“Essa esquina se arrola entre as que mal foram tocadas pelas
mudanças dos últimos trinta anos. Só que naquele tempo caiu o
véu que a ocultava de mim,
criança que eu era.”
Walter Benjamim
Rua de mão única
Então, no exemplar de que disponho de Memorial de Aires, romance de Machado de Assis que releio, encontro um papelete com um nome próprio de um doutor, um número de telefone, um endereço e uma data de agendamento.
Antes que eu diga nome, data e local, digo que o exemplar que disponho de Memorial de Aires é da Série Bom Livro, da editora Ática e foi comprado num livreiro alfarrabista, num sebo.
O doutor tem o mesmo nome que o meu, Eduardo. O número de telefone é de uma linha fixa. À altura, não havia telefonia móvel. O horário marcado foi terça feira, 21, às 4:00 horas. Não traz o ano. O local, PUC/SP.
Confesso que ao ler o romance, composto como imitação de diário, que performatiza um diário, gênero, não-gênero, prática textual a mim muito cara, me senti, hoje, que encontrei o tal papelzinho de anotação, personagem de Machado de Assis. Não me senti leitor dele.
Relutei comigo mesmo voltando para casa hoje, vindo do sebo se deveria escrever ou não uma crônica. Não? Não escrevo? Se escrevo, sobre o quê?
Assunto não me faltava, como ainda não me falta. E parece que sou assim: quando pego na conversa demoro para acabar. Do mesmo modo ao escrever: quando começo não quero mais parar.
Não deveria estar fazendo isso que faço agora, mas tomo a escrita desta crônica como um descanso depois de ter ido ao sebo a pé e voltado para casa de lá também a pé.
Enquanto caminhava, olhando para ruas, casas particulares e comerciais, reconhecia algumas das mudanças do bairro. Aqui, ali, lá, acolá … tinha, não tinha, tem. O sebo esteve numa rua tal por anos. Eu era solteiro, moço, rapaz e comprava lá. O sebo mudou de lugar, eu era homem, casado comprava livros lá. O sebo está em outra rua. Na rua Salete . Eu um jovem senhor, ou um recém senhor, compro livros lá, como hoje comprei. Estou divorciado, mas isso é meu estado civil, não meu estado afetivo. Estou sem namorar, mas isso não vem ao caso. O sebo está lá, onde fui hoje, na rua Salete, onde antes havia um colégio homônimo à rua. Colégio tradicional no e do bairro. Hoje há um edifício de muitos andares, desses de gosto arquitetônico bastante duvidoso. A rua Salete é uma ruazinha sem saída que, embora sem o colégio de mesmo nome, um casarão construído em estilo eclético fim de século XIX, é ainda charmosa. Estreita a ruazinha, de trânsito complicado, mas com algumas casas comerciais que lhe conferem certa graça. Um armarinho, o sebo e uma casa libanesa, de comidas e produtos libaneses.
Depois da compra dos livros, fui comer um doce libanês e beber um chá. O doce era um folhado de nozes com pistaches e mel e o chá foi um mate gelado sem açúcar. Foi uma maneira de prolongar a tarde, de desacelerar o dia. E de saborear minhas escolhas no sebo. Feito isso, voltei para casa, sobretudo pensando que boa parte de minha biblioteca fora feita a partir das compras no sebo. Penso que por volta de uns oitenta por cento do que adquiri em livros comprei no Papel Velho, hoje chamado Sebo Santana . E fui me lembrando de autores e títulos, e fui me lembrando de mim no tempo.
Fiquei muitos anos sem comprar livros no Papel Velho, até que mudou de nome para Sebo Santana e mudou de lugar. Até que, recentemente passei a ir à rua Salete para ir à minha homeopata e à casa libanesa e voltei a comprar livros usados.
Era justamente sobre isso que relutava comigo mesmo no escrevo ou não? Que interesse há nisso? Haveria interesse nisso? O país com problemas tão sérios. O planeta com problemas tão sérios. Atualmente, quase não se lê, problema tão sério, pois quase não se interpreta nada. O objeto livro cada vez em maior desuso frente aos meios eletrônicos para ler. Os PDFs os e-books, tablets, notebooks, smartfones …
Parece que o livro em papel e tinta, o objeto físico, analógico, saído da gráfica, é uma espécie de PF, de prato feito. Assim como a rua Salete que guarda ainda certo charme, os livros em papel tem lá seu interesse, sua beleza e seu charme.
Penso que o mais interessante nas compras de hoje, foi voltar a um lugar, mesmo deslocado de lugar ou que mudou de lugar muitas vezes, não foi eu me rever. Foi pensar nos modos de leitura conviventes contemporaneamente. Não é a transformação do tempo, das ruas que interessa nesta crônica, em mim, ou no que me moveu a escrever. Penso que forte, afetivamente forte, não é a solidão disso tudo que narrei, mas o transitar. Hoje, depois de tudo, ir ao sebo e de lá voltar, o mais interessante foi o flanar. Em pleno século XXI, em Santana, o flaneur esteve vivo em mim, em exercício. Ele não era propriamente eu, que eu é apenas um lugar de pessoa. O flaneur esteve em alma pelas ruas em que andei. Ele esteve nas escolhas que fiz de livros no alfarrabista. Eu o exerci.
Quem venceu a relutância do escrevo ou não, hoje, foram os livros e os flanadores, não eu. A rua Salete, com seus pequenos encantos e seu charme resistente, é que venceu. Ela me venceu, por isso escrevi.
[Assim como os edifícios residenciais usam água de reuso para lavar suas dependências em tempos de economia de água, este texto foi escrito antes da pandemia da COVID-19. Tempo em que se podia flanar.]
Créditos na imagem: Livraria Shakespeare & Company, em Paris. Photo via flickr user Alexandre Duret-Lutz.
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Eduardo Sinkevisque
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Journal of Theory and History of Historiography
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Muito linda a sua água de reúso!
Eu me revi, saboreando as escolhas que costumava fazer nos sebos do Rio de Janeiro.. Espero que a pandemia passe para que eu possa repetir essas sensações…
Olá! Nós do Sant’Ana Sebo adoramos a sua crônica. Mas gostaríamos de esclarecer que o Sebo Papel Velho encerrou suas atividades à muito tempo. Hoje com 24 anos de existência, o Sebo Sant’Ana é tradicional e uma pequena parte da história do bairro de Santana. Saudamos o Sebo Papel Velho com muito carinho, mas seguimos nosso caminho independente e escrevendo a nossa própria história. Agradecemos a citação e atenção.