Primeiramente, é preciso destacar que há formas diversas de se perceber e vivenciar um território, pois o mesmo é visto de forma híbrida, ressaltando aspectos culturais, políticos, jurídicos, sociais e econômicos distintos. Nesse sentido, como aponta Rogério Haesbaert, em “O Mito da Desterritorialização” (2004), os territórios não são definidos por apenas uma das categorias mencionadas, sendo fundamental que os territórios analisados sejam entendidos por meio de tais conceitos simultaneamente. Dessa forma, o autor ainda apresenta a proposta de multiterritorialidade, que se define a partir da noção de que um território é formado pela partilha de experiências culturais múltiplas, em um mesmo local, ou ainda, povos que acessem um mesmo território em uma mesma partilha de proposta epistemológica, cultural e espiritual, como é o caso do território do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Ainda, Haesbaert propõe que os territórios são constituídos mediante a relação humano/animal com o ambiente, além de aspectos simbólicos de interação e por meio de diferentes dinâmicas, a depender do povo analisado, período e suas próprias historicidades.
Dessa forma, a territorialidade deve ser encarada como um esforço coletivo de, aqui, um povo indígena ocupar, se identificar e estabelecer relações sociais, culturais, econômicas e políticas com e a partir de um território, como demonstra Paul Little, em “Território sociais e povos tradicionais no Brasil” (2018). Além disso, o autor destaca a importância memorialística do povo com aquele espaço, ressaltando a importância grupal de reconhecimento identitário e de suas diversidades cosmogônicas, relacionando as cosmogonias dos povos originários com as geografias específicas de cada território.
Assim, a partir de Carlos Fausto, em “Os Índios Antes do Brasil” (2000), que propõe recorrer às evidências arqueológicas e relatos contemporâneos para entendermos as vivências indígenas em diferentes temporalidades, podemos estabelecer que a relação dos povos originários com seus territórios tradicionais vai muito além de um vínculo ocupacional ou econômico. Essa proposta de Fausto se baseia nos conhecimentos milenares desses povos e não em algum tipo de engessamento cultural. Aqui destaca-se o povo Krenak de Minas Gerais e sua relação com o Rio Doce, ou para os mesmos, o Watu. No livro, “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), Ailton Krenak explica que o rio é um parente vivo, atacado pela ambição do não-indígena através do crime da mineradora Samarco. É o Watu que irriga outro parente, a serra Takukrak, que conversa com o povo Krenak que vive na região. No século XIX, o povo Krenak, generalizado com outros povos como “Botocudos”, foi alvo de tentativas de expulsão de seus territórios e de genocídio. Através da Carta Régia de 1808, que promulgou a guerra ofensiva aos “botocudos antropófagos”, os Krenak junto aos Giporok por exemplo, foram sistematicamente violentados. De acordo com Maria Hilda Paraiso, em “O Tempo da dor e do Trabalho” (1998), os Botocudos foram alvo de um depreciação máxima com objetivo de usurparem seus territórios tradicionais, pois os mesmos eram ambiente para escoamento de mercadorias, através das vias fluviais.
O movimento de constituir uma identidade depreciativa sobre os povos indígenas fez parte, em larga escala, de ferramentas de desterritorialização e negação de seus direitos originários, desde o período colonial, sendo o próprio colonialismo encarado como mola propulsora para as tentativas de desterritorialização e etnocídio, em uma perspectiva de longa duração. Aqui é preciso mencionar que o próprio processo de desterritorialização é seguido, histórica e geograficamente, pelo processo de reterritorialização, pois a desterritorialização completa é impossível aos grupos humanos, como defende Juliana Bueno Mota, em “Territórios e Territorialidade Guarani e Kaiowá”.
Dessa forma, pode-se dizer que a territorialidade atual dos povos originários é fruto de constantes violências e resistências por parte dos indígenas, e que elas vão diferir a depender do tempo e região abordados. Se, por exemplo, analisarmos boa parte do período colonial, precisaríamos apontar os “descimentos”, que foram práticas de aprisionamento e escravização dos povos originários, como parte latente do processo de desterritorialização indígena, como demonstrado por John Monteiro, em “Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo” (1994), os “descimentos” locomoviam indígenas escravizados por uma enorme extensão territorial, afastando-os maximamente de seus territórios tradicionais. Um exemplo disso foram os descimentos que reconduziram os Carijós, originalmente aprisionados na região da Lagoa dos Patos, atual Rio Grande do Sul, e levados por toda extensão territorial até a região de Ouro Preto e Mariana, em Minas Gerais setecentista, como aponta Renato Venâncio, em “Os Últimos Carijós: escravidão indígena em Minas Gerais 1711 – 1725” (1997).
Além disso, é preciso ressaltar também a movimentação espontânea desses povos, considerados como nômades e semi-nômades por um viés colonialista. Como se encontravam em trânsito voluntário, o trajeto realizado também faria parte das suas identidades coletivas e, por isso, parte da territorialidade de seus povos. É o caso do povo Puri, que tem como territórios originários as regiões de fronteira política dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Essas regiões, como a Serra da Mantiqueira, são espaços de memória viva, como defende a historiadora Aline Rochedo Pachamama, em “Boacé Uchô: a história está na terra” (2021). No livro, a autora apresenta relatos de Puris entrevistados, mencionando suas relações com a terra e suas ancestralidades. É possível perceber também o resquício das opressões e tentativas de silenciamento e invisibilização do povo Puri (e outros povos originários), quando ainda relatam o medo de se autoidentificarem como indígenas.
A negação das identidades indígenas está dinamicamente relacionada com as terras que esses povos ocupavam e ocupam. A partir de uma bipolarização entre Tupis (os indígenas passíveis de “civilização”) e Tapuias (indígenas irredutíveis, considerados “incivilizados”), como apresentado por John Monteiro, em “Tupis, Tapuias e Historiadores” (2001), podemos perceber uma tentativa de desindentificação indígena, por meio da evangelização, da “civilização”. Ou seja, para deixar a “selvageria”, era preciso deixar de ser indígena. Óbvio que apesar das tentativas de etnocídio, os povos originários resistiram, como mostra Pierre Clastres, em “Do Etnocídio” (2004). No entanto, cabe ressaltar aqui que tal processo trouxe como consequência uma forte destituição dos territórios indígenas, e estes povos foram obrigados a negarem suas ancestralidades e, com isso, seus direitos originários à terra.
Ao mesmo tempo, os indígenas considerados bravios, os Tapuias, eram encarados como empecilhos, pois faziam frente aos adentramentos de seus territórios, invadidos pelos europeus. Outro exemplo, além dos já mencionados Botocudos, foram os Cariris, na região nordeste, onde se localiza hoje os estados do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Após a saída dos holandeses da região, esse povo (dentre outros) limitou fortemente a continuidade de invasão de seus territórios, no que ficou conhecido por “Confederação dos Cariris”, como apontou Capistrano de Abreu, em “Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil” (1989). Aqueles povos frearam os portugueses por longos anos, desde o fim da insurreição Pernambucana, até o início do século XVIII.
Percebemos assim, como a configuração geopolítica atual está diretamente relacionada com os conflitos pela terra e pelos territórios originários. Utilizou-se aqui termo “originário” em referência aos direitos inalienáveis dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais, incluindo o céu, pois este também faz parte da territorialidade, como explicou Davi Kopenawa, em “A Queda do Céu: palavras de um xamã Yanomami” (2010). Considera-se aqui também que o termo “tradicional” não se relaciona necessariamente ao conceito de “antigo” e, portanto, a tempo transcorrido de territorialidade. “Tradicional” aqui se refere à relação cultural, social e histórica dos povos indígenas com o território habitado, como propõe Alfredo Wagner Berno de Almeida, em “Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais” (2004).
Conforme a “Tese do Indigenato”, formulada por João Mendes Júnior para o Brasil, em 1902, o título dos indígenas sobre suas terras é originário e, como direito fundamental, não exige legitimação por parte desses povos, como demonstra também Manuela Carneiro da Cunha, em “Os Direitos dos Índios” (1987). O termo “originário” é utilizado desde então como termo político e jurídico, destacando que a demarcação de terras não se limita a levantar espaços utilizados para a habitação e produção econômica, mas inclui também a relevância para suas culturas, religiões e organização social (no passado e no presente), como demonstra Thiago Cavalcante, em “Colonialismo, Território e Territorialidade: luta de terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul” (2013). Salienta-se aqui que há estados, como o Ceará e o Piauí, que decretaram, em passado recente, a extinção dos povos indígenas em seus territórios.
É por isso que a autoidentificação individual e coletiva se relaciona diretamente com a terra, e por isso, especificamente, a territorialização. É também por isso que há projetos políticos de negação das multiplicidades e pluralidades das identidades indígenas, pois elas se relacionam ao ambiente habitado por territorialidade. As frentes de expansão agropecuária, principalmente a partir da Primeira República brasileira, assim como abertura das estradas e instalação de telégrafos, foram motivos principais de intensos conflitos com povos indígenas, ao longo do século XX, como o caso dos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, o Kayapó, em Goiás (mais no início do século XX), os Pataxó na Bahia. É possível perceber um vão entre os estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás antigo (atual Tocantins) no mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju, confeccionado durante a primeira metade do século XX, demonstrando assim a expulsão de inúmeros povos de suas terras ancestrais.
Em janeiro de 2021, foi publicado um parecer escrito pela Advocacia Geral da União (AGU) para a FUNAI a respeito de um suposto “problema” sobre a autoidentificação indígena (confirmado na resolução Nº 4 de 22 janeiro de 2021, publicada pela FUNAI). O documento aponta que a autoidentificação funcionaria para uma demanda pessoal e satisfação particular e individual, mas que para a utilização de políticas públicas, incluindo cotas, bolsas e mesmo podendo ser utilizado para a demarcação de terras, seria preciso o processo de heteroidentificação. Ou seja, não-indígenas atestando (ou não) a identidade indígena, obviamente baseado em estereótipos e com a finalidade de negação de seus direitos básicos e originários (a FUNAI revogou essa resolução em 2023),. Outro projeto inconstitucional é o infame “Marco Temporal” e que se relaciona diretamente com o debate deste texto. A ficção estabelecida pelo “Marco Temporal” alega que os povos indígenas teriam direito à terra que ocupam apenas a partir de 1989, com a instituição da Constituição Federal, negando portanto o passado colonialista e a dívida histórica do Estado para com os povos originários.
Créditos da imagem da capa: Hellen Loures/Cimi