O riso do bufão

4

 

Tentei. Juro que tentei. Escrevi sobre a finitude da vida humana e a leveza das paixões. Quase como um exercício mental para manter um lugar livre da estupidez e da maldade generalizada e adotada como modelo efetivo de governança. É preciso estabelecer limites na realidade para que a loucura que acompanha cada ser humano seja a loucura de Ariano Suassuna. Uma loucura aos moldes de João Grilo e Chicó no Auto da Compadecida ou de Cancão e Gaspar no Casamento Suspeitoso. O louco criativo que por diversão cria mundos e belezas impossíveis de se levantar pela ordem, coerência e progresso de um cotidiano pouco afeito à comédia. O problema é que a loucura propagada e vivenciada pelos dirigentes de hoje tem a marca da perversidade. O riso e o cômico oficial são declaradamente àquele mais baixo, mais vil, mais precário, mais tosco, mais grosseiro, mais abjeto e fecal ou, numa expressão, o riso e o cômico oficial vinculam-se ao rebaixamento do já rebaixado. Diante da crise ambiental diluiu-se o cômico abjeto e o cerimonioso com a fala de “fazer cocô dia sim, dia não”. Diante da crise econômica falou-se “olha o pibinho, olha pibinho”. Ao se enfrentar o discurso latrinal de Jair Bolsonaro ouve-se sair de sua bocarra “[A imprensa] procura uma palavrinha esquisita. ‘Ó falou que o cara pesa 8 arrobas. Não pode, aquela polêmica toda. Criticou mulher, gay. Estamos perdendo o direito de fazer piada. Será que vamos ofender os gordinhos agora? Os carecas? Está chato de viver no Brasil dessa maneira”[1].

Ora, bastou que Renato Aroeira, um chargista, invertesse a hierarquia da zombaria ao desenhar Jair Bolsonaro transformando o símbolo do SUS em uma suástica, e pronto. O riso e o cômico oficial convocaram a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República para enquadrar o chargista na Lei de Segurança Nacional. Pois é. Um chargista se transformou em terrorista. Rebaixar o rebaixado, tudo certo. Rebaixar o sublime, rebaixar o poder institucional, rebaixar o sagrado, aí é demais. No Brasil de Bolsonaro o riso deve ser apenas escatológico e obsceno. Deve-se disciplinar o riso em torno da banalização e das tiradas baratas. Prefiro o Brasil dos Renato’s Aroeira, Laerte’s, Leandro’s Assis e Triscila’s Oliveira que fazem do riso e do cômico um convite à inteligência e a audácia sem acovardamento. Mesmo que isso seja menos sedutor ou simpático. E então, você conhece aquela do Jair na mesa e Jair na cama?[2]

 

 

 


NOTAS

[1] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/05/bolsonaro-elogia-economia-e-faz-piada-homofobica-hetero-virou-qualidade.htm [05/03/2020]

[2] Acessem: https://hhmagazine.com.br/jair-na-mesa-e-jair-na-cama/ [minha 5° crônica publicada em 28.03.2019]

 

 

 


Créditos na imagem: James Ensor.  Do riso às lágrimas. Óleo em canvas, 1908.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago David Stadler

Doutor em História. Professor Adjunto do Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná campus de União da Vitoria. Contato: thibastadler@gmail.com

4 comments

  1. Edelvino Razzolini Filho 1 julho, 2020 at 14:19 Responder

    Parabéns Thiago,
    Texto leve, porém denso de conteúdo.
    Precisamos lembrar de rir quando o “rei está nu”…
    Não podemos permitir que os profissionais competentes sejam “escrachados” pelos políticos (in)competentes.

  2. Simone Villanueva 2 julho, 2020 at 07:19 Responder

    Lamentavelmente nao e no Brasil de Bolsonaro que absurdo assim acontece, e no Brasil de um STF que manda prender e ainda vai julgar o próprio caso nascido do absurdo. De um STF que lava a lei pra dar um verniz legal nos absurdos que estão fazendo. Nesse caso o manicômio tem nome, endereco e sao6pagos pela populacao. Triste viver pra ver isso.

Deixe um comentário para Edelvino Razzolini Filho Cancelar resposta

Veja: