Era o ano de 1888, na região dos Campos Gerais, próximo à vila de Santo Antônio de Imbituva. Era uma noite de luar, começo do inverno e o vento cortante atravessava a floresta, ora assobiando sombriamente ora derrubando galhos secos, que ao caírem, imprimiam, no coração dos mais pávidos, a sensação de estar sendo vigiado: quem sabe uma onça, querendo saciar a fome; talvez um caingangue, defendo sua terra; ou, uma assombração, querendo levar alguma alma.
Como estava bastante frio e já era noite ‒ aqueles tropeiros, que não estavam em grande número, fizeram “encosto” ‒, botaram-se a juntar lenha e armaram uma fogueira. Compreensivelmente, a fogueira não era restrito ao inverno, pois o fogo servia, para além de aquecer os corpos, também para cozinhar o feijão, o arroz, o charque etc.
E quando o clima do frio os encontrava pela região do Paraná, o fogo também servia para assar o pião. Fruto esse, disputado pelas gralhas, bugio e humanos. Na verdade, os tropeiros, que diferente dos indígenas, faltava-lhes alguma coragem de subir aos pinheiros, contentavam-se na coleta do fruto caído, derrubados pelas gralhas e bugios.
Afora essa natureza orgânica do fogo, de suprir necessidades elementares do corpo humano, também devemos acrescentar que ele tinha uma função social. O aspecto social da fogueira envolvia, de modo especial, o “causo”, que eram as histórias narradas à volta do fogo enquanto partilhavam o chimarrão, bebida constituinte dessas rodas de conversas. Os causos envolviam memórias pessoais, lembranças portanto, histórias aprendidas e recontadas, além das histórias de mistérios e de humor.
Em toda tropa, sempre havia um grande contador de “causos”, que animava as noites trazendo para os tropeiros sempre uma nova história, que entretia e ensinava. Desta tropa, em especial, era Andivo o contador de “causos”.
A longa barba branca de Andivo, bem como os sulcos em sua pele, denunciava a sua idade. Ele começou as tropeadas com o pai, quando tinha seus dez anos, e agora na casa dos sessenta, ainda continuava.
‒ “É o meu destino de ser tropeiro” ‒ pensava ele.
Andivo já tinha visto muitas coisas, por isso, ele costumava dizer que os “causos” que contava não exigiam muito, pois bastava lembrar, já que eram coisas que havia vivido, ou visto. Entretanto, ele sabia que cada vez que compartilhava as suas memórias, não as reproduziam tão somente, mas as recriava, encenando-as como um ator de teatro, escrevendo oralmente uma obra poética, que poderia, talvez, um dia ser escrito no papel, em verso ou em prosa.
‒ “Talvez o meu destino seja conta história” ‒ pensava outras vezes….
Agora, aqueles homens encontravam-se em torno da fogueira, aquecendo-se, na espera do mate e de Andivo, que terminava de arrumar a tenda de couros.
Terminado a tenda, o velho Andivo se dirigiu a fogueira e se sentou, juntando-se aos outros. Com um pequeno graveto, começou a mexer os pinhões que havia deixado assando junto às brasas.
Federino, o mais novo da tropa, como era de costume, arrumava o chimarrão. Como fosse ritual religioso, ele seguia os cânones da roda de mate: primeiro, acertou o mate, depois esticou o braço rumo ao fogo, pegando a chaleira, que já estava a assobiar, derramando a água sobre a erva. Em seguida, tomou a primeira cunha, fazendo uma disfarçada careta… a bomba roncou, sinalizando o final do mate… posteriormente, lançou a mão sobre a chaleira, abastecendo a cuia. Em seguida, segurando a cuia com a sua mão direita, passou-a para Andivo, que sentava ao lado esquerdo.
Depois de alguns tempos de silêncio, Andivo, quebrou-o, perguntando:
‒ Eu já contei sobre o dia que conheci o Preto Desidério, tão afamado e temido por muitos aqui do sul?
‒ Não me a lembro… esse tal Desidério não fora capoeira? escutei fala de um tal Desidério que derrubo três soldado, usando somente das perna, cabeçada e uma navalha…‒ disse Federino.
‒ Este mesmo… capoeira, e dos bão!… rápido e feroz… como onça; temido e respeitado, tanto pelas cabeçada quanto pelas rasteira.
‒ Pois eu conheci ele numa tarde, de setembro ou outubro. Vi com esses meus olhos… home valente, não cruzava os braços frente a coisa errada e nem levava desaforo pra casa ‒ afirmou Andivo, dando início a sua história:
‒ Tava a minha tropa e eu, a trotear pelas bandas de Santa Catarina e já cansados da andança, resolvemos nos “encostar” mais cedo, próximo a um vilarejo, que agora não consigo me a lembra do nome. O que me a lembro é que assentamos acampamento num lugar alto. Lá de cima, com meus olhos jovem, melhor que os que possuo hoje, era possível enxergar aquela bonita vila, de estrada única.
A rua era formada por muitas casa, de madeira e alvenaria; as casas, cada qual tinha uma cor: brancas, vermelhas, amarelas, azul. Parecia um arco-íris. Aquilo era mesmo bonito de se vê. Além de tudo, aquelas casa ficavam entre bonitas árvores de ipê, que estavam soltando flores, tão coloridas quanto as casas.
No final da rua, ainda dava pra vê uma igreja, toda amarela. Sobre sua única torre, tava uma cruz de ferro, logo acima do sino brilhante.
Poderia dizer que foi a beleza da vila e o cantil vazio, as coisa que me puxaram pro interior daquele lugar. De tal jeito, que convidei a tropa pra descermos até a vila, pra conhece e enche o cantil. Mas, os outros tavam indisposto ao passeio, queriam só descansar.
Bem, eu desviei da tropa, e segui na procura duma taverna e no desejo de olhar a vila de perto, no interesse de confirma a beleza que vi de longe.
Acerca do cantil, devo dize que nesse tempo, ainda jovem, eu costumava tomar uns trago. Mais, de jeito nenhum, eu era um beberrão. O que fazia era toma uns trago, quase sempre de cachaça, toda vez que o sol se retirava. Claro, que vez ou outra, eu exagerei na dose, mais quase sempre fiz longe do povo. Assim, devo fala que nunca gostei de bebe nesses lugar como as tavernas. Mas, a sede da cachaça e a sede da beleza, me levo pro interior da vila e desta pra dentro duma taverna.
A vila era próxima, mas como já havia perdido o hábito de andar a pé, já que quase nunca descia do cavalo, me joguei sobre o animal e desci para o vilarejo… o cavalo já estava cansado daquela viagem, mas eu achava que era da natureza do cavalo servir ao homem e então só estava fazendo cumprir as leis da natureza, as leis de Deus.
Assim, desci…
…quando o cavalo colocou seu casco sobre aquela rua de pedra, ele parou… olhei para as casas, fui confirmando a beleza que tinha visto do alto. O cavalo, que continuava parado, também parecia fazer o mesmo… olhou de um lado e do outro, depois seguiu…
Fui chegando… passando, casa por casa, conferindo…
A cidade tava quieta, afora alguns latido de cachorro que vinha do final da rua, o cantar dos passarinho e barulho do casco do meu cavalo… Da entrada da vila até à taverna, não avistei ninguém.
Quando encontrei uma taverna, quase no final da rua, próximo à igreja amarela, notei que sua porta tava entreaberta. Assim, desci do cavalo, amarrei e fui chegando, e lentamente fui abrindo:
‒ Ô de casa! Tem gente!
Abrindo a porta, fiquei diante do taverneiro que tava atrás dum enorme balcão, de chapéu e segurando uma cuia sobre uma das mãos. Assim que ele me ouviu, gritou, com um sorriso no rosto:
‒ Entre tropeiro, a porta fecho com o vento.
Então entrei, me dirigindo direto ao balcão.
‒ A tropa e eu “encostamos” no morro, onde ficaremos até amanhã cedo, e como acabo a cachaça, resolvi descer e abastecer o cantil. Claro, e também conhece a vila.
‒ Aqui é local bom para “encosta”, é sempre bem calmo, tranquilo ‒ falo o dono da taverna.
Eu peguei o cantil e estendi pra ele.
O dono deu duas chupada na bomba, até que ela fez aquele ronco… então ele se viro de costa e estico a mão sobre a prateleira de bebida e pego uma garrafa. Se Desviro no balcão e encheu o meu cantil e pergunto:
‒ Mais alguma coisa jovem?
‒ Ehhh… já que tô aqui, veja um copo dessa cachaça pra toma aqui… ah, e também um pedaço do melhor fumo de cachimbo.
Então o taverneiro encheu meu copo e trouxe o fumo que pedi. Assim, paguei a ele o valor pedido e me dirigi para uma mesa ao fundo.
Logo em seguida, antes que tomasse o primeiro gole, entraram pela porta dois homens.
Um deles, logo na entrada, falo:
‒ Uma cachaça!
Me mediram da cabeça aos pés…
‒ Boa tarde, tropeiro! E o resto da tropa?
‒ Boa tarde! Ficaram armando tenda no “encosto” aqui perto, no alto do morro. Eu vim pra cá para encher o cantil e conhece o vilarejo, que avistei de lá de cima ‒ falei, olhando pra eles.
O dono da taverna, repetindo a cena anterior, se virou pra prateleira e sacou outra garrafa e serviu aqueles dois.
De repente, ouvimos um barulho vindo da rua… deveria ser alguma carroça, ou sei lá… em seguida, o barulho sumiu.
Passou um minuto, mais ou menos, e a porta foi se abrindo… Era um negro, de olhos castanho, com um chicote na mão e… devo dizer, que tava muito bem vestido… bons sapatos, um bonito chapéu….
Só posteriormente, fui saber que se tratava do Preto Desidério.
O negro foi até o balcão e disse:
‒ Por favor, uma cachaça! Ele disse isso ao mesmo tempo que foi colocando algumas moedas no balcão.
O taverneiro conto as moedas e repetiu o movimento anterior, virando, pegando a garrafa e enchendo o copo.
Os dois homens, assim como fizeram comigo, também mediram o negro da cabeça aos pés… a diferença tava no olhar torto, de quem não tava gostando nada daquilo… não cumprimentaram o negro e continuaram a conversar…
Enquanto isso, eu saquei meu canivete e fiquei cortando o fumo para abastece meu cachimbo… mas naquele momento, os dois homens passaram a comenta sobre a escravidão, comparando o tempos antigos com os atuais…enquanto falavam, bebiam rapidamente… pedindo para o taverneiro encher o copo de minuto em minuto.
‒ Como os tempos estão mudados ‒ exclamo um dos homens.
‒ Realmente, compadre. Veja, antigamente os escravos respeitavam seus donos, trabalhavam mais e a ordem social reinava.
‒ Verdade, no tempo dos nossos avôs cada qual ocupava seu lugar: preto trabalhava e os brancos pensavam.
‒ Era a lei da natureza sendo respeitada, compadre.
‒ A lei de Deus! a lei de Deus… mas sim. E de tempos para cá, essas ideias modernas, alteraram essa lei, por isso o mundo tá como tá‒ disse o homem, com uma voz alterada, e olhando diretamente para Preto Desidério.
‒ Pois olha, compadre, tenho medo do mundo que tá nascendo, que nossos filho e neto terão de enfrenta. Deus nos livre de um mundo com pretos ocupando os lugar dos branco… ‒ falo o outro home, com certa cara fechada, com os olhos apontados para o negro…
Enquanto eles faziam aqueles comentário, Desidério continuo quieto… mas quieto sem susto nos olhos! quieto por não querer confusão…
… porém, vendo que o ar dali tava pesado, em um só golpe, finalizo o seu copo e foi se dirigindo a porta. Nisso, um dos home falo, já embriagado:
‒ Isso mesmooo… já tava na hora mesmooo! seu dono já deve tá te procurando… para te coloca na carroç… “tch-chlack!” “tch-chlack!”
Antes mesmo que o home terminasse a fala, Preto Desidério se virou, como a onça que era, interrompendo a fala daquele home com duas chicotada na boca. O sangue começo a escorre pela barba até pinga no chão….
‒ Preto filho da mãe! ‒ berro o outro home, pegando a sua cadeira e levantando contra o negro…
Mais antes que o home conseguisse acertar a cadeirada: “Flap, pou!”, o Preto Desidério deu um salto, girando todo corpo no ar e, com extrema agilidade, acerto a cadeira com o calcanhar, jogando ela direto pra parede.
Rapidamente Desidério foi do alto ao chão, passando uma rasteira nos dois home, que se esparramam para o piso…
Desidério, que parecia ainda não tá nada satisfeito, pegou os dois pelas pernas e arrasto pra fora da taverna.
O dono da taverna e eu, totalmente boquiabertos, saímos na porta e vimos que Desidério puxo eles até a carroça dele… em cima da carroça tinha um barril, com um rótulo grande escrito “Yerba Mate Supra”. Era um barril de erva de, mais ou menos, setenta quilo. Ao lado do barril dava pra ver um pedaço de pau, arcado como flecha, seguido de uma cabaça na ponta: era um berimbau. O taverneiro e eu nos olhamos, compreendendo o porquê da destreza daquele home… era um capoeira!
‒ É o Preto Desidério! ‒ Falo o taverneiro. Em seguida disse que ele era um temido capoeira da região… continuamos observando…
Desidério, quando chegou na carroça, foi retirando duas correntes que estava atrás do barril. E rapidamente, lanço aquela corrente sobre os dois home, amarrando na cintura deles. Ligeiramente, desengato os cavalos da carroça, acorrentando os dois beberrão no lugar deles. Em seguida, subiu na carroça e começo a dar chicoteadas:
‒ “Tch-chlack!”, “tch-chlack! ‒ arre! arre! gritava o negro…
No começo, os dois tentaram desvia das chicotada, mas logo viram que o chicote eram mais rápido…
então tentaram caminhar… mas faltava força…. então, mais chicote!!!
‒ “Tch-chlack!”, “tch-chlack!
As chicoteadas, como fosse alguma vitamina, foi trazendo energias aos dois…. e, como mágica, as correntes firmaram nas suas barriga e a carroça começou a anda.
‒ Arre! arre! vamos, puxem!
As rodas começaram a gira, a gira, a gira… cada vez mais rápido…
Os barulhos e gritos passaram a chama a atenção do pacato vilarejo, fazendo com que muitos dos moradores saíssem à rua… outros se colocassem sobre a janela e ficaram a assistir tudo aquilo…
O meu cavalo, que tava amarrado próximo, assustado com o barulho, escapou e saiu correndo. Em seguida, os próprios cavalos de Desidério também escaparam e saíram correndo pela rua… fiquei a pé!
Depois vieram os cachorros, que antes tinha escutado os latido… agora se apresentavam à rua e começavam a rodea aqueles dois home. Se não me falha a memória, eram mais ou menos sete cachorros… sendo que dois deles logo agarraram às calça daquelas dois e começaram a puxar de um lado ao outro… de um lado a outro…
Em seguida, surgiram um bando de pivetes, que achando aquilo muito divertido, correram ao lado da carroça, atiçando os cachorros e imitando o Preto Desidério:
‒ Arre! arre!
OBS: Este conto foi narrado por Marcelo Fávaro, do Canal Conto um Conto, e se encontra no presente link, em formato de áudio: https://www.youtube.com/watch?v=2eqKMWxKYWQ&t
Créditos na imagem: Reprodução: Monumento ao Tropeiro, obra do artista Poty Lazarotto.
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Jeferson do Nascimento Machado
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