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O retrato fotográfico no filme: O Fabuloso destino de Amélie Poulain de Jean-Pierre Jeunet

 

Essa reflexão busca ponderar sobre o papel assumido pelos retratos fotográficos presentes no filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (França, 2001) de Jean-Pierre Jeunet. Explorando brevemente a relação das personagens com suas memórias e a construção da imagem fotográfica como fixação de uma realidade efêmera.

Como um mecanismo cultural, o cinema possui sua própria história que surge em um determinado contexto social. A indagação de como os indivíduos e grupos compreendem o seu tempo é que torna possível o estudo do cinema como um documento de história social (SORLIN, 1992, 164). Ao passo que, dotado de uma linguagem visual que lhe é própria, pode ser analisado também, por um viés sociológico a partir de sua estruturação interna.

A história relatada no filme francês, que remonta um olhar afável à Amélie, filha de um aposentado, ex-médico do exército, e de uma diretora de escola, apresenta sua infância um tanto incomum, isso porque frente ao pai, a quem amava, mas também temia, seu coração disparava de ansiedade. Por conta dessa aceleração, Amélie foi diagnosticada pelo próprio pai como portadora de problemas cardíacos. Por esse diagnóstico, a menina frequentou a escola e foi alfabetizada em casa por sua mãe.

Após um conflito envolvendo a morte de seu animal de estimação, para recompensá-la por sua perda, Amélie recebeu uma câmera fotográfica, passando então a tentar capturar o mundo ao seu redor com a sua nova companhia: a câmera, preservando seus momentos por meio da fotografia.

De fato, a técnica promete fixar imagens efêmeras por meio da película fotográfica. Mas nem sempre foi assim: as técnicas de reprodução da imagem evoluíram com o tempo. No passado, a produção de imagem se dava por meio das mãos humanas que pincelavam os quadros. Estas foram paulatinamente substituídas pelo olho em junção com a tecnologia. O olho apreende depressa aquilo que, vagarosamente a mão desenha. Na modernidade, o processo da reprodução de imagens passou a ter o mesmo nível de aceleração quanto os diálogos entre os indivíduos (BENJAMIN, 1996b, 107).

Já adulta, a garçonete Amélie (Audrey Tatou) vive agora cercada de pessoas que não conseguem se libertar do passado. Uma guarda fotografias e cartas do ex-marido que morreu em guerra; outro, grava com um gravador todas as falas ditas pela mulher por quem é obcecado. Tomada pelo ímpeto de ajudar essas pessoas a se reconciliar com as suas vidas e dramas pessoais, Amélie começa a ativamente interferir em suas vidas.

Por exemplo: em agosto de 1997 o noticiário anuncia a morte de Lady Di (princesa de Gales, vítima de um acidente de carro).  Amélie Poulain, ao escutar a notícia, deixa cair ao chão uma tampa de frasco de perfume. Ao cair de suas mãos, a tampa rola até se chocar com um falso revestimento na parede. Curiosa para saber o que o fundo falso escondia, a moça encontra um “tesouro escondido”. Trata-se de uma caixa que um menino teve o cuidado de esconder ali, 40 anos antes. Amélie decide, então, devolver o “tesouro” ao seu proprietário. À medida em que a garota faz essas incursões na vida de pessoas desconhecidas e de seus próprios amigos, ela se vê cada vez mais forçada a encarar questões relativas ao próprio passado – como a resistência que ela mesma desenvolveu, ainda criança, ao amor.

No desenrolar da história, Amélie conhece Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz), e o ajuda a recuperar um álbum de fotografias que ele havia perdido. A coleção de fotos tinha sido organizada por ele a partir de retratos encontrados largados embaixo de cabines fotográficas por toda Paris, descartados, rasgados e recompostos. Nino reconstruía os rostos dessas pessoas e as guardava para si, como quem impede que sua memória caísse no esquecimento.

O laço entre essas duas personagens se forma a partir do momento em que Amélie se propõe a ajudar Nino, não somente restituindo sua coleção perdida (e por ela encontrada), mas também, o auxiliando a conhecer um certo homem cujo rosto aparecia repetidamente no álbum de fotografias. Ambas as personagens se perguntam: quem é essa terceira personagem que tira fotos em cabines fotográficas, por toda Paris? Por que tirar autorretratos apenas para descartá-los? Por que alguém agiria assim?

Desse modo, os temas da memória e da tentativa de superar a morte atravessam o filme Amélie Poulin. É sabido que desde antiguidade o ser humano já se utilizava do embalsamento para fazer perdurar a vida dos mortos por meio do culto. A produção artística envolvida com o culto começa, assim, com imagens a serviço da magia. É nesse mesmo sentido que “o que importa, nessas imagens, é que elas existam, e não que sejam vistas.” (BENJAMIN, 1996a, 173).

Os antigos egípcios não só mumificavam os corpos, como também construíam pirâmides com seus diversos labirintos, sarcófagos e imagens de culto com a intenção de manter das aparências para o fortalecimento da memória.  (BAZIN, 1991, 19). Este parece ser, precisamente, o tema central do filme O fabuloso destino de Amélie Poulin.  A lembrança de nossa história pessoal é fruto de um acúmulo. Os gestos, atos e sentimentos, constroem redes de significados precisos que edificam a memória. A memória surge onde se acumula a experiência do indivíduo e se estabelecem conexões acerca dos acontecimentos vividos. Preservando o passado e mantendo esse arcabouço de imagens mnemônicas, pode-se acessá-lo a qualquer momento como recurso para viver a vida no presente. Além disso, essa superabundância de recordações pode diferenciar cada ser humano por meio de sua narrativa pessoal que lhe é única.

A memória permite buscar estabelecer uma conexão entre aquele que observa e aquele a quem, por exemplo, uma foto representa. A foto é uma ausência presente de um tempo e de um espaço que não mais existem e opera como um anteparo exterior que, pelo menos sob um ponto de vista específico, retém em si algo do que ficou no passado, e portanto, aparece como recipiente de memória fora do ser humano. Quando ela é informada pela fotografia, acaba indicando momentos insubstituíveis que constroem uma vida para si e para os outros. Uma ausência permanentemente prisioneira de um tempo que já aconteceu, como portadora no presente de um registro do que já foi. Assim a memória também é feita de fotografias (DUBOIS, 2013, 314-317).

Pode-se apontar que na antiguidade grega, as artes da memória foram concebidas como um procedimento artificial de mnemotecnia, baseado no jogo de duas noções: os loci (lugares) e as imagines (imagens). Se seguirmos esse pensamento, a fotografia moderna seria uma máquina da memória, pois é feita de loci (a câmera) e de imagines (as revelações). Esse jogo trabalha com a ideia da verdade dos fatos em constante tensão com a “ambiguidade” de sentidos que podem deles ser extraídos:

A significação das imagens da memória está acoplada a seu conteúdo de verdade. Na medida em que estão ligadas à incontrolável pulsão vital [Triebleblen], habita em seu interior uma ambiguidade demoníaca; imagens foscas como um copo de leite que mal permite passar o brilho da luz. Sua transparência aumenta na medida em que os conhecimentos lançam luz sobre a vegetação da alma e limitam a coação da natureza [Naturzwang]. (KRACAUER, 2009, 68)

A temporalidade ao ser capturada através deste sistema técnico, configura passados, apreende presentes, evoca e revela o “real”. Assim, ao revelar o “real”, a técnica se apossa do mesmo e se reafirma como verdade, exorcizando o tempo pela sua consolidação. Tudo o que foi selecionado e capturado pelas lentes do fotógrafo, a partir do instante em que foi registrado, permanecerá para sempre interrompido e isolado na forma bidimensional da superfície fotossensível, a cena fotografada, sem antes nem depois, tem o poder de “congelar” o acontecimento, sem poupar quem a vê, de um sentimento de ausência. O que a foto informa em sua fixidez é o passado para sempre presente, aprisionando os homens e o social nela expresso como um real que não é.

As relações imaginárias entre o “real” que a foto revela e a realidade vivida pelo indivíduo repleto de lembranças parecem indicar, suas relações consigo mesmo e com a sociedade na qual ele vive. As fotos dão credibilidade ao passado construído e as relações sociais estabelecidas pelo observador. O ato fotográfico, assim, ao corporificar através do autorretrato um indivíduo em um lugar e em um tempo imobilizado, parece agir no sentido da imortalidade. A possibilidade de um mundo imaginário a partir de um mundo real e a posse simbólica sobre o real através do imaginário fixado como prova de existência altera as concepções de tempo e espaço e de homem na sociabilidade. (BENJAMIN, 1996, 101)

A imagem fotográfica viabilizadora desse duplo ideal e perfeito da vida aparece em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, é possível analisá-lo a partir de seus retratos fotográficos (e das relações sociais entre os personagens em torno dessas fotografias) de que essas imagens seriam fragmentos da realidade congelada ou mumificada, tal qual a preservação de corpos mortos, retificando a memória dos vivos acerca daquilo que um dia existiu.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica. In __________. O Cinema. Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In __________.  Obras Escolhidas, Magia e Técnica. Arte e Política, São Paulo. Brasiliense, 1996a.

__________. A pequena história da fotografia. In. Obras Escolhidas, Magia e Técnica. Arte e Política, São Paulo. Brasiliense, 1996b.

DUBOIS, Philippe. Palimpsestos – a fotografia como arte da memória. In. O Ato Fotográfico. São Paulo. Papirus. 2013b Ed. XIV.

KRACAUER, Siegfried. A fotografia. In O Ornamento da Massa. São Paulo, Cosac Naify. 2009.

SORLIN, Pierre Sociología del Cine. Tradução esp. Juan Utrilla. Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1992.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/diretor-de-o-fabuloso-destino-de-amelie-poulain-anuncia-que-filme-ganhara-documentario-1.2096830

 

 

 

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