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O que muda a terra – nossa América indígena

O “índio” enquanto fantasia

Nos últimos dias precedentes ao Carnaval, presenciamos uma polêmica que se intensifica em relação à fantasia de “índio”. Prós e contras são levantados e, ao meio de um turbilhão de publicações (principalmente em redes sociais) temos acompanhado os mais variados tipos de posicionamentos. Gostaria de aproveitar essa efervescência de reflexões e emitir algumas modestas ponderações. Entendam como convites à reflexão, livres de qualquer arrogância em tentar esgotar o tema que, além de intensamente complexo, é necessariamente transdisciplinar.

Assim, o primeiro item a ser mencionado aqui é justamente a utilização do termo “índio” no título deste textodeste texto[1]. Sabemos que é um termo intensamente problemático, que reduz a diversidade dos povos indígenas no Brasil à uma generalização unívoca de história patriótica. No entanto, aqui me parece apropriado trabalhar justamente com esse termo, pois um número expressivo de fantasias utilizadas no Carnaval vem justamente dessa generalização dos inúmeros povos indígenas que habitaram e habitam o território brasileiro. Uma visão oposta à pluralidade cultural; uma visão única, no singular gramatical e gênero masculino. Essa é, também, uma primeira crítica à utilização da fantasia: a generalização dos povos indígenas em uma imagem homogênea, e que muitas vezes é associada às imagens de indígenas norte-americanos. Sempre com a falta de rigor em ao menos nomear um povo específico.

Todos os anos vemos pessoas indígenas se posicionarem em relação à campanha: “índio não é fantasia”. E esses sujeitos e suas lideranças se posicionam com as mais diversas argumentações. Edivan Funi-ô disse em sua conta no Instagram que não é “(…) índio pra gringo ver. Minha essência [está] além das aparências” e Emerson Pataxó mencionou em seus stories que usar um cocar (utilizado em cerimônias religiosas) não poderia ser desculpa de homenagem, já que não sabiam o significado do item. Essas são críticas essenciais para entendermos um pouco, e é apenas um pouco, da real situação dos indígenas ao longo do ano, e não apenas durante o período do feriado prolongado.

Vejam bem, em nenhum momento estou me posicionando contra às homenagens aos grupos étnicos presentes em território brasileiro – homenagens genuínas e reconhecidas por esses povos. Em nossa trajetória histórica, devemos muito e eternamente aos nossos antepassados e aos nossos parentes indígenas no presente. Tomo a liberdade aqui em utilizar o termo parente, eu que não pertenço à uma família indígena, para ressaltar minha admiração de constante luta e resistência desses indivíduos e grupos. Minha posição aqui é tentar expandir essa noção de “homenagem” e, mais precisamente, a preocupação com a situação dos povos indígenas ao longo do ano, e não apenas em datas comemorativas, seja no Carnaval, seja no revoltante 19 de abril.

Identidades únicas reduzem a pluralidade presente nas culturas desses povos, e ao limitar uma “homenagem” à fantasia, estamos todos reduzindo-as a meros adereços. E isto NÃO é o que acontece com a performance de Alessandra Negrini, no bloco Cacique de Ramos. Minha intenção aqui não é debater a relação do sagrado e do profano no Carnaval, pois isso já é muito bem analisado por Luiz Antônio Simas. Meu objetivo aqui é ressaltar algo, talvez um tanto quanto óbvio: não-indígenas devem se envolver com lutas dos povos originários do Brasil, ressaltando sua posição de ouvinte, apoiador e não como protagonista. É o que a atriz faz! Seu envolvimento com as demandas dos povos indígenas não é reduzido ao Carnaval. A atriz utiliza de sua profissão e de seu lugar de fala privilegiado para chamar atenção às causas desses povos. Ou melhor, utiliza do espaço de entretenimento para destacar e fazer repercutir as demandas indígenas, através da arte. Vemos aqui a arte como forma de denúncia. A pintura corporal feita em Alessandra Negrini foi realizada por Benício Pitaguary: artista plástico e que, além de ter utilizado materiais próprios ao grafismo – como o Jenipapo e o Urucum -, é da etnia Pitaguary. Além disso, a atriz estava acompanhada de pessoas indígenas, de vários povos, incluindo Sônia Guajajara, importante liderança indígena no cenário político brasileiro. Entendam, esta é uma situação muito diferente da que se encontra o vulgo presidente com Hélio “Negão”.

Foi preciso que Associação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB) se posicionasse em favor da atriz. Em comunicado público, a APIB ressalta que “o momento é de união entre todos, e não atacar uma aliada por se juntar a nós em um protesto. Alessandra Negrini colocou seu corpo e sua voz a serviço de uma das causas mais urgentes. Fez uso de uma pintura feita por um artista indígena para visibilizar o nosso movimento. Sua construção foi cuidadosa e permanentemente dialógica, compreendendo que a luta indígena é coletiva”. Alessandra Negrini foi uma ferramenta para os movimentos indígenas. Se a mídia ou pessoas mal informadas (mas com evidente preocupação com as causas indígenas) a transformaram em protagonista, é tema para um outro debate que, claro, dialoga com este. Porém, ressalto: ignorar o comunicado feito pela APIB, não seria uma consequência da pratica tutelar que o não-indígena fez e permanece fazendo com os povos nativos?

Mas isso tudo se deriva de uma situação ainda mais complexa, já que essa preocupação com temáticas indígenas pode ser originária apenas de um modismo atual. Este é um tema mais delicado, que ponderei muito em escrever sobre. Há um limite que a escrita alcança e que, principalmente no que tange a temática indígena, as letras muitas vezes não conseguem transpor. O que quero dizer sobre “modismo” parte de uma preocupação superficial, muito relacionada às redes sociais, com objetivo de “lacrar” o Outro em frases de efeito. Isto parte de uma visão estritamente ocidental, europeia e, atualmente, muitas vezes, polarizada. Assim, é comum encontrar menções sobre a representação da imagem indígena associada à luta, sofrimento, massacres… não que sejam imagens inverídicas, mas, já mencionado por Chimamanda Adiche, como todo estereótipo este também é incompleto. A incompletude vem justamente de uma visão permanentemente colonizada/colonizadora de não-indígenas, que parte de um “índio” (no singular) ideal, construído no século XIX. Como se esses povos não fossem sujeitos de sua própria história, sempre vistos de forma tutelada…

Ao acusar Alessandra Negrini de apropriação cultural, muitos críticos partiram de uma visão simplista, eurocêntrica e, principalmente, que permanece excluindo as vozes indígenas do processo de representação. Essas vozes estavam lá, mas muitos não estavam preparados para ouvi-las. Ou ainda, não queriam ouvi-las, pois é muito mais fácil ouvir o outro não-indígena do que a multiplicidade de vozes que fazem parte do cosmos ameríndio. É importante lembrar que, só no Brasil, são quase 1 milhão de indivíduos pertencentes aos povos indígenas, e este é um dado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), datado de 2010, já muito defasado. Em uma comunidade tão grande e diversa é simplesmente IMPOSSÍVEL procurar um consenso no assunto. Mas é isso que nós, enquanto não-indígenas, devemos ressaltar.

Então, isso tudo quer dizer que a fantasia de “índio” está liberada? Não, porquê relações humanas, pura e pragmaticamente, não são tão simples assim. Toda a situação do indígena enquanto fantasia não se resume à situação da Alessandra Negrini, assim como a generalização do mesmo é insuficiente para explicar a complexidade da trajetória da imagem indígena, vinculada ao Carnaval. Assim, não é a atriz que “autoriza” o seu uso. O indígena, enquanto fantasia, se remete à própria construção do ideal indianista, travado pelos românticos brasileiros, no século XIX. Já naquele momento a alegoria do indígena o aproxima mais do cavaleiro medieval, em constante servidão (como no caso de Peri e Cecília), do que à diversidade étnica das realidades dos povos indígenas, fundando-se no mito do bom selvagem, como já analisado por Maria José de Queiroz. A “moda” era o próprio indianismo, como aborda a autora: o homem europeu fantasiado de indígena, com um ideal europeu e com ações bem europeias.

Na primeira república, em um passado não tão distante assim, a fantasia de “índio” foi proibida nos Carnavais de rua, do Rio de Janeiro. Diferentemente de agora, este foi um estratagema para a exclusão de uma parte considerável da população, já que era a fantasia mais visada pela parcela pobre da sociedade, como aborda Fernando Gralha Souza. Neste ato de “deletar” o indígena do Carnaval, presumia-se afastar não só a população pobre, mas também a nudez e o próprio “índio”, apartando-os daquela república moderna, e engessando sua imagem a um passado idílico, unívoco, distante e “ultrapassado” – silenciado.

O silêncio é uma constante no que tange a representação dos povos indígenas no Brasil, e é este silêncio ao longo do ano que incomoda. Claro, é importante dizer: um silêncio forçado pelo não-indígena sobre os povos originários nas Américas. Uma mudez que é quebrada apenas no Carnaval, 19 de abril e/ou pelas polêmicas, como foi o caso deste ano. Controvérsias podem ser muito educativas, quando bem argumentadas, mas o que ressalta nesta questão do indígena enquanto fantasia é justamente o silêncio sobre as temáticas indígenas, que se faz presente no restante do ano. A mudez forçada sobre as vozes indígenas, mas não dos que pretendem falar por eles. Mas claro, posso ser acusada de fazer justamente isso! E, em alguma instância, talvez eu esteja. Mas creio que pensar o meu espaço de fala enquanto privilegiada para ressaltar essas vozes inaudíveis durante o ano, me aproxima mais de uma apoiadora da luta indígena, do que de tentar me alçar enquanto protagonista.

O meu apelo aqui, então, é para que nós, não-indígenas, repensemos nosso lugar de fala privilegiado e que exercitemos nossa capacidade de escuta, tão necessária neste momento político delicado. Encaminho a finalização deste rápido comentário, relembrando a fala de um ex-aluno durante um debate travado em sala de aula, sobre apropriação cultural. A conclusão se resume à: podemos então utilizar de determinados símbolos que se referem à inúmeras lutas. Mas dependendo da situação, devemos?

 

 

 


REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2009.

SIMAS, Luiz Antônio. O Corpo Encantado das Ruas. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2019.

SOUZA, Fernando Gralha. Diversão: modo de usar.  IN.: Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 7, nº 77, Fev., p. 78-73, 2012.

QUEIROZ, Maria José de. Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas. Belo Horizonte, Imprensa da UFMG, 1962.

 

 

 


NOTAS

[1] Agradeço as indicações de leitura de Andrea Sanazzaro Ribeiro sobre a relação do sagrado e profano no Carnaval. À leitura detida de Felipe Alves de Oliveira, Caroline Coelho Fernandes e Clayton José Ferreira. Aos meus alunos e especialmente ao meu ex-aluno Yan Bruno Mesquita de Assis, que trouxe reflexões adjacentes ao final do texto, mesmo sem saber. Um agradecimento especial ao Mestre Ademário Souza Ribeiro, do povo Payayá, que tão prontamente leu este texto com atenção e dedicação. Como diz Ailton Krenak: “somos seres coletivos. Não alcançamos nada sozinhos”.

 

 

 


Créditos na imagem: Foto de Bruno Rocha.

 

 

 

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