Não era de prata nem de ouro, o tal garfo de cozinha. Mas era grande e brilhante daqueles que acabavam sendo escolhidos em quase todas as refeições. Adorava se encontrar com a faca no resvalar do vai e vem das horas de comer.

Ele era muito eficiente na hora de garfar o arroz com feijão. Gostava também de massa à carbonara, do cheiro do molho com o queijo, do de se balançar nesse caminho em que as mãos vão da boca ao prato, conduzindo os alimentos: nham nham!

Passava pouco tempo dentro da boca, mas era o bastante para sentir o macio da língua, a umidade da saliva e, às vezes, a dureza dos dentes. Não se importava com dentes tortos, obturações e nem com boca banguela. Ia boca adentro, boca a fora, prato cheio, prato vazio (ou será o contrário?).

O garfo morava na casa de um homem sozinho, sério e sisudo, em um apartamento simples, no centro de uma cidade. Todos os dias ficava feliz de ser, dentre outros, retirado da gaveta nos momentos de refeições. Às vezes nem para gaveta ia: passava a semana inteira sendo lavado e reusado, ali mesmo, na pia. Adorava ficar um tempinho batendo papo dentro com os outros talheres e louças. Gabava-se de quase sempre estar limpo, mesmo sujo, já que ao passar pela boca a mesma fazia o serviço antecipando o trabalho da bucha na pia.

Quando o homem viajava era um tédio! Escondido, acuado e na gaveta, garfo passava dias inteiros só vendo o fio de luz  pela fresta. As vezes o tempo era lento, longos 30 dias de férias. Mas poderia ser apenas algumas semanas o que não fazia diferença, tamanho tédio o de ficar naquele suporte de plástico, bege e barato.

Nem sempre queria comentar seu descontentamento com os outros talheres. No limite da solidão, num dia qualquer, puxou assunto com o paliteiro de dentes que estava sob a pia, antes do almoço ficar pronto.

– As vezes a vida parece uma mesmice, não acha? Disse o garfo.

– Mesmice? Eu não! Passo o dia vendo as coisas aqui de cima. Lógico, não gosto quando vem a faxineira e me coloca dentro do armário. Mas, muitas vezes, consigo a ver até as novelas, as notícias do jornal… Respondeu o paliteiro.

– De que adianta ver as notícias se não participamos desse mundo? Somos alheios e, além de tudo, só somos importantes quando servimos… Respondeu o garfo, deixando, dessa vez, o paliteiro em silêncio e pensativo.

O fato é que o paliteiro nada disse uma vez que, na verdade, estava em desuso. Seu papel no diálogo foi o de negar o que já há tempos o incomodava. Ninguém hoje em dia palita os dentes à mesa. Além disso, o pilão, que muitas vezes é usado para amassar alho, ouviu tudo. Há tempos sentia a mesma angustia do paliteiro. Na casa começou a entrar muitos produtos pré-fabricados, temperos prontos, seleta de legume congeladas, coisas que os supermercados passaram a oferecer para pessoas sem tempo.

Não alheio, a caixa de fósforo gritou:

– Mesmice! Haja mesmice! Estou há meses engordurada nesse canto! A única coisa para qual eu sirvo é acender velas. Torço para que a privatização da companhia elétrica da cidade continuar a oferecer péssimos serviços! Ninguém nem fuma mais! Esse tal de micro ondas chegou e eu achei que não ia ser nada! Depois o fogão com acendedor elétrico! Toleima! Daqui um dia só vou servir para nessas colagens de tarefas de crianças!

Foi nessa hora que as taças se movimentaram na cristaleira. Até gostavam de estar ali, lado a lado, retiradas em ocasiões especiais. Mas as tais ocasiões estavam cada vez mais escassas. Ao mesmo tempo, na cozinha, todos os objetos começaram a questionar o sentido da sua existência. E cada um deles descobriu que tinha motivos para isso. Desde a batedeira de bolo até a garrafa de café, que foi há tempos trocada pela cafeteira.

O garfo, provocador de todo o alvoroço, gostava de estar à mesa. Adorava ouvir os barulhos da cozinha, mesmo no café da manhã quando podia espetar um pedaço de mamão ou de melão. Curtia também aquele parque de diversões que era a máquina de lavar louça, um equipamento suntuoso que desde que chegou ao apartamento era usado pelo menos uma vez a cada dois dias. Que delícia ver os jatos de água morna esguichando sem parar, pra lá e pra cá, com sabão, sem sabão. Estar ali era se sentir em uma roda gigante. Além disso, sempre que era lavado na máquina, ficava brilhando e quentinho. Adorava sensações diferentes.

Garfo sonhava e nessas horas era plenamente feliz. Mas após aquela conversa a cozinha nunca mais foi a mesma. Parecia que pesava sob cada coisa a solidão do dono da casa. Foi assim que de algum lugar começou um burburinho, uma ideia e outra que foi crescendo como fermento de bolo.

Até que alguém, não se sabe quem ou como, sentenciou: existe sim outro mundo! Mas como seria esse mundo?

No início as colherezinhas de café ficaram serelepes de felizes com a notícia de que poderia haver outro mundo. Até mesmo alpaquinha, uma colherzinha pequena de café, que já pertenceu a um jogo de casamento, reclamou, pois há tempos não via a cor das paredes da cozinha. Desde que virou moda tomar café sem açúcar, ninguém nunca mais a tocou, a não ser por acidente. Bons tempos o do casamento, quando a mesa era posta todos os dias o os talheres de prata alpaca de lei. Ah, grandes e interessantes eram os domingos! Quantas memórias felizes da época em que as crianças comiam frutinhas raspadinhas. Agora a colherzinha só saia da gaveta nos dias em que o café era substituído pelo chá e foi numa dessas vezes que ela foi levada para o escritório e lá ficou, esquecida detrás de uma pilha de papeis.

Passa um dia, vem outro dia, colherinha suja de açúcar acabou atraindo formigas para si. Inconformada com tamanho descaso, contou a todos em um discurso fremulante da existência de um mundo dos objetos, um mundo onde tudo era diferente. Discurso repassado e aumentado, para além do seu tamanho, a medida em que os livros ouviam, os papeis e documentos também, ela mais inventava.

– Saibam todos! disse a pequena colher. Há um mundo onde não somos inúteis, nem um dia sequer esquecidos! Onde podemos circular pelos nossos circuitos e outros. Todos na cozinha já sabem e se preparam para ir para lá!

E se preparam para ir pra lá? Que frase era essa? A coleção inteira da enciclopédia barsa estremeceu! Desde as figuras até a lombada, as letras douradas da capa dura, desgastadas, tiveram um ímpeto de esperança! Queriam mais notícias desse mundo, queriam mais informações. Todos na cozinha já sabem, como assim? Como o saber começaria numa cozinha, alheio ao conjunto de obras raras que ali se acumulava, todo o conhecimento do mundo escrito em tantas e tantas páginas e por tantos homens. Uma revolução de garfos, paliteiros e fósforos? Só faltava dizer que os panos de prato também estariam nessa…

Mas foi um livro de literatura neorrealista que ficou faceiro. Pensar que havia outro lugar para estar era pensar na possibilidade de ser outro. Como se apaixonar: a chance de ser outra pessoa. Melhor ainda quando se tem a chance de ser você mesmo ao lado de outra pessoa. E após a ida da colherzinha de volta para a cozinha, encontrada uma semana depois pela faxineira, o livro de Armando Fontes ficou com aquelas ideias e no meio da diversidade. Era claro que alguém mais se motivaria a trocar esse diálogo. Era preciso romper o silêncio. A maior parte dos livros se comprometeu e ajudar no momento em que fossem levados, seja por alguém ou mesmo pelo vento, para fora do escritório.

Até que um dia o homem levou um livro para o quarto e antes de dormir deixou-o junto a cabeceira da cama. E o livro, tão logo a noite caiu, sentiu-se livre para se abrir ali mesmo com a gaveta do criado. E nela encontrou mais objetos interessados em saber da história, que nesse momento era grande e forte, um discurso elouquente que todos ouviam no silencio da noite.

As gravatas do armário ficaram serelepes. O velho palitó usado em raras ocasiões era conservador demais para achar que sairia dali. Mas a revolução veio com as meias: essas sim, nem sempre os pares, se mostraram animadas com a possibilidade! As meias amaram a ideia! Mas algumas já há muito tempo achavam a vida sem graça.

E foram as meias que decidiram, ainda dentro da gaveta, organizar uma primeira convenção. Era preciso saber mais notícias, o que não foi difícil. Tão logo um par delas esteve na cozinha, anexo à área de serviço do apartamento, lançou perguntas a todos ali, ávida por levar as boas novas.

Tudo demorou um pouco, pois aquele homem só saia uma vez por mês, para ir ao dentista. Era a única ocasião em que colocava os sapatos pretos de cadarço. Há meses só calçava os chinelos na hora do banho e no resto do tempo permanecia andando descalço. E foi em uma dessas vezes que as meias lançaram mão das informações.

Em outra ocasião, com a ideia já amadurecida, contou a escova de lavar roupas, ao sabão, a água sanitária e a água da torneira. A água (tanto a do tanque quando a da pia) levou a notícia para os canos e as ideias percorreram de modo fluido todas as engrenagens do prédio. E lá se disseminou por tudo, depois por toda a rua, pelo bairro, pela cidade, pelo município, por todas as outras cidades onde o rio onde desagua e o esgoto toca.

Ninguém sabe ao certo como essa história termina. Mas com certeza essa é a única explicação para o paradeiro das coisas perdidas. Um mundo desconhecido pelas mães cuidadosas e desesperadas em busca dos pés de meias que somem dos pares de meias dos filhos, mesmo quando colocados em pares nas máquinas de lavar.

Além disso, tampas de caneta, parafusos, chaves de casa, anéis, brincos, moedas, pecinhas de quebra cabeça, eram tantas coisas sumidas que certamente estavam nesse lugar, onde as coisas que todas as pessoas perdem moram. Por isso, melhor é não incomodar “São Longuinho” e nem achar que ele vai encontrar o que perdemos sempre.

Afinal, perder algo abre caminho para encontrar sentido no que fica. Algum sentido deve existir entre partir ou se deixar ficar de cada coisa.

 

 

 


Créditos na imagem: Andre Kertesz – The Fork (1928).

 

 

 

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