava ser candidato a deputado na chapa do Partido Comunista. Não foi. Não sei porque – talvez porque outras pessoas tivessem feito intriga – Oswald achou que eu tinha concorrido para que ele não entrasse na chapa. O que aconteceu, na verdade, foi o contrário. Eu lutei – e muito – para que ele entrasse na chapa do partido. Não consegui. Oswaldo não entrou. Atribuiu a mim este fato, o que fez com se afastasse de mim”.

Não dá para desculpar Narloch, dizendo que livros de divulgação, os “best sellers” de vulgarização da História, não são obrigados a seguir a regra da confrontação de fontes, pois ele conhece esse procedimento e o aplica no capítulo em que desqualifica o uso somente de fontes jesuíticas para caracterizar os “bandeirantes”.

Graças ao “esquecimento” desse procedimento metodológico – procedimento que, imagino, deva também ser empregado no jornalismo investigativo – Jorge Amado torna-se defensor de Hitler; Machado de Assis, um censor; José de Alencar, um escravista; Gilberto Freyre, um admirador da Ku Klux Klan; Euclides da Cunha, um mentiroso; Gregório de Matos, um dedo-duro; Graciliano Ramos, um chato de galocha por não gostar de futebol.

Não seria difícil mostrar o quanto essas afirmações são exageradas, ridículas ou descontextualizadas. Mas não farei isso. Vou considerá-las “verdadeiras”, pois assim se entende melhor o quanto esse capítulo é nefasto.

Paradoxalmente, Narloch perdeu, nesse capítulo, uma ótima oportunidade para criticar o “politicamente correto”. E pior, involuntariamente se torna o porta-voz desse discurso moralista. Em várias universidades do mundo, esse tipo de discurso virou uma praga. Uma apologia ao obscurantismo, pois nega autonomia a obra literária. Para os que defendem tal tipo de aberração, Shakespeare, por exemplo, não deve ser lido por ser misógino, ou seja, por falar mal de mulheres…

O renomado crítico literário norte-americano Harold Bloom, em entrevista a Daniel Piza, caracterizou essa turma como dominada pela subcultura da Tv, “pelo pop” – no fundo, são um bando de fofoqueiros.

Ao avaliar autores canônicos brasileiros em função do comportamento moral deles, Narloch engrossa a fileira dos “politicamente corretos”. Só faltou dizer que Monteiro Lobato é racista.

A censura moral é pior do que a institucional, pois essa última tem o mérito de se assumir enquanto tal. A censura moral, não. É dissimulada, se esconde atrás de aparentes boas intenções éticas.

Sem dúvida, toda censura é condenável, mas ao ler as páginas desse capítulo ao menos é possível compreender Machado de Assis, quando ele diz que as baboseiras deveriam ser proibidas.

 

Parte 3 – Escritores/ É bom pensar

Um escritor canônico é aquele considerado autor de obras-primas. Essas obras têm a capacidade de influenciar uma série de outros escritores, oferecendo uma contribuição incomensurável a sociedade.

O fato de Euclides da Cunha ter errado no número de mortos em Canudos, ou nos nomes dos lugares das redondezas desse lugar, pode despertar a atenção de antiquários, mas não diminui a importância dele na literatura e no pensamento social brasileiro.

O fato de Jorge Amado ter admirado por um tempo – e não a vida inteira! – Stálin ou Toninho Malvadeza não o torna um escritor menor.

O fato de Machado de Assis ter escrito galhofeiras censuras para o Conservatório Dramático não o torna menos genial.

Além disso, é bom lembrar que a avaliação moral é oportunista, elegendo uns e esquecendo outros. Caberia inclusive perguntar se o autor do “Guia politicamente incorreto da história do Brasil” se comportou a vida inteira como um escoteiro-mirim, fazendo somente boas-ações?!

 

Parte 4 – Samba/De uma nota só

“Os primeiros sambistas liam partituras, tocavam instrumentos clássicos, participavam de bandas de jazz, adoravam ouvir tango e conhecer as novidades musicais nos cabarés parisienses. A cara que o samba tem hoje, de símbolo da ‘autenticidade brasileira’ e da resistência da cultura negra dos morros cariocas, é uma criação mais recente, que de certa forma abafou a primeira.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Não existe cultura “pura”. Toda criação humana é composta por múltiplas misturas e hibridismos. O trabalho de historiadores, antropólogos, sociólogos e cientistas políticos é destrinchar os elementos dessas combinações e o porquê de seu surgimento.

As tradições nacionais são um desses casos. Eric Hobsbawm e Terence Ranger organizaram um livro interessante, mostrando que “Muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas”. A monarquia britânica, por exemplo, se considera milenar, mas a maioria dos rituais do cerimonial de coroamento, símbolo da identidade inglesa, surge após 1870, outros só na década de 1950.

Esses rituais foram “inventados” e depois considerados como tendo uma origem antiquíssima. Isso não é motivo de vergonha para os ingleses, nem credencia ninguém a considerar essa identidade nacional uma “mentira”.

De fato, nenhum historiador sério acredita na existência de identidades nacionais antes do século XIX. Elas surgem a partir daí e muito de seu conteúdo foi inventado. Elas também variam de tempos em tempos, sofrem atualizações ou abandonos, recorrendo aos mais variados elementos da vida social. Eric Hobsbawm cita a Suíça, que teve como um dos símbolos de sua identidade campeonatos de tiro ao alvo. Até recentemente, um dos esportes nacionais da Bélgica consistia em campeonatos de corridas de pombos.

Menciono esses exemplos anedóticos para mostrar como podem ser variados e surpreendentes os ícones da identidade nacional. Narloch cita que, no caso do Brasil, esses símbolos são o futebol, a feijoada e o samba. Mostra que o futebol é estrangeiro, não existia no século XIX, além de ser uma importação da elite. A feijoada é europeia. O samba, por sua vez, sofreu influência de músicas estrangeiras. Uma das primeiras inspirações do samba foi o jazz, influência combatida por intelectuais modernistas na autoritária década de 1930.

Entender as razões desse conflito musical é fascinante e uma vez mais o leitor muito ganhará ao ler a bibliografia citada por Narloch.

De fato, não existe criação cultural “pura”, que brote imaculada do solo nacional. Isso não ocorreu com o samba, nem muito menos com nenhum outro gênero musical. Mario de Andrade, por exemplo, afirma que o jazz norte-americano deve muito à música afrocubana. [Antes que os politicamente incorretos considerem essa conexão como “coisa de comunista”, é importante lembrar que o texto em que afirma isso foi escrito em 1932, três décadas antes da revolução em Cuba e numa época em que Fidel Castro tinha seis anos de idade].

Deve-se criticar a suposta “pureza” dos esportes e das culinárias nacionais. O mesmo deve ser feito em relação aos gêneros musicais. O “jazz norte-americano” é fruto de misturas, inclusive estrangeiras. O “samba brasileiro”, idem. Não se deve julgar essas criações como menos ou mais “autênticas”, pois essas categorias não se aplicam ao mundo da cultura.

 

Parte 4 – Samba/É bom pensar

Essa parte é interessante para se apurar o uso do conceito de “intelectual”. Ao longo do livro, Narloch faz críticas genéricas aos “intelectuais”, mas nunca qualifica muito bem esse grupo.

O debate em relação ao samba é ilustrativo disso. Uma das contraposições feitas é entre Hermano Vianna e José Ramos Tinhorão. Quando se analisa o perfil desses dois autores, constata-se que o primeiro é doutor em antropologia social, enquanto o segundo é formado em jornalismo.

Embora de formação distintas, os dois são eruditos musicólogos. Narloch apoia a versão do antropólogo. Não seria o momento de ele reconhecer a dívida que tem em relação aos intelectuais universitários e mencionar que jornalistas nem sempre tem razão?!

 

 Parte 5 – Guerra do Paraguai/ O estrago que os jornalistas fazem

“Poucos livros estavam tão alinhados com o espírito da época quanto Genocídio Americano. Enquanto a obra esgotava nas livrarias, a ditadura militar desmoronava e a esquerda brasileira crescia. Nos palanques do ABC, Lula se tornava uma personalidade nacional. A campanha das Diretas Já mostrava a força de uma nova opinião pública. Falar mal de militares era intelectualmente estimulante para os autores e um jeito fácil de ganhar popularidade. Nas escolas, professores de história e geografia ressaltavam verdades à esquerda que criariam a base do senso comum nos anos 2000. No fim de duas décadas, Genocídio Americano teve dezessete reimpressões e inspirou dez em cada dez livros didáticos.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Certa vez, um professor da USP disse que os jornalistas, antes de começar a escrever livros de História, deveriam ser obrigados a ler os 11 volumes da “História Geral da Civilização Brasileira”. Em acréscimo a essa sugestão, creio que as editoras deveriam fazer uma provinha, nos moldes da que aparece neste capítulo, para averiguar se a leitura foi realmente realizada.

Esse procedimento evitaria situações constrangedoras. No texto de Narloch, quase tudo de ruim da interpretação histórica da Guerra da Tríplice Aliança é atribuído ao livro “Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai”, escrito pelo jornalista paulista Julio José Chiavenato.

Tal qual Narloch, Chiavenato não leu a “História Geral da Civilização Brasileira”, cujos volumes relativos ao Império foram publicados no início dos anos 1970. O resultado disso é um livro espalhafatoso e sensacionalista. Lançada ao final da “ditadura militar” (Êpa, mais uma derrapada politicamente “correta” do Guia!), a “obra” Genocídio Americano foi beneficiada – quer dizer: vendeu pra caramba! – pelo contexto da época.

Para destroçar o texto do colega de profissão, Narloch recorre ao livro do historiador Francisco Doratioto, “Guerra Maldita”. Esse último, é claro, leu a “História Geral da Civilização Brasileira”. Num dos volumes dessa coleção, Sérgio Buarque de Holanda escreve, por exemplo: “A Argentina tinha sido, como o Brasil, alvo da agressiva megalomania do ditador paraguaio”.

O pai do Chico também questiona a suposta hecatombe da população do Paraguai e outros mitos sobre a “maravilha” paraguaia. Em outras palavras, a historiografia brasileira da guerra, mesmo nos anos 70, era bem mais matizada do que afirma o autor politicamente incorreto.

Mas num aspecto Narlaoch está certo, as bobagens escritas por Chiavenato até hoje influenciam muitos livros didáticos. Tal constatação merece, inclusive, uma pausa para reflexão: quantas imposturas intelectuais escritas pelos atuais jornalistas-improvisados-em-historiadores influenciarão negativamente os livros didáticos das próximas décadas?

 

Parte 5 – Guerra do Paraguai/É bom pensar

A “História Pública” é um campo de pesquisa dedicado a estudar os usos das narrativas históricas fora do espaço acadêmico. Procura-se, assim, saber como as narrativas históricas são apropriadas pela sociedade, através de filmes, romances, peças de teatros, exposições e, obviamente, revistas e livros de divulgação.

A “Guerra do Paraguai” é um tema explorado por diversas formas de História Pública. Isso, em si, é bastante interessante e consiste em um campo de de pesquisa em potencial. Por qual razão um assunto aparentemente distante de nosso cotidiano desperta tanto interesse?

O mistificador livro Genocídio Americano, de Chiavenato, proporciona alguns elementos para se entender isso. A ideia de que o Paraguai implementou um projeto de desenvolvimento nacional, mas foi sufocado pelos interesses do imperialismo inglês, exige que o leitor reflita e se posicione, fazendo escolhas que afetam o tempo presente.

O “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, ao inverter a interpretação de Chiavenato, nega a mistificação avançada por esse último autor, mas junto a ela joga fora as discussões sobre os projetos nacionais e a exploração internacional da América Latina.

Negar a teoria conspiratória sobre a promoção inglesa da guerra do Paraguai não implica em desconhecer o interesse desse país nessa região. Conforme vários autores sublinham, no século XIX, a Inglaterra sempre esteve pronta a combater tendências expansionistas na bacia do Prata, importante porta de entrada de suas mercadorias.

 

Parte 6 – Aleijadinho / Tudo é História.

“A arte, especialmente durante o período barroco, era um esforço coletivo feito sobretudo em louvor a Deus, e não ao próprio artista. Escultores dividiam trabalhos com colegas de corporação, instrutores assinavam as melhores obras dos seus alunos (que encaravam o fato como uma homenagem), e quase ninguém pensava em expressar seus sentimentos nas obras.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Nessa parte, Narloch tenta provar que Aleijadinho é mais uma empulhação dos intelectuais modernistas. O escultor não teria feito a maioria das obras a ele atribuída e talvez nem mesmo tenha existido. A criação desse personagem ocorreu somente em meados do século XIX, décadas depois de Antonio Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”, ter falecido.

Como nos demais capítulos, constata que a confusão nasce quando um diletante da área de História resolve escrever um livro. Em 1858, Rodrigo Ferreira Bretas publica uma biografia sobre o mestre do barroco mineiro. Os modernistas e outros não tão modernistas aceitam as lorotas de Bretas e a partir daí cria-se o mito.

Recentemente, uma historiadora – Ah!, sempre esses profissionais! – colocou as coisas em seus devidos lugares, no livro “Aleijadinho e o Aeroplano”.

Até aí, tudo bem. O problema é quando Narloch arrisca voo próprio, afastando-se do aeroplano. Reproduz depoimentos estrangeiros e nacionais do século XIX, citados por Guiomar Grammont, arrasando a qualidade artística do barroco mineiro, sem mencionar que a autora considera esses comentários impregnados de sensibilidade neoclássica e “corrosivo” academicismo. Tais correntes estéticas consideravam negativamente o barroco, independente de ele ser de Minas Gerais ou de qualquer outra parte do mundo.

A citação que abre o presente comentário promove outro curto-circuito na argumentação. Se não é possível atribuir “autoria” aos artistas barrocos, então Caravaggio, Velázquez, Rubens e Rembrandt – somente para citarmos alguns exemplos de artistas barrocos – também são “literatura” (termo que aparece no título deste capítulo), também são invenções.

O comentário acima transcrito não foi um deslize isolado. Ele, de forma mais restrita, aparece no capítulo dedicado a execrar Gregório de Matos, quando Narloch afirma que a autoria só ganha importância “com os poetas românticos”.

Um critério de classificação para um caso único é algo meio suspeito. É inaceitável pressupor que nosso gênio barroco seja de mentira, enquanto o europeu – somente por ser europeu – seja considerado verdadeiro.

 

Parte 6 – Aleijadinho / É bom pensar

Não existe conhecimento histórico sem crítica. Discutir e apurar a autoria dos testemunhos, sua razão de existir, o contexto e data de sua produção, o modo de sua redação e seu conteúdo propriamente dito são fundamentais.

A hipercrítica, no entanto, sempre representou um problema para a pesquisa. Se ela for aplicada à risca, a História Antiga, por exemplo, desaparece. Quase tudo que restou dessa época são testemunhos indiretos, problemáticos.

Ao aplicar a hipercrítica a Aleijadinho, Narloch mostra as incertezas relativas a existência e produção desse artista.

Felizmente, porém, “tudo é História”. Se Aleijadinho é um “mito”, cabe lembrar que os mitos têm História. Entender como essa lenda foi criada, os múltiplos significados que assumiu ao longo do tempo, a quais ideais e lutas serviu, é tão ou mais importante quanto saber se Aleijadinho morreu de lepra ou sífilis, ou se a imagem do santo X da igreja Y é mesmo criação sua.

Literatura não é sinônimo de mentira. Mito, idem. Ambos, quando aceitos e incorporadas por grupos, ou por sociedade inteiras, se transformam em forças vivas.

 

Parte 7 – Acre/ Concordo em parte.

“Se tivéssemos vendido parte da Amazônia ou se algum país tivesse se apossado de pelo menos um pedacinho dela, seríamos hoje muito mais felizes.

Quando eu era criança e fazia bagunça demais em casa, minha mãe costumava brincar dizendo que, se alguém me sequestrasse, ela daria 1 milhão a mais de resgate para o bandido ficar comigo. É mais ou menos o que deveríamos ter feito com o Acre.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Neste capítulo, Narloch conta a folclórica estória de um espanhol, Luis Gálvez Rodríguez de Arias, que liderou um rocambolesco movimento político no Acre, durante o boom da produção da borracha, culminando na anexação dessa região ao Brasil, em uma complicada e dispendiosa negociação com a Bolívia.

Trata-se de um episódio pitoresco, bem melhor explorado por Márcio Souza, em livro não citado na bibliografia de Narloch.

Ao iniciar a leitura deste capítulo, achei-o inofensivo. Em seguida, fui percebendo que é repleto de preconceitos regionais. Não só em relação ao Acre. A certa altura do texto, afirma-se: “Existem muitos lugares irrelevantes pelo mundo – como Porto Rico, a Bélgica, o Paraná -, o que não chega a ser um problema”.

A incorporação do Acre foi dispendiosa. Esse capítulo também deveria tratar dos custos humanos dessa incorporação, como o extermínio de povos indígenas.

Na parte final, lê-se a pérola da venda da Amazônia.

Lamento, mas, na passagem aqui reproduzida, concordo apenas com a parte da “mãe” e do “bandido”.

 

Parte 7 – Acre/ É bom pensar

A História Contrafactual consiste em pensar como seria o passado se determinado(s) acontecimento(s) tivesse(m), ou não, ocorrido. Por exemplo, em 1494 foi celebrado o Tratado de Tordesilhas, dividindo entre Espanha e Portugal as terras descobertas e as que estavam para ser descobertas.

Esse tratado previa uma linha imaginária de divisão do Novo Mundo. Se tal meridiano tivesse sido respeitado, o Brasil seria bem menor. O território nacional compreenderia mais ou menos uma faixa do litoral entre Belém do Pará e Florianópolis, havendo também, no interior, um eixo fronteiriço englobando o espaço entre essas duas localidades.

Como o Tratado de Tordesilhas nunca foi efetivado, essa linha permaneceu imaginária. O Tratado de Madri, em 1750, levou em conta a ocupação efetiva dos territórios, definindo as fronteiras de quase todo atual território do Brasil.

Caso respeitado o primeiro tratado, com certeza, o Rio Grande do Sul não faria parte do Brasil. Se isso tivesse ocorrido, Getúlio Vargas não seria brasileiro.

Eis um tema interessante para se discutir: a influência do indivíduo na História. Como seria o Brasil sem Getúlio Vargas?

O mesmo pode ser pensado em relação ao Acre. A não incorporação desse estado traria grandes mudanças na História do Brasil contemporâneo?

Independente da resposta, tal exercício não autoriza a reprodução de preconceitos regionais. É possível pensar em histórias contrafactuais de forma politicamente correta.

 

Parte 8 – Santos Dumont/ Os norte-americanos nunca mentem?

“Na verdade é um pouco infantil insistirmos que Santos Dumont inventou o avião. O crédito dessa descoberta é obviamente dos irmãos Orville e Wilbur Wright. Os dois fabricantes de bicicletas dos Estados Unidos voaram antes, voaram mais e contribuíram muito mais para a indústria aeronáutica que o inventor brasileiro.” ( “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, Leandro NARLOCH)

Na história das invenções, a identificação da primazia é sempre polêmica. No caso da fotografia, por exemplo, há disputas entre italianos, ingleses e franceses, inclusive acredita-se que um desses últimos, Hércules Florence, a teria inventado quando morava em Campinas, São Paulo.

O inventor do cinema também é alvo de controvérsias entre franceses e alemães. No caso dos aviões, as disputas são ainda mais numerosas. Além de Santos Dumont e dos irmãos Wright, reivindicaram essa primazia o francês Clément Ader, os alemães Gustave Whitehead e Karl Jatho, o neozelandês Richard Pearse, o romeno Traian Vuia, entre outros.

Essas informações estão disponível na Wikipédia. Elas não são restritas a especialistas. Como, então, Narloch consegue se desvencilhar desse cipoal de disputas nacionais pela invenção do avião?!

Simples: ele restringe a disputa ao brasileiro e os irmãos norte-americanos, aplicando a hipercrítica ao primeiro caso e a acrítica ao segundo. Recorre, por exemplo, ao simpático e nacionalista site do “National Air and Space Museum – Smithsonian Institution”, aceitando piamente tudo que aí está escrito. Não consulta o equivalente brasileiro, o “Centro de Documentação da Aeronáutica”, que dá a primazia da invenção a Santos Dumont.

No site do “Centro de Documentação da Aeronáutica” lê-se em relação ao voo do 14 Bis: “Era o primeiro voo homologado do mais-pesado-que-o-ar”. É preciso que o leitor preste atenção numa parte dessa frase. Ela não diz apenas “primeiro voo”, mas sim “primeiro voo homologado”. Quem consultar o dicionário verá que “homologado” significa “estabelecido ou reconhecido oficialmente”.

O voo do 14 Bis não foi, portanto, um voo secreto, ou de difícil comprovação, como o dos irmãos Wright e demais inventores acima citados. Todos podem ter voado antes de Santos Dumont, mas esse foi o primeiro caso chancelado por uma instituição oficial de aviação, reconhecida internacionalmente: o Aeroclube francês, conforme menciona o “Centro de Documentação da Aeronáutica”.

Não reconhecer isso tem implicações. Imagine um nadador brasileiro alegar que em um treino, em 2008, nadou o estilo 200m livre mais rápido do que o norte-americano Michael Phelps. Imagine que, a partir de testemunhos vagos, solicite o título de “recordista mundial da prova” para o referido ano. Provavelmente essa reivindicação não será levada a sério ou então será motivo de piadas. Uma alma caridosa talvez diga ao nadador brasileiro: “O recorde de Phelps foi em prova homologada, não faça papel de bobo”.

Este capítulo talvez seja o mais politicamente incorreto. Narloch refere-se a Santos Dumont como “provavelmente gay”. O autor do Guia indaga, ainda, se o inventor seria um “picareta”, com base em uma fofoca de auto sabotagem, seguida de uma tentativa de ganhar dinheiro com a exposição do balão sabotado – sem se lembrar que no início do capítulo tinha afirmado que o inventor brasileiro era filho “de um dos maiores cafeicultores do mundo”, o que, convenhamos, descarta a possibilidade de pequenas trapaças para ganhar uns trocados.

Essa e outras futricas baseiam-se no livro do jornalista e roteirista Paul Hoffman, inglês radicado nos Estados Unidos, que escreveu sobre nosso inventor, dizendo bobagens do tipo: no Brasil, até garçons já ouviram falar de Santos Dumont …

Hoffman pelo menos tem o mérito de ser mais equilibrado, não elevando os “Wright Brothers” à condição de super-heróis. Embora apoie esses últimos, faz referências aos jornais franceses de época que aclamaram Santos Dumont como “o inventor do aeroplano”.

Outro aspecto chocante desse capítulo é que ensina como caluniar personagens históricas. Citarei apenas um exemplo, entre muitos. Narloch menciona que Santos Dumont teria dito antes do suicídio: “Eu nunca pensei que minha invenção fosse causar derramamento de sangue entre irmãos. O que eu fiz?”. Em seguida cita uma carta do inventor, escrita em 1904, na qual ele reconhecia a “utilidade militar dos elementos aéreos”.

A partir dessa confrontação infere que Dumont seria um falso pacifista. O problema para afirmar isso é que a suposta declaração antes do suicídio foi tirada da revista “Aventuras na História”. Quando se consulta o texto dessa revista, observa-se que não há referências a fontes. O autor do artigo, Luiz Guedes Jr., restringe-se a dizer: “Testemunhas dizem que ainda o ouviram falar…”.

Trata-se, portanto, de um rumor, ao algo por ouvir dizer… Considerar essa possibilidade não é um problema grave. O suicídio é um gesto extremo. Quando o suicida não deixa escrito algum, há sempre muitas especulações a respeito da razão do ato derradeiro. O problema sério é o movimento feito por Narloch. Ele transforma uma especulação em evidência. A partir dessa suposta evidência confronta o personagem histórico, no sentido de desmascarar sua suposta falsidade.

O certo é que, em vida, Santos Dumont não declarou ser pacifista. Além da carta parcialmente transcrita por Narloch, há livros que o inventor publicou e deixou claro sua posição. Neles menciona, inclusive, que, em dirigível, participou de desfile militar na França. Eis o que afirma no livro “O que eu vi, o que nós veremos”, publicado em 1918: “Em 14 de julho de 1903, voei sobre a revista militar de Longchamps. Nela tomavam parte 50 mil soldados e em seus arredores se acotovelavam 200 mil espectadores. Foi a primeira vez que a navegação aérea figurou em uma demonstração militar. Naquela época, predisse que a guerra aérea seria um dos aspectos mais interessantes das futuras campanhas militares”.

Trata-se de um posicionamento público e bem registrado. Apesar de estarem traduzidos e contarem com reedições recentes, Narloch não consulta livros escritos por Santos Dumont. Prefere o depoimento dos norte-americanos. Afinal, eles nunca mentem…

Se tivesse feito a consulta a esses escritos, teria uma visão menos parcial.

Naloch usa fontes de segunda mão. Isso gera problemas tradução. Diz que os franceses chamavam o 14 Bis de “pato”. Conforme sublinha Giba Stam, “canard” (“pato” em francês) era um tipo de configuração de aeronave e não um termo específico para uma delas. A consulta ao “Le Figaro” de 05 de dezembro de 1906, disponível no site Gallica, mostra que o termo utilizado em francês para o 14 Bis é “oiseau”, cuja melhor tradução é “pássaro” e não o bicho citado por Narloch e considerado popularmente como sinônimo de “otário”.

Com base no livro de Hoffman, o autor politicamente incorreto transcreve críticas que o inventor brasileiro fez aos irmãos Wright. Escreveu, mas não as publicou. Santos Dumont era elegante. Não saía pelas ruas ou gráficas espalhando calúnias.

Santos Dumont era intelectualmente generoso. No livro publicado em 1918, deu o crédito da invenção do dirigível a Júlio Verne, acrescentando que sua contribuição consistiu apenas em substituir o motor a vapor, proposto pelo romancista, por um motor a petróleo.

 

Parte 8 – Santos Dumont/ É bom pensar

Santos Dumont foi um cientista nos moldes dos que nasceram após a Revolução Industrial. Não se interessava pela ciência pura, mas sim pela aplicação tecnológica do conhecimento. No livro de sua autoria, “O que eu vi, o que nos veremos”, enumera os usos práticos da aviação. Diz que o avião serviria para transportar mercadorias e pessoas, podendo também ser usado no serviço postal e em ações militares.

Em 1917, escreve ao então presidente do Brasil, Venceslau Brás, alertando que o Congresso dos Estados Unidos acabara de “ordenar a construção de 22 mil destas máquinas e já está elaborando uma lei ordenando a construção de uma nova série”.

Iniciativas como essa é que deram início à grande indústria aeronáutica norte-americana. Santos Dumont luta para que o Brasil implemente uma iniciativa semelhante. Mas o então presidente politicamente incorreto era incapaz de perceber a grandeza da argumentação: “S. Exª – afirma o inventor – agradeceu-me e disse-me que, no futuro, se tivesse necessidade de meus conselhos, me preveniria”.

 

Parte 9 – Império/ História não é propaganda.

“Mas o Império teve virtudes que são frequentemente esquecidas, ao mesmo tempo em que é alvo de acusações injustas e da visão simplista de que teria atendido somente a ‘interesses da elite’. Por mais fora de moda que isso pareça, é preciso defender a política da época”. (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Todo mundo que gosta de História deveria ler o livro póstumo de Marc Bloch. Embora publicado originalmente há 70 anos, “Apologia da História” contém ensinamentos válidos até hoje. Nele, o grande historiador, herói da resistência francesa contra os nazistas, alerta:

“Compreender portanto, e não julgar. Eis o objetivo da ‘análise histórica’ …”.

Ao longo de um penoso aprendizado, que inclui a graduação universitária, seguida do mestrado e doutorado, o historiador aprende a utilizar teorias e conceitos para compreender e explicar os fenômenos em seus respectivos contextos. Porém, essa capacidade compreensiva não se confunde com aceitação, adesão ou promoção de eventos ou períodos.

Para deixar mais claro esse argumento, citarei um caso extremo. Num livro sobre a história dos povos indígenas do Brasil colonial, Ronald Raminelli descreve a antropofagia Tupinambá. Os relatos de canibalismo são horrendos. Esse historiador, no entanto, não fica fazendo julgamentos, condenando ou defendendo isso ou aquilo. O que faz é procurar compreender a função do ritual antropofágico e as suas representações europeias.

Na passagem que abre o presente comentário, Narloch afirma “Por mais fora de moda que isso pareça, é preciso defender a política da época”. Quem precisa defender o quê?! Eu compreendendo e concordo com os argumentos dos historiadores citados neste capítulo, mas isso não faz de mim um monarquista ou simpático à monarquia, da mesma forma que compreender o ritual indígena não me transforma em um antropófago.

História não é propaganda.

 

Parte 9 – Império/ É bom saber

A Constituição brasileira de 1824 reconhece a pessoa do rei como sagrada. Embora com menos força do que os reis absolutistas, D. Pedro I e II mantiveram muito poder de mando.

O primeiro foi autoritário e o segundo, magnânimo. Nossa monarquia, para ter algum mérito, dependeu dessa última personalidade.

Não se deve julgar essa forma de governo a partir desse acaso.

 

Parte 10 – Comunistas/ Nem bandidos nem heróis

“Quando se fala em comunista brasileiro, o nome que primeiro vem à mente é o do gaúcho Luís Carlos Prestes. Ninguém passou tanto tempo pregando a revolução no Brasil. Começou em 1924, liderando uma rebelião de militares gaúchos, e acabou só ao morrer, em 1990, depois de apoiar Leonel Brizola nas eleições presidenciais. Apesar de tantos anos de tentativa, ele não chegou à vitória – o máximo que conseguiu foi um cargo de senador em 1945, destituído três anos depois. Sorte nossa. Se tomasse o poder do Brasil, Luís Carlos Prestes provavelmente seria mais um dos tantos tiranos socialistas que ainda hoje estarrecem o mundo.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

O principal risco ao se criticar a história politicamente incorreta é cair na armadilha dela, invertendo os adjetivos e considerando o xingado “anti-herói” como “herói”.

A História é feita por seres humanos, que são sempre contraditórios e condicionados por suas circunstâncias existenciais. Compreender essas circunstâncias é fundamental, embora, como lembra Isaiah Berlin, “compreender não significa aceitar”.

Além disso, tão importante quanto conhecer as lideranças é conhecer as grandes massas humanas. Nesse sentido, não basta considerar Hitler um “anti-herói”. O desafio realmente sério é compreender por qual razão milhões de alemães aderiram às ideias extremistas dele, a ponto de darem a vida por uma causa monstruosa.

O mesmo pode ser dito em relação ao totalitarismo comunista. Ele produziu muito sofrimento e tirania. Resta saber por qual razão milhões de pessoas lutaram por esse ideário extremista. Uma pista: lutaram por ficar indignadas frente à miséria existente nas sociedades contemporâneas. Miséria que não precisa existir, pois a tecnologia e o desenvolvimento econômico poderiam garantir boas condições de vida a todos.

É fácil julgar as pessoas – comunistas, guerrilheiros etc. – que através da força, da violência, e de golpes políticos, tentaram implantar sociedades menos injustas, mas certamente intolerantes e antidemocráticas. Sabemos hoje que os que assim agiram não escutaram outras vozes, outras interpretações políticas, que assinalavam a importância de reformas progressivas, de melhoramentos democraticamente negociados, para a construção de sociedades mais igualitárias.

Este capítulo promove uma tremenda confusão dessas perspectivas. Por exemplo, trata “comunismo” e “socialismo” como se fossem a mesma coisa. Acontece que, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a história desses movimentos seguiu caminhos completamente diferentes.

Em muitos países, essa separação vinha ocorrendo desde bem antes. Mas, após a Segunda Guerra Mundial, a distinção entre os dois movimentos se consolidou universalmente, inclusive em termos de criação de partidos políticos.

Nos dias de hoje, considerar “comunismo” e “socialismo” como sinônimos é semear confusão. Esse último movimento é democrático e promove o progresso social. Experimente perguntar a um francês se a França continuou a ser comunista após a Queda do Muro de Berlim, em 1989. Ele vai responder que você é um “analfabeto político”, pois o presidente francês entre 1981 e 1995 era François Mitterrand, do Partido Socialista e não do Partido Comunista.

Mitterrand aboliu a pena de morte na França.

A mesma confusão Narloch faz com o termo “revolução”. Esse termo era empregado a qualquer mudança política, de esquerda ou direta, que recorresse à força, à violência. A rebelião militar de 1924 não era um movimento comunista, nem muito menos Prestes era comunista nessa época, conforme mostra Rodrigo Patto Sá Motta.

O problema da história politicamente incorreta, ou pseudo-história, é justamente apagar essa multiplicidade de vozes. Entre as posições extremadas do “comunismo” e do “neoliberalismo” existem o “socialismo democrático”, a “socialdemocracia”, o “liberalismo social” e muitas outras visões de mundo que não abrem mão da democracia, mas também se preocupam com o bem-estar social.

 

Parte 10 – Comunistas/ Quem endureceu primeiro?

“O regime só endureceu de verdade em dezembro de 1968, com o Ato Institucional número 5. O Congresso Nacional foi fechado, o Executivo pôde governar arbitrariamente por meio de decretos-lei e o habeas corpus deixou de existir. O governo poderia prender e manter pessoas na cadeia sem explicar por quê. Para justificar essa radicalização, os militares usaram um argumento fácil: era preciso manter a ordem. Durante a reunião de 13 de dezembro de 1968, em que os ministros aprovaram o AI-5, a palavra ‘ordem’, no sentido de tranquilidade pública, é citada 23 vezes nos discursos.” (“Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, LEANDRO NARLOCH)

Em 1964, o que dividia a sociedade, o que alimentava o debate entre “direita” e “esquerda”, eram as “Reformas de base”. Quem pesquisar no google a respeito desse tema constatará vários sites explicando no que elas consistiam.

No site da Fundação Getúlio Vargas, Marieta Ferreira diz que essas reformas eram: bancária, fiscal, urbana, administrativa, agrária e universitária.

Cabe ao leitor escolher se considera tais propostas como sendo “comunistas” ou não. Para muita gente, tratava-se de uma agenda nacionalista e popular. O conteúdo das reformas de base, de maneira geral, eram moderadas. A reforma agrária, por exemplo, propunha a desapropriação de terras improdutivas. Além disso, defendia-se que os direitos trabalhistas (salário mínimo, férias, aposentadoria etc.) fossem estendidos aos trabalhadores rurais.

Da mesma forma que em nossos dias, muitos direitos sociais mínimos, e que existem desde o século XIX na Europa, eram considerados “coisa de comunista”.

Em 1964, havia suspeitas em relação ao nacionalismo popular. A ameaça comunista, porém, não existia. Por isso não houve resistência. Não houve “guerrilha” contra o governo militar. Isso começou dois anos após o golpe.

Antes da guerrilha, existiram atos institucionais (AI) revelando o caráter ditatorial do novo regime. O AI-1, sancionado em 1964, dizia que “a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma”. Através desse ato, o novo governo pode casar os direitos políticos de quem bem entendesse. O AI-2, de 1965, extingue o multipartidarismo, cancela eleições diretas para presidente, autoriza a intervenção em estados e municípios e permite o fechamento temporário do congresso nacional. No início de 1966, é sancionado o AI-3, abolindo eleições diretas para o governo estadual e determinando que os prefeitos das capitais estaduais seriam indicados pelos respectivos governadores

Bastam essas três referências para mostrar que o regime militar “endureceu” antes mesmo da eclosão das guerrilhas. Sabemos hoje que esse tipo de resistência política foi equivocada, mas ela não surgiu por acaso.

 

Parte 10 – Comunistas/ É bom saber

Na segunda metade da década de 1960 havia diferentes posições políticas no Brasil. Havia os militares (Exército, Marinha, Aeronáutica) e um Partido chamado Arena que defendiam uma ditadura de direita. Também havia os guerrilheiros (PCdoB, PCBR e outros partidos, como MR-8, Colina, ALN) que defendiam uma ditadura de esquerda.

A vida política, porém, não se reduzia a esses extremismos. Existiam os partidos MDB e PCB que defendiam o retorno à democracia. Portanto, na extrema direita e na extrema esquerda havia quem defendesse a ditadura. Da mesma forma que havia na direita e na esquerda moderadas quem defendesse a democracia.

Quem não leva isso em conta tem uma visão simplista da realidade. Tanto a extrema direita lutava pela implantação da ditadura, e de fato a implantou (ver AI-5 promovido pelos militares, por exemplo), quanto guerrilheiros inspirados em Cuba ou no Vietnã tentaram implantar uma ditadura comunista. Mas é sempre bom não esquecer que também havia a esquerda e a direita democráticas, como era o caso do extinto Partido Comunista Brasileiro, recriado recentemente, mas com outros ideais políticos, e o Movimento Democrático Brasileiro.

É preciso reafirmar isso: O Partido Comunista Brasileiro-PCB em momento algum apoiou ou participou em guerrilhas. Ele era chamado pelas dissidências de esquerda – esse era o caso do Partido Comunista do Brasil (PcdoB) – como “reformista”. De certa maneira, o PCB representava no Brasil o que na década de 1970 se denominou como “eurocomunismo”. De acordo com esse movimento, a democracia deveria ser considerada como um “valor universal”, retringindo a ação da esquerda à participação formal no sistema político existente.

Narloch aparentemente desconhece essa pluralidade de posições. Também faz confusão com a questão da “ditabranda”. Emprega dados estatísticos para dizer que a ditadura militar matou pouco frente a outros regimes tirânicos. Esse tipo de artifício deve ser visto com cautela. Imagine, caro leitor, se na tal lista não muito extensa de assassinatos cometidos por servidores públicos militares ou da polícia constasse o nome de seu “pai”? Mesmo assim você chamaria o governo militar de “ditabranda”?!

Os cidadãos não pagam impostos para o Estado contratar torturadores. Isso é crime. Ademais, a estatística não se aplica a esses casos, pois é possível justificar o injustificável através dela. Os “negacionistas” (os que negam o Holocausto) costumam dizer que o número de alemães mortos nos campos de batalhas da Segunda Guerra Mundial é equivalente ao de judeus que morreram em campos de concentração nazistas.

Então, uma cifra compensa a outra. Será que vale a pena pensar assim?

 

Considerações Finais

Não sou contra livros de divulgação histórica. Ao contrário, sou francamente favorável a eles. Nos cursos de História das universidades, fala-se muito do elitismo da sociedade brasileira. Cabe perguntar se a recusa em produzir tal tipo de literatura histórica ou sua condenação à priori não seriam uma forma de elitismo?!

Quando os guias de história politicamente incorretos surgiram vi essa inciativa com benevolência. Achei que eles eram uma versão do humor politicamente incorreto dos anos 1980 e 90. Embora repletos de piadas de mau gosto, não tinham implicações muito graves.

Aos poucos, porém, fui percebendo que muitas pessoas consideram o conteúdo veiculado por estas publicações como uma intepretação válida do passado. Procurei vídeos na internet com entrevistas do pioneiro nessa área, autor da história politicamente incorreta do Brasil, e percebi horrorizado que ele também leva a sério o que escreve.

Mais ainda: comecei a perceber que o candidato de extrema-direita a presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, faz declarações, sobre povos indígenas e quilombolas, que não são muito diferentes das veiculadas no livro politicamente incorreto.

Não cabe aqui especular a respeito da ideologia ou intenção de seu autor, mas sim sublinhar que as ideias por ele veiculadas abrem caminho para que políticos mal-intencionados conquistem o apoio entre os jovens, que nele aprendem, entre vários preconceitos, a desprezar minorias étnicas.

Ao lê-lo, percebe-se também que o único grupo social considerado “herói” é dos bandeirantes, segmento comparável às milícias de assassinos que povoam as grandes cidades de nosso país, segmento que também poderia ser comparado a um sistema policial fora de qualquer controle e autorizado a matar livremente. Eis mais um elemento em comum entre as ideias deste livro e o bolsonarismo.

No Guia politicamente incorreto da história do Brasil, o combate sistemático a qualquer traço de autoestima nacional é outro traço preocupante. Se, nós brasileiros, não formos patriotas em relação a nosso país, quem será?! Com certeza, norte-americanos, europeus ou chineses não ocuparão esse papel. Destruir a autoestima nacional é, portanto, abrir caminho para a destruição nacional.

Acho que é o momento de uma discussão mais ampla sobre os riscos desse tipo de produção histórica. Pessoalmente, não tenho nenhuma animosidade contra o autor do Guia politicamente incorreto da história do Brasil, mas achei que não devia ficar inerte frente a divulgação de preconceitos. Afinal, como o povo diz: “Quem cala consente”!

 

 

 


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Créditos na imagem: imagem de capa do livro Guia politicamente incorreto da história do Brasil, 2 ed. São Paulo: Leya, 2012.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Renato Venancio

Doutor de História, Pesquisador do CNPq 1D e Professor de Arquivologia, na Escola de Ciência da Informação - UFMG.

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