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Por que revisitamos os Diários de Andy Warhol, hoje?

Recentemente lançado pela Netflix, o documentário The Andy Warhol Diaries (2022) consiste em seis episódios que recontam a vida de Warhol a partir de 1976, quando ele começou a narrar seu cotidiano à editora Pat Hackett. A tese defendida pela série é simples: a sexualidade é o terreno sobre o qual floresceu não apenas o comportamento de Warhol, mas toda sua obra. O fato de ter crescido num meio homofóbico e de, quando adulto, ter sido considerado efeminado por outros artistas, é, para a série, a verdade por trás das realizações dele. Dito de outro modo, o trabalho de Warhol teria sido um meio pelo qual ele afirmou sua homossexualidade em uma época em que não se falava abertamente disso.

Entretanto, chama atenção que a própria Hackett não corrobore a tese dos cineastas. Ela concorda que Warhol não era “heterossexual” (ele se identificava, por vezes, como “assexual”), mas observa que ele nunca demonstrou querer ser conhecido como um “artista gay”. Percebe-se logo como o caráter inconveniente do comentário da editora dos Diaries (publicados em 1989) ameaça o argumento central da série. Então, o que fazem os cineastas? Eles adotam um procedimento particular. Durante todos os episódios, fotos, vídeos e cartas aparecem para reiterar o que a série conta por meio do narrador. Neste momento, porém, o material de arquivo é mobilizado para contradizer Hackett: enquanto a ouvimos dizer que Warhol não queria ser conhecido como um “artista gay”, a imagem o mostra, posando diante de uma câmera, travestido de mulher.

A série também lança mão de outros procedimentos para persuadir o público de que o prisma da sexualidade é aquele pelo qual deveríamos interpretar Warhol. Por exemplo, pelo tempo que dedica a discutir as obras dele que são mais facilmente associadas a uma “temática gay”: Ladies & Gentlemen (1975), Torsos (1977), Sex Parts (1978) e Self-Portrait in Drag (1981) etc. Outras (pinturas de mercadorias, retratos de celebridades etc.), recebem menos atenção – a não ser quando aparecem como o pretexto para tratar das relações pessoais de Warhol com homens (esse é o caso do longo segmento dedicado à parceria com Jean-Michel Basquiat). Já as peças que apresentam elementos “espirituais” (imagens de Jesus incorporadas ao trabalho nos anos 1980, réplicas customizadas de Il Cenacolo de Leonardo da Vinci etc.) são posicionadas a partir de uma perspectiva segundo a qual a religião supostamente teria reprimido as tendências homossexuais de Warhol na infância. Outras, como Suicide (1963) e Electric Chair (1964), são recuperadas apenas na medida em que permitem pontuar, contra os críticos que acusavam Warhol de realizar uma arte “vazia”, deveras “superficial”, que ele era, na realidade, um artista “profundo” que realizou um comentário sobre a “banalidade” da vida contemporânea no Ocidente.

Mas é ao tentar explorar aspectos figurativos das obras pelo ângulo da sexualidade que a série não consegue responder a uma pergunta decisiva – especialmente do ponto de vista de um espectador que não tenha tido contato prévio com Warhol. A pergunta é: por que suas obras despertaram tanto interesse? Corpos nus, sexo (ou alusão ao sexo), não são exatamente uma inovação de Warhol. Ao tentar explicar a fama do artista a partir do conteúdo sexual de algumas de suas obras, ou recorrendo a suas histórias privadas quando não há nada de explícito em que se apoiar – como é o caso de The Last Supper (1986) em que uma grande letra C é interpretada como sendo uma referência ao “Câncer Gay” (AIDS) –, os cineastas tornam nebulosa a questão. Afinal, quem pagaria milhões por um quadro apenas pelo fato do artista ser gay? Mais ainda: quem realmente se importa em saber com quem Warhol fazia sexo escondido? Com efeito, o interesse do público pelas obras de Warhol parece residir em outra parte. Para compreendê-lo seria preciso adotar outra abordagem, uma que permitisse olhar, de modo detido, pinturas, fotos e filmes e iluminar, a partir do que está efetivamente presente nessas obras, o contexto de sua aparição – e não o contrário.

A primeira coisa que impressiona quando nos aproximamos da obra de Warhol é o seu aspecto formal, sua qualidade mecânica. Isso não é evidente apenas nas fotografias e no cinema (artes onde a dependência do aparelho técnico é mais explícita), mas também nos procedimentos que emprega na pintura. Cada variação de seus quadros se encontra encerrada no aspecto repetitivo de séries que remetem, entre outras coisas, à produção fabril. Não é errado, portanto, dizer que a obra de Warhol se posiciona no registro da reprodução, muito mais do que no da representação. Nesse último, perguntas como aquela do “sentido” da obra são inescapáveis. Isso porque todas as representações (significantes), para alcançar aquele objeto que se quer representar (significado), dependem da imaginação do homem para se concretizar. A mediação mental torna-se incontornável na representação e é sempre essa a razão de seu questionamento. Em que medida a imaginação nos aproxima da “coisa” representada? E em que medida ela nos afasta? Perguntar pelo sentido, mais do que perguntar pelo “propósito”, é, aqui, perguntar pela “coisa” representada, pela instância do “real” à qual se refere. Na reprodução mecânica, entretanto, o elemento humano é, à primeira vista, dispensado pela técnica. Desse modo, a invenção da fotografia no século XIX foi um ponto de virada na história da arte. A ilusão da objetiva fotográfica era mais forte do que a da pintura. A assim chamada arte reprodutiva tornava fútil qualquer tentativa de interpretação, uma vez que, supunha-se, anulava a interferência da imaginação.

A pergunta pelo “sentido” da obra se descobriu, de repente, esvaziada de propósito. Na arte reprodutiva, para todos os efeitos, as coisas apareciam como simplesmente eram. Mas, ao mesmo tempo, insinuava-se uma confusão entre o significante e o significado, o representante e o representado, na medida em que, na fotografia, abolia-se a distância que antes separava artifício e natureza, arte e realidade. É nessa seara que encontramos Warhol. Ele traz para o interior da pintura a qualidade da técnica que, um dia, sobre ela triunfou. Como escreveu Jean Baudrillard: “As imagens de Warhol não são banais por serem o reflexo de um mundo banal, mas por resultarem da ausência de toda a pretensão do sujeito a interpretar” (BAUDRILLARD, 1995, p. 112; tradução nossa); “Já não há transcendência, mas uma escalada potencial do signo, que, perdendo toda a significação natural, resplandece no vazio” (BAUDRILLARD, 1995, p. 112; tradução nossa). Assim, mais do que um comentário moralista sobre a “banalidade” da nossa vida contemporânea, as obras de Warhol apontam na direção da futilidade da interpretação, da busca de “sentido” num universo dominado pela técnica, num universo em que as máquinas parecem superar a capacidade humana de apreender o “real” por meio da imaginação.  Não se trata, assim, de um exercício de “profundidade”, de um interesse judicioso em denunciar as “coisas sérias” da vida (os dramas e a miséria comuns etc.), mas a recolocação dessas mesmas questões, tão caras à humanidade, em um universo técnico que estaria, desde o início, além do bem e do mal. O que Warhol nos dá é, portanto, a ilusão da pura “objetividade” que caracteriza nossa época. A cadeira elétrica, o sexo, a Santa Ceia etc. – são todos temas que, em Warhol, um dia tiveram “sentido”, mas que, na era do triunfo técnico, ao serem captados pela “objetiva”, teriam passado a refratar qualquer tentativa de interpretação.

Por sua vez, a ideia de que os temas reproduzidos apareceriam despidos de qualquer referência natural e passariam a integrar o universo dos signos que “resplandecem no vazio”, nas palavras de Baudrillard, não é estranha àquilo que o próprio Warhol dizia – inclusive acerca de si mesmo. “Algum crítico me chamou de O Nada Em Pessoa e isso não ajudou em absoluto meu senso de existência. Então, percebi que a própria existência não é nada, e eu me senti melhor” (WARHOL, 2007 [1975], p. 7; tradução nossa). Esta posição parece o centro daquilo que os cineastas escolheram combater recorrendo à vida sexual do artista.

No quinto episódio, o ator que interpreta Warhol é filmado sozinho em casa. Segundo a série nos conta, Warhol havia acabado de perder seu namorado Jon Gould para as consequências da AIDS. A música melancólica ao fundo sugere a dor emocional da perda e o luto. Ele, então, é exibido ligando a televisão enquanto diz que assistiu a The NeverEnding Story (1984): “Este filme… Meu Deus. Me afetou tanto!” As imagens do docudrama passam a se intercalar com as do filme na tevê. Uma personagem pergunta: “O que é o Nada?”, e a outra responde: “É o Vazio que fica. É como um desespero, destruindo este mundo!” A voz de Warhol é inserida nesse momento, dizendo: “O Nada está tomando conta do planeta. É como minha filosofia… Procurando pelo Nada.” Depois, ele é exibido visitando um terapeuta para livrá-lo da “energia negativa”, e, em seguida, dentro de uma igreja, rezando. “Eu tenho que acreditar em alguma coisa”, diz. Por fim, a montagem mostra um plano com uma das versões que ele pintou da Last Supper.

A sequência descrita acima não poderia estar mais distante do que encontramos nos Diários. No dia 9 de Agosto de 1984, Warhol teria narrado a Hackett:

Cornelia ligou enquanto o leilão do livro de estreia que ela está fazendo com o Jon e outra pessoa ocorria, e primeiro foi vinte e oito, e depois foi trinta e sete com uma pequena comissão e, depois, foi trinta e cinco, mas com uma percentagem maior.

Fui ao cinema com Keith e Bobby, o ex-namorado da Madonna que é como que o novo amigo de Keith. Eu tive que assinar autógrafos e eles ficaram espantados que tanta gente gritasse o meu nome e conhecesse um artista. Eu devia ter perguntado às pessoas que gritavam se elas sabiam o que eu fazia da vida. Todos os negros me conhecem, devo estar na memória deles. É o cabelo branco.

O cinema estava quase vazio, mas deveria ter estado completamente vazio. Este filme, NeverEnding Story, meu Deus… E é um grande sucesso na Alemanha. É tipo minha filosofia – olhar para o nada. O nada está tomando conta do planeta. Era como Alice in Wonderland e E.T. e “Rumpelstiltskin.”

Depois, Bobby conhecia todos os lugares da região e nós fomos ao [restaurante] Jezebel e a própria veio nos ver. Ela era uma extravagante senhora negra. Então, quem entra? Mickey Rourke. A quem PH entrevistou para a capa de Interview. Mas ele não me viu e eu não disse olá. (WARHOL, 2009 [1989], p. 829)

O ponto aqui não é eleger os Diários como a instância do real que deveria ter sido observada. Entretanto, o trecho citado permite colocar em relevo o procedimento persuasivo que os cineastas promoveram na série. Nela, eles se esforçaram em negar o vazio no coração da obra de Warhol e mobilizaram, para isso, a noção de “sexualidade” e os dramas (supostamente) engendrados por ela na vida do artista. É compreensível. Por um lado, o reconhecimento legal dos direitos dos grupos LGBTQIA+ (na época de Warhol o termo não existia) ainda são foco de intenso debate político e controvérsia na imprensa. Realizar um documentário sob esse enfoque parece ser um meio de tanto assegurar audiência e retorno econômico à plataforma de streaming, quanto de resguardar a iniciativa comercial como sendo moralmente justificada. Por outro, é inegável que há algo de inquietante na perspectiva de que nossa existência esteja hoje em dia despojada de um sentido último – se é que um dia teve. A racionalização operada pelos avanços científicos e técnicos no Ocidente nos últimos séculos, sobre os quais escreveu Max Weber, concedeu muitos benefícios (em termos de conforto material e bens de consumo), mas cobrou o preço de ter esvaziado sensivelmente nossa vida de qualquer transcendência.

Durante séculos, a humanidade se perguntou como era possível que existisse alguma coisa ao invés de Nada. Para nós, a questão mudou. Passamos a nos perguntar: “por que é que há nada em vez de alguma coisa?” (BAUDRILLARD, 1995, p. 14; tradução nossa); “Este continua a ser, no fundo, o grande enigma, aquele que nos mergulha no terror e de que nos protegemos pela ilusão formal da verdade” (BAUDRILLARD, 1995, p. 14-15; tradução nossa). Este mundo em que vivemos hoje é aquele que Warhol escolheu encarar em sua arte. Ele assim o fez não para reintroduzir nele o sentido perdido (tarefa impossível), mas por perceber que há algo de sedutor e enigmático nesse Nada, nesse Vazio escavado pela racionalização. Afinal, faz parte de todo enigma que não possamos nos evadir de seu caráter enigmático. É esse Vazio que as obras de Warhol sublinham por meio de sua qualidade formal mais evidente: a repetição maquinal desprovida de sentido. E é isso que a série parece querer contestar – a pretexto de lhe render homenagem. A série diz: Warhol mentiu quando dizia que a  sexualidade não importava, que ela era um assunto como como outro qualquer. Pior ainda: Warhol fracassou em querer nos enganar. Ela diz: felizmente hoje nós sabemos qual é a verdade. A sexualidade é o chão que apara a vertigem, é o princípio de realidade que explica suas obras e exorciza o niilismo do mundo. É isso, enfim, que a série nos oferece ao revisitar os Diários. A ideia de que não perdemos o solo, de que ele ainda está sob nossos pés.

Todavia, a inteligência é o pressentimento da ilusão.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. Le crime parfait. Paris: Éditions Galilée, 1995.

WARHOL, Andy. The philosophy of Andy Warhol. London: Penguin Books, 2007 [1975].

WARHOL, Andy. Thursday, August 9, 1984. In: Pat Hackett (Ed.). The Andy Warhol Diaries. New York: Hachette Book Group, 2009 [1989]. Ebook Edition.

 

 

 


Créditos na imagem: Self-Portraits (1986). The Andy Warhol Foundation/Netflix.

 

 

 

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