Porque eu descobri o segredo que me faz humano 

Já não está mais perdido o elo 

O amor é o segredo de tudo 

E eu pinto tudo em amarelo 1

Desde o ensino básico nunca me dei bem com a forma pela qual escrevo. Mesmo utilizando as conjunções de maneira a contribuir para a coesão e coerência do texto, mesmo estudando durante todo o meu ensino médio quais os lugares corretos para se colocar as vírgulas e como tirar a nota máxima na redação do ENEM, e mesmo quando elogiavam a minha escrita, algo sempre me incomodou. Tal incômodo se intensificou com a minha entrada na universidade e o contato com a escrita acadêmica. Nunca entendi o porquê, mas a cada texto que escrevo, sinto como se faltasse algo, como se eu não me identificasse com o meu próprio texto. Após uma aula-palestra de Rafael Haddock-Lobo, convidado para a disciplina de Teoria da História na instituição onde estudo, em que ele discutiu, entre outros assuntos, a importância da pesquisa de outras epstemologias para além da ocidental e o não tratamento desses saberes unicamente como fontes históricas ou objetos de pesquisa/análise – entrei em uma profunda crise existencial acerca da minha pesquisa e acabei desabafando na aula de Teoria sobre como eu odiava a mecanicidade da escrita acadêmica e de quão impessoal ela é. Também esbravejei sobre como ela é uma das causas do afastamento da comunidade externa com pesquisas feitas na universidade e de como não estamos exercendo o nosso papel de diálogo com a sociedade. A resposta da Thamara, minha professora, foi certeira. Esse incômodo era compartilhado por vários pesquisadores oriundos das camadas populares que adentraram o ensino superior nas últimas décadas, sendo a raiz eurocêntrica desse tipo de espaço e de escrita a causa do estranhamento. Foi aí que me dei conta: essa escrita não nos representa justamente porque não foi feita para nós, não alcança nossas demandas. Na verdade, a própria universidade não foi feita para que eu participasse dela, afinal, durante grande parte da nossa história, ela foi um espaço destinado à formação intelectual da elite brasileira ao passo que impedia o acesso dos setores mais pobres da sociedade aos estudos. Mas, isso me fez pensar: se a universidade não é tradicionalmente um espaço onde eu deveria estar, então por qual motivo estou e quero estar nela hoje? 

Toda essa reflexão pode parecer sem sentido, – assim como o texto a partir de agora – mas ela serve como justificativa para, além do emprego da primeira pessoa no texto, a escolha da música a ser discutida: “AmarElo”, uma canção produzida por Emicida, lançada em 2019 em uma campanha de prevenção ao suicídio e que utiliza do sample da música “Sujeito de Sorte” de Belchior. Uma das mensagens principais da obra – já confirmada pelo próprio Emicida – é a importância de sujeitos históricos marginalizados e oprimidos ocuparem lugares que lhes foram e estão sendo negados há séculos. Essa canção responde um pouco das minhas aflições e vem ecoando cada vez mais forte em meu corpo. No entanto, o que quero nesse texto não é olhar essa música como potencial fonte histórica ou pensar em como tratá-la no ensino de história. Simplesmente proponho uma tentativa de organização das ideias e emoções que essa canção me proporciona, ao mesmo tempo em que a relaciono com algumas discussões realizadas ao longo da minha formação. De maneira mais direta, não passa de uma louca encadeação de loucas ideias, de um louco estudante e, não menos importante, de uma tentativa de se pensar outras possibilidades de escrita que, por mais que possam conter a dinâmica da escrita acadêmica, não apague e relegue ao esquecimento a nossa dimensão emocional e afetiva. Nesse sentido, acho que me aproximo das constatações de Humberto Maturana sobre razão e emoção:  

[…] ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional (MATURANA. 20002, p. 12). 

 

É impossível desvencilhar a razão da emoção, mesmo em uma pesquisa, ainda mais quando a proposta é analisar uma obra de arte como AmarElo, em que, logo nos primeiros minutos do clipe, Emicida narra um relato de pensamentos suicidas de uma pessoa com depressão que a todo momento é cobrado para estar bem e que não gosta de expor sua fragilidade para os outros. Toda vez que escuto essa narração, não há como segurar as lágrimas – como agora – e ela me faz refletir sobre como a sociedade enxerga tal doença e como ela afeta um contingente cada vez maior de indivíduos que se sentem solitários mesmo em um mundo altamente globalizado. Entretanto, esse não é o clima que se dá ao longo da música, o que pode ser facilmente percebido nos seus primeiros versos: 

[…] Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro […] 

 

O tom de toda a canção segue as palavras de Belchior. AmarElo não é um som que se propõem a falar sobre as mazelas e infortúnios que a depressão causa ou sobre como o Brasil lida com ela. E muito se engana quem pensa que é somente uma música sobre superação ou que reproduz um discurso meritocrático proferido pelas classes dominantes – o famoso “não importa de onde você é!”, “com muita dedicação e suor é possível transcender barreiras sociais e econômicas a partir do seu mérito”. Não preciso dizer o quão raso esse discurso é por não levar em consideração uma série de fatores – cor, credo, gênero, sexualidade. Aliás, não levar em consideração é eufemismo. O que esse discurso faz é ignorar deliberadamente esses fatores e as desigualdades e preconceitos estruturais presentes na sociedade brasileira, o que torna a argumentação da meritocracia ainda mais cruel. A mensagem de AmarElo é muito mais profunda, sensível e contrária ao discurso dominante. É uma mensagem de resistência. Aí está a mágica da canção e o que mais me emociona na música: por mais que não fale explicitamente sobre os problemas que citei anteriormente, AmarElo não os desconsidera, muito pelo ao contrário. Emicida quer nos dizer que precisamos sim considerar tais problemas relativos à depressão e que devemos buscar tratamento adequado para tal doença, mas que não podemos deixar que isso nos imobilize e que nos impeça de resistir.  

Essa é a palavra de ordem do clipe: resistência. Uma palavra muito cara para nós afrodescendentes que sofremos diariamente pelo racismo estrutural presente no Brasil. Somos violentados de diversas maneiras desde a nossa infância. Quantas vezes não escutei – e ainda ouço – que “meu cabelo é feio, por isso tem que cortar”; que meu nariz é de “chapoca”; que meus lábios são excessivamente grandes. O mais triste é que essas experiências são compartilhadas. Quantos irmãos, diariamente, não são confundidos com ladrões e bandidos por usarem determinadas roupas, ouvirem certas músicas, andarem de determinada forma? Quantos outros não conseguem empregos ou não ascendem a cargos de chefia simplesmente pela sua cor? Quantas Marias, Mahins, Marielles e malês morrem diariamente simplesmente por existirem? É impossível não ter pensamentos suicidas e discursos motivados pelo ódio quando sentimos o peso da nossa pele.  

Todavia, AmarElo é um respiro a tudo isso. O racismo existe e as mazelas que ele provoca são muito profundas, mas essa dura realidade irá nos imobilizar ou se converterá em combustível para a nossa luta por mais igualdade? Deixaremos “[…] que o mesmo império canalha que não te leva a sério” e “[…] que interfere pra te levar à lona” nos impeça de existir ou “revidaremos”? Impossível não se arrepiar com tamanha provocação de Emicida. Isso me faz lembrar do texto do Abdias do Nascimento que também possui uma bela provocação logo no seu título: “A Perseguida Persistência da Cultura Africana no Brasil”. Abdias (2020) fala sobre a perseguição que a cultura africana sofreu – e ainda sofre – no Brasil, em especial no âmbito religioso. Desde o período colonial, as diferentes culturas trazidas pelos povos africanos escravizados são perseguidas duramente pelo Estado, pelas instituições religiosas – sobretudo de matriz cristã – e pela própria sociedade civil. A polícia também exerce um papel fundamental na coerção da expressão dessas culturas, seja invadindo terreiros em prol da “harmonia social” ou conduzindo verdadeiros morticínios em favelas a procura de possíveis criminosos. Contudo, como Abdias destaca (2020), apesar de toda perseguição, resistimos. Mesmo com toda a violência da colonização, os escravizados conseguiram manter vivos aspectos primordiais de suas culturas através do sincretismo religioso; da incorporação de suas línguas à língua oficial; da popularização de suas culinárias e músicas, além da criação da capoeira, por exemplo.  

Demais, Emília Viotti também traz algumas considerações interessantes sobre essa questão. Segundo a autora (2013), os escravizados africanos resistiram de diversas maneiras, optando, nas maiorias das vezes, a formas de protestos individuais e a uma resistência cultural, fato esse ligado à diversidade dos povos africanos. Mesmo assim, essa abordagem mais cultural não deixa de ser uma forma de resistir e foi tão importante quanto às fugas em massa, as revoltas e a criação de quilombos. Pode parecer trivial, mas, assim como Emília sugere (2013), as desobediências, as mentiras e a própria “preguiça” dos escravizados também eram formas de resistência.  

AmarElo é resistência. Ao meu ver, essa ideia fica mais do que óbvia quando analisamos as pessoas que cantam esse hino. Emicida: um homem negro, cria da favela e que possui um eterno compromisso político com as suas músicas. Majur: uma mulher trans, negra e cantora que representa uma parcela da população que não possui o direito de chegar à terceira idade; e Pabllo: um menino nordestino e gay que através da arte Drag mostra para o mundo outras possibilidades de futuros pautadas no respeito e no amor. Vozes antes silenciadas que agora ecoam e se fazem ecoar profundamente na sociedade. 

No entanto, não podemos ser resumidos somente à resistência. Antes de mais nada, somos pessoas que possuem desejos, metas; que buscam por uma felicidade e, portanto, possuímos historicidade. Claro, a nossa existência por si só já é uma resistência, mas não podemos nos resumir a ela: 

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir 

 

Permita que eu fale, não que esse passado colonial e escravista fale por mim. Não nos considerem meros “sobreviventes”, não roubem nossa voz. Não atribua a nós uma passividade em relação àquele passado, afinal somos agentes históricos. Não nos imobilizem, no presente, ao nos verem somente como vítimas! A História não é linear e nem nos leva a um destino pré estabelecido. Somos compostos pelas tensões entre os nossos “espaços de experiências” – aqueles que foram antes de nós – e dos nossos “horizontes de expectativas” – aqueles futuros possíveis que irão e não irão se concretizar  (Koselleck, 2006). Apesar das nossas cicatrizes, há possibilidades de mudanças. Entretanto, não podemos esquecer de nossa humanidade e da nossa felicidade pessoal para que a nossa existência não seja somente resistência. É assim que sinto essa música, embora este texto por si mesmo não dê conta dessa experiência. A arte carrega consigo uma dimensão estética que foge à captura da linguagem e da razão e que a escrita acadêmica, sobretudo, não consegue repercutir. Por enquanto, ao menos.  

 

 


REFÊRENCIAS

COSTA, Emília Viotti da. Escravos: imagens e realidade. In: COSTA, Emília Viotti da. A dialética invertida e outros ensaios. São Paulo: UNESP, 2014, p. 81-112. 

KOSELLCK, Reinhart. Futuro PassadoContribuição à semântica dos tempos históricosRio de Janeiro: ContrapontoPUC-Rio, 2006.  

MATURANA R., Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p.11-79. 

NASCIMENTO, Abdias do. A perseguida persistência da cultura africana no Brasil. In: NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Perspectivas, 2016, p. 123-131. 

 

 

 


NOTAS

1 Trecho da canção “Princípia”, de Emicida com participação de Fabiana Cozza, Pastoras do Rosário e Pastor Henrique Vieira.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. https://outraspalavras.net/poeticas/amarelo-a-instigante-antropofagia-das-quebradas/

 

 

 

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