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Além do olhar: as artistas do Brasil

O meu bem, a minha lira  

Na pausa para o silêncio. A música ecoava. A fruição musical é, como nas artes visuais e nas artes táteis, um meio pelo qual podemos percorrer caminhos e descaminhos através das sensações, das memórias e dos questionamentos. O estudo da Teoria dos Afetos, sobretudo quando aplicado ao período barroco e pós-barroco, revela as profundas relações entre arte e sentimento. Imagine encontrar-se, então, na seguinte situação: ouvir determinada música cuja autoria é desconhecida ou anônima, mas que lhe aciona, imediatamente, vários signos e afetos, quais seriam as reações possíveis?

Talvez a reação mais objetiva seja a de buscar pela autoria. Tendemos a perguntar, a procurar por produções semelhantes ou, ainda, a adentrar em todo um movimento de pesquisa aprofundada. Na musicologia dispomos, por exemplo, de metodologias e de teorias específicas para a prática investigativa e até mesmo para a reconstituição de formas musicais com as quais dificilmente teríamos contato. Seja pela falta de registros escritos ou por outros motivos. Um caso interessante para ser lembrado: o projeto Musica Brasilis, coordenado pela musicista e pesquisadora brasileira Rosana Lanzelotte, une Música e História através de espetáculos, de entrevistas e de oficinas – muitas delas contando com obras e com trajetórias raramente ou nunca apresentadas ao público.

Tal como aconteceu no campo das artes plásticas, ou das artes visuais, nos campos da música e da literatura brasileiras encontramos inúmeras artistas de grande renome e de grande relevância para a constituição de um cenário mais inclusivo e mais democrático sob a perspectiva de gênero. As musicistas e escritoras encontraram, em seu trabalho, formas de emancipação profissional através do estudo e do exercício criativo empregados em suas composições, em seus arranjos e em suas formas textuais diversas, como a poesia ou a crônica.

Chamou-nos a atenção um nome que em pesquisas, em conversas e em projetos musicais sempre era evocado: Beatriz Francisca de Assis Brandão, frequentemente mencionada como Beatriz Brandão. Sob o ponto de vista das pesquisas sobre musicistas e compositoras brasileiras seu nome figura com frequência dentre as pioneiras, mas a falta de acesso às suas composições torna a sua produção musical uma incógnita para a musicologia e, mais ainda, para o grande público. Brandão pôde, no entanto, ser identificada como a primeira compositora de grande projeção pública no Brasil através de registros documentais, como publicações da imprensa e arquivos públicos. A sua atuação apresenta maior visibilidade sob a linguagem artística da escrita poética, a qual se dedicou com grande afeição desde a juventude e com a qual alçou cargos de grande importância nas áreas da educação e das artes. A partir de uma breve apresentação da sua trajetória e da sua obra inicia-se uma nova série para esta coluna, com foco nas atuações de musicistas, de compositoras e de escritoras.

Nascida em Vila Rica (atual Ouro Preto – MG), em 29 de julho de 1779, Beatriz Brandão era filha de Francisco Teobaldo Sanches Brandão e Isabel Narcisa Feliciana de Seixas. Era prima de primeiro grau de Maria Dorothea Joaquina de Seixas, popularmente conhecida como Marília de Dirceu, esposa e musa inspiradora das obras de Tomás Antônio Gonzaga. A sua formação educacional, apesar de se assemelhar a das suas contemporâneas, sobretudo pela finalidade matrimonial, tornar-se-ia distinta a partir do desejo de Brandão pelo aprofundamento nos estudos e nas práticas em Literatura. É importante destacar que nas famílias aristocratas a educação das mulheres incluía, para além das atividades de cuidado com o lar, atividades artísticas como aprender a ler e escrever, a pintar e a tocar instrumentos musicais. Assim como já demonstramos em outros textos referentes às pintoras, por exemplo, era nesse momento inicial e, à princípio, sem intenções de formação com fins de atuação pública (apenas doméstico e familiar), que muitas mulheres viam a oportunidade para se emanciparem criativa e, por conseguinte, profissionalmente.

Neta do general e grande literato Bernardo da Silva Ferrão, Beatriz Brandão enfrentaria a resistência da família e de outras pessoas no que se referia à sua decisão em levar os seus estudos e as suas produções literárias adiante. O limite entre a necessidade desses aprendizados pelas mulheres com vistas ao matrimônio quando ultrapassado não era bem visto socialmente, sendo, frequentemente, associado à inutilidade ou até mesmo à formas de rebeldia. A autonomia de Beatriz Brandão fora um fator diferencial, uma vez que, sem o apoio de professores e de instrutores, resolveu levar os seus aprendizados de forma autônoma. Aprendeu italiano, francês, técnicas de composição poética e musical. Não demorou muito para que os seus talentos fossem publicamente reconhecidos, e Brandão passou a ser considerada não apenas como grande artista, mas também como grande intelectual. A publicação do seu primeiro poema no periódico À Beira do Itacolomi marca a primeira publicação poética escrita por uma mulher no Brasil. Dentre os principais veículos em que as suas poesias foram publicadas destacam-se os mineiros e os fluminenses, como a coletânea Parnaso Brasileiro e o jornal Marmota Fluminense.

Fonte: A Poesia do Brasil – Beatriz Brandão. Disponível em: https://apoesiadobrasil.blogspot.com/2013/03/beatrz-brandao-1779-1868.html

 

A sua consolidação em Ouro Preto se deu através da escrita, mas, também, por meio da sua atuação como regente do Coral da Igreja do Pilar, bem como enquanto fundadora da primeira escola para mulheres da freguesia ouro-pretana de Antônio Dias, a Escola de Primeiras Letras, fundada em 1830. Brandão figurava, então, como uma das três primeiras mestras de instrução pública de Minas Gerais. Os exames tomavam lugar na Casa da Câmara Municipal e eram públicos, além contar com número expressivo de espectadores, dentre esses, jornalistas e figuras políticas importantes da cidade. De acordo com o que relata um dos artigos de ofício do periódico O Universal, de 11 de julho de 1832, Beatriz Brandão era a responsável por realizar as entrevistas do concurso. As perguntas eram acerca de temas como a Doutrina Cristã, a Gramática Brasileira e a Aritmética. Cláudia Pereira, em sua palestra Vida e Obra da escritora Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779-1868) – YouTube, realizada em 2020 para o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, destaca que havia certa vigilância por parte do público quanto à dinâmica e, principalmente, os conteúdos propostos pela Escola para mulheres. Assim, Brandão tomava o cuidado de reforçar aos familiares e demais espectadores das entrevistas que a Escola tinha o objetivo de ensinar atividades como leitura e escrita, bordado e outras artes e ofícios ligados ao lar. Concomitantemente, e muitas vezes de forma reservada aos olhos do grande público, a Escola oferecia formações em áreas de conhecimento científico, linguístico e filosófico, por exemplo. As entrevistas representavam, por essa razão, um risco que deveria ser mediado para garantir às futuras alunas a oportunidade de desenvolver autonomia e criatividade para além das funções domésticas. As reações do público variam entre a admiração e a expectativa, entre a reprovação e a condenação moral pela “fuga” à tradição.

Segundo a professora Cláudia Gomes Pereira, autora do estudo acadêmico seminal sobre Beatriz Brandão intitulado Contestado fruto: a poesia esquecida de Beatriz Brandão (2011), as obras literárias de Brandão desaparecerem após a virada do século XIX devido a uma provável desvalorização por se tratar de obras feitas por uma mulher. Mas algo que é de grande relevância refere-se ao fato de que as suas publicações se davam por subscrição, ou seja, eram fruto de uma rede colaborativa entre escritores que financiavam as divulgações do material para que fossem encomendas por parte do público e, assim, ocorressem as impressões. Isso demonstra, de alguma maneira, certo grau de visibilidade e de reconhecimento junto ao campo literário.

O episódio que gostaríamos de nos dedicar com maior afinco refere-se à indicação, feita pelo historiador Joaquim Norberto de Souza, para que Beatriz Brandão se tornasse membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no ano de 1850. A partir das suas publicações a escritora ganhou o reconhecimento e a admiração de outras figuras importantes, como Gonçalves Dias e Joaquim Manoel de Macedo (esses dois últimos sendo os pareceristas do pedido de Joaquim Norberto de Souza e autores de um texto laudatório que reconhecia favoravelmente não apenas a produção literária de Brandão, como, também, a sua coragem enquanto mulher para tornar públicas as suas poesias). O pedido não foi aceito. Interessante observar que o registro do pedido e do parecer final reverberou na Revista do IHGB por cerca de 70 anos. Redigido em 1850, o texto continuava a ser replicado na década de 1920, ganhando comentários e outros complementos ao longo dos anos. Brandão foi ninguém menos que a primeira mulher a receber tal indicação, e todo o processo que envolveu o pedido foi acompanhado de intensas discussões sobre o mérito (ou a falta dele) da escritora para receber a honraria.

Alegou-se que a escritora não poderia, de início, receber o título por ser mulher. Simultaneamente tomavam lugar as discussões que justificavam a recusa com base no fato de que Beatriz Brandão não era uma historiadora, mas, sim, uma escritora/poetisa, cujo título seria melhor justificado por meio da criação da Academia Brasileira de Letras. Apesar de não ter participado das agremiações, a escritora foi tardiamente reconhecida institucionalmente ao se tornar patrona de uma das cadeiras da Academia, além de ter sido homenageada no Instituto Geográfico de Minas Gerais. De acordo com Pereira (2020), a trajetória da escritora apresenta aspectos incomuns às demais trajetórias de escritoras contemporâneas devido ao fato do seu reconhecimento ter ocorrido enquanto Brandão ainda estava viva e atuando. A isso soma-se o esquecimento, ou mesmo emudecimento projetado, após a sua consolidação na virada do século, contrariando a tendência geral apontada pela autora.

Aqui, como não poderíamos deixar de discutir, a perspectiva de gênero do século XIX despontou como um grande obstáculo à memória de Beatriz Brandão. No âmbito da sua vida pessoal, Brandão aguardava há anos a autorização para se divorciar do seu marido, que deveria ser concedida por um juiz eclesiástico. A demora do processo, malquisto pela sociedade da época, termina quando a escritora já contava com seus 60 anos de idade. Pereira (2020) identifica nesse episódio um contraponto que explicaria o esquecimento de Brandão. Mesmo consolidada profissionalmente, e tomando os cuidados para não representar um risco às limitações impostas às mulheres ao mesmo tempo em que as ajudava na busca pela autonomia, o divórcio lhe despendeu consequências. Ao decidir se mudar de Minas Gerais para o Rio de Janeiro para recomeçar sua vida, Beatriz Brandão desvinculou-se da atuação desempenhada até então, além de ter sofrido, em algum grau, com os julgamentos pessoais em razão do divórcio. O peso desses julgamentos e da não-aceitação, é importante dizer, recai sobre as mulheres de forma moralizante, desvalorizando a sua biografia, levando até mesmo ao ostracismo, como no caso de Brandão.

As relações com o marido, como registrado em documentos como inventários, eram fortemente baseadas em fatores de interesses financeiros da parte do seu, agora, ex-marido. Pereira (2020) analisa, assim sendo, a possibilidade de difamação da figura de Beatriz Brandão também da parte de outros familiares, sobretudo, após o segundo casamento.

Dentre as suas principais composições musicais estão as traduções das óperas Alexandre na Índia, Angélica e Medoro, Diana e Endimião, José no Egito e Sonho de Cipião. Composições musicais como a Cantata aos anos da Imperatriz Leopoldina, Drama à coroação de D. Pedro I e Drama ao nascimento de D. Pedro II. Brandão era, inclusive, bastante próxima da Família Real, mantendo relações de grande amizade com Dom Pedro I. O Jornal do Brasil apresenta Brandão como a anfitriã do então Imperador do Brasil na viagem a Vila Rica alguns anos após a Independência. Alguns anos mais tarde o mesmo jornal destaca o espetáculo musical, uma ópera de sua autoria, em homenagem a Dom Pedro I, no qual Brandão desempenhou funções variadas – dentre elas a de regente da orquestra e cantora, surpreendendo o Imperador. A ópera foi apresentada na Casa da Ópera/Teatro Municipal de Ouro Preto. Além disso, a letra do Hino da Independência foi atribuída à Brandão por Augusto de Lima. Supõe-se que as partituras das suas composições estejam nos arquivos da Casa do Pilar, da Casa dos Contos e da Câmara Municipal de Ouro Preto ou, ainda, no vasto acervo musicológico do Museu da Inconfidência, que reúne cerca de 5000 obras de artistas diversos produzidas desde o período colonial brasileiro. Após o falecimento de Beatriz Brandão, em 1868, Joaquim Norberto de Souza teria recebido o pedido para que entregasse um saquinho com poesias à Imperatriz Teresa Cristina para que ela as publicasse. O presente, um pouco mais adiante, retorna às mãos de Joaquim Norberto através de D. Pedro II, que requisita ao historiador a publicação de um livro com todos os poemas da escritora, mas a publicação não ocorre por falta de verbas. Seus poemas têm temas como o patriotismo, a natureza e poemas pré-românticos – dos quais também é precursora. Fala das críticas e das difamações que sofreu por parte de outras pessoas, inclusive de mulheres da família, ao decidir pela carreira de escritora.

Cláudia Gomes Pereira (2011) observa que esses poemas satíricos sobre as críticas recebidas revelam aspectos acerca do destino de algumas das produções de Brandão. A atividade da escrita era então considerada um pecado, ou algo distante de Deus, para as mulheres. Como se sabe Ouro Preto era uma cidade com forte influência religiosa católica que exigia rígida observância ao cumprimento das determinações morais, sobretudo, para as mulheres. A escritora sugere, por meio dos poemas, que a sua família tenha queimado muitos dos seus textos, tendo como justificativa a questão religiosa.

Mesmo com todas as dificuldades de acesso às suas produções e menções, a sua importância social pode ser percebida, atualmente, pelas várias iniciativas em que o seu nome é mencionado a partir da noção de “pioneirismo”, como em pesquisas, em eventos voltados à história das escritoras e das compositoras brasileiras e, desde 2009, por meio da Comenda Beatriz Francisca de Assis Brandão, criada pela resolução nº04/2009 para homenagear pessoas ou entidades que prestam relevantes trabalhos nas áreas da educação e das artes, principalmente relacionados aos direitos da mulher.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

A Mulher. In: Marmota Fluminense. 10 de abril de 1855, p.3. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/706914/559

Notas Sociais – Beatriz Francisca de Assis Brandão. In: Jornal do Brasil, 14 de janeiro de 1941. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_06/7521

Ouro Preto. In: O Universal, 11 de julho de 1832, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/706930/4711

PENALVA, Gastão. O divórcio de Beatriz Brandão. In: Jornal do Brasil, 4 de fevereiro de 1834, p. 12. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_05/40496

PEREIRA, Cláudia Gomes. Contestado Fruto: a poesia esquecida de Beatriz Brandão (1779- 1868). Lisboa: CLEPUL, 2011, 358 p.

______________________ . Vida e Obra da escritora Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779-1868). Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DHleFTGWhO0

 

 

 


Créditos na imagem: Albert Edelfelt, Esquisses dans le salon de Haikko, 1888. 1. & 3. Galerie nationale de Finlande / Ateneum, Helsinki. 2. Nationalmuseum, Stockholm. Disponível em: https://albertedelfelt.com/2019/11/11/au-piano/

 

 

 

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