Em nossa democracia liberal, com seu individuo soberano e empoderado, debates sobre os limites das instituições acontecem o tempo inteiro, reflexo de uma realidade frágil, descentrada e fluida. Não importa muito sua linhagem política, seja de esquerda, direita, centro ou alguma mistura aleatória dos três. Apesar das múltiplas respostas, repletas de tensões por toda parte, existe no horizonte uma mesma pergunta, um mesmo tipo de interrogação aguardando na esquina. Bolsonaristas, Lulistas, Psolistas, Anarquistas, Comunistas são muito diferentes entre si, eu sei, mas todos enfrentam o mesmo dilema contemporâneo: “Até onde vai o poder do individuo na determinação do seu próprio corpo, ideias, preferências e desejos?” Sem dúvida, esse é um campo muito pantanoso e bastante escorregadio, uma característica inevitável em sociedades encharcadas de democracia liberal, como a nossa. Como qualquer outra instituição na superfície do planeta, a arte também mergulha nessa esteira suspeitosa de debates, temperada com muitas polêmicas.
Leonardo de Lima Borges Lins, conhecido como Leo Lins, foi condenado no início desse mês a mais de 8 anos de prisão, além de uma multa salgada no valor de 2 milhões de reais. Embora não seja a primeira polêmica envolvendo esse comediante, dessa vez a proporção ganhou níveis astronômicos, retomando um questionamento até então adormecido: “Existe um limite na arte, principalmente no humor”? Apesar do infinito número de comentários mobilizados em defesa de Leo Lins, por comediantes, políticos, e outros apoiadores, é possível identificar seis linhas de raciocínio no meio dessa variedade toda, seis argumentos repetitivos que merecem nossa atenção. Peço alguns minutos do seu precioso tempo, vamos analisar agora cada uma dessas manobras retóricas, oferecendo alguns contrapontos críticos. Embora não pareça, o objetivo desse ensaio não é oferecer uma resposta óbvia e sólida, descontruindo os argumentos do adversário como se fossem estúpidos e sem consistência, mas apenas um sobrevoo por terras complexas e pantanosas… apenas isso!! Ainda que discorde dos seis argumentos de Leo Lins e seus apoiadores, cada um deles carrega premissas filosóficas e científicas interessantes, bem fundamentadas, embora incompatíveis com meu próprio entendimento de arte e sociedade. Resumindo… o tema é complexo, muito complexo, não importa nossas tentativas desesperadas de simplificação.
1) O Argumento do Buffet-Livre
Esse primeiro raciocínio é previsível, muito popular, talvez até faça parte do seu feed de notícias no Twitter, Facebook ou Instagram. Essa manobra retórica tem um uso simples, sem muito custo, típico do que chamo de argumento liberal. Por razões pedagógicas, imagine agora um restaurante com um buffet livre, bem ali perto da sua casa. Você entra no local e se aproxima das comidas, analisando as opções disponíveis. Depois de alguns segundos de investigação, você percebe no começo da esteira uma panela enorme com arroz acebolado, o que embrulha completamente o seu estômago. “Como assim cebola no arroz?”, pensa você. Nesse cenário gastronômico hipotético, o que pode ser feito? Você deve pedir ao dono a retirada do arroz, porque ele não atende sua preferência? Segundo os defensores desse argumento, a resposta é “não”. Se eu não gosto de uma comida, eu simplesmente não como, não pego. Talvez alguém, em algum momento, em algum lugar, goste do que foi desprezado por mim. Nesse raciocínio, o humor é como um produto a ser consumido, com diferentes gostos e preferências em um universo infinito de demandas. Seria preciso respeitar a autonomia do indivíduo, ao invés de estabelecer um obstáculo imposto de fora, como a remoção do arroz acebolado. Esse é um argumento sedutor, principalmente nas democracias liberais. Como o individuo é soberano, e plural em suas formas de manifestação, critérios coletivos são sempre encarados como violência, nada mais do que gestos arbitrários e ideológicos. PS: É preciso deixar claro que essa metáfora não é uma exclusividade da direita, mas dos chamados setores liberais como um todo, incluindo a própria esquerda liberal.
Marcelo Tas: “Não é sobre gostar ou não da piada. Particularmente, não é meu tipo de humor. E daí? O comediante estava no teatro diante de pessoas que escolheram estar ali.”
Leo Lins: “Eu não quero derrubar ninguém, eu sempre falo que tem que ter vários produtos na prateleira, cada um vai e consome o que quer.”
Contra-Ponto: Esse argumento reduz a ética a um assunto puramente individual, retirando a própria possibilidade de debates coletivos sobre os rumos da convivência. Cada indivíduo define o caminho mais conveniente, estabelecendo o que é certo e errado apenas dentro dos limites de seu próprio corpo e suas próprias determinações. A ética, portanto, é um assunto privado, nada mais do que um contrato específico e relativo. Esse argumento parece útil, conveniente, e diria até sedutor, mas não funciona na prática. Todas as sociedades na superfície desse planeta sempre carregaram dentro de si critérios coletivos com instituições poderosas que organizavam a vida em comum, apesar da variação dos conteúdos em cada cultura. Embora seja um ingrediente importante, o individuo não pode ser a matriz absoluta da ética, caso contrário, o destino do planeta inteiro é se tornar um grande condomínio fechado, ou seja, cada em seu espaço, fazendo o que achar melhor, com apenas um casual “bom dia” no elevador.
2) O Argumento da Autonomia
Um outro raciocínio muito comum, na defesa de Leo Lins, é o clássico argumento da estética como um campo autônomo, com regras próprias. Segundo esse humorista, se o conteúdo da sua piada fosse compartilhado na fila do pão, ou seja, em um outro contexto além do palco, ele deveria ser punido imediatamente. Mas a piada é uma performance artística, em um teatro, por isso não tem o mesmo peso, segundo ele. Nesse raciocínio, a arte é um campo neutro, separado de qualquer outro espaço imaginável, como a política ou a ciência. Não faria sentido aplicar critérios externos dentro de um espaço autônomo como o campo artístico.
Fábio Rabin: “Tem gente que usa a piada de forma negativa, para machucar o outro, fazer discurso de ódio. Mas, quando o cara está no palco fazendo um show para quem pagou, ele tem licença poética para fazer aquelas piadas”
Contra-Ponto: Acreditar que a arte é um espaço descolado do universo, sem qualquer conexão com nada além de si mesma, não corresponde aos fatos. O artista não é uma criatura mágica pairando sobre as nuvens, mas um humano como outro qualquer. A arte não é um manto que blinda o sujeito diante de qualquer circunstância. Embora não sejam claros os limites da arte, ela é uma instituição social como qualquer outra, ao invés de um universo paralelo. Se todas as instituições imagináveis passam por suspeitas, da ciência até a religião, passando pela política, a família e a mídia, por que a arte seria diferente? Qual é o fundamento da sua blindagem, além de um desejo desesperado por conveniência?
3) O Argumento da Fragilidade
Segundo Leo Lins, e seus defensores, não existe um parâmetro sólido em nenhuma instituição, nada consistente que estabeleça os limites do tolerável. Todos os indivíduos são falhos, com interesses, ideologias, por isso é impossível confiar em alguma barreira sugerida. Diante dessa fragilidade de critérios, a melhor solução é remover completamente qualquer limite.
Leo Lins: Se você escolhe qual censura é válida, você é contra a liberdade de expressão.
Contra-Ponto: Esse é um dos argumentos mais fracos, já que não resiste a nenhum teste empírico. Sem dúvida, as instituições humanas são falhas, tem crises, contradições, ideologias… ninguém nega essa contingência que atravessa as entranhas institucionais. Mas sugerir o abandono de qualquer critério, na esperança de escapar dos dedos interesseiros dos humanos, não faz muito sentido. Pense na polícia por um momento… Ela é uma instituição falha, problemática, e até racista, mas eu posso imaginar Salvador amanhã sem esse suporte institucional? Com certeza, a resposta é um óbvio “não”, ninguém em sã consciência diria o contrário. Problemas existem, assim como ideologias por toda parte, embora a saída é mais complexa do que simplesmente o abandono de critérios, instituições e parâmetros. Ou seja, a constatação da fragilidade de todo limite institucional não invalida sua eficácia, muito menos sua importância.
4) O Argumento Anti-Direita
Nesse raciocínio, existe uma queixa política no ar, uma intuição de algo suspeito, manipulador. Segundo Leo Lins, e seus apoiadores, o julgamento foi parcial, deixando claro uma hipocrisia de esquerda. Outros casos, protegidos pelos progressistas, como o do músico MC Poze e Oruam, não ganharam tanta crítica por parte da mídia ou dos próprios esquerdistas. Aos olhos dos críticos, com Leo Lins existe uma apologia do racismo, enquanto nesses outros exemplos temos apenas dois indivíduos negros empoderados, periféricos, descrevendo a vivência dura em periferias do Brasil. “Não parece hipócrita a crítica direcionada à Leo Lins e, ao mesmo tempo, a celebração desses dois músicos?”, reforçam os críticos
Maurício Meirelles: “Já percebemos que, de fato, quem é a favor da liberdade de expressão do Poze do Rodo é contra a liberdade de expressão do Léo Lins”.
Contra-ponto: É possível a existência de algum enviesamento nos bastidores, ninguém aqui é ingênuo. Pode existir, de fato, um tom parcial na história, uma aposta “em dois pesos e duas medidas”, mas esse não é o ponto aqui. A existência de hipocrisia no cenário não afeta o núcleo do problema, apenas gera uma cortina de fumaça, uma simples distração. Essa estratégia é o que chamam de “whataboutism”. Imaginem um assediador A da empresa X condenado pelo assédio de uma funcionária. Depois de um interrogatório, ele justifica: “Tudo bem, eu assediei. Mas o funcionário B também assediou em 2024 e ninguém disse nada, provavelmente porque ele é filho de pessoas poderosas”. Sem dúvida, é possível que nesse caso hipotético existiu um julgamento parcial, hipócrita, mas essa hipocrisia não altera o assédio do funcionário A, muito menos a necessidade de um debate sobre o acontecido. O “whataboutism” não é um argumento muito sólido, porque ele não fala sobre o núcleo do problema (o assédio ou o limite da arte), desviando apenas a atenção do público, como um truque barato de mágica. Eu acho válido o debate sobre a hipocrisia nos julgamentos, e como os critérios mudam dependendo das nossas filiações partidárias e ideológicas, mas isso é outro debate, algo secundário. Em outras palavras, as piadas de Leo Lins podem ser problemáticas mesmo se existirem hipocrisias em sua condenação jurídica ou virtual. Nas palavras de uma pensadora contemporânea, minha mãe, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.
5) O Argumento da Ruptura Estética
Segundo essa linha de raciocínio, o show de 2022, condenado pela Juíza, não foi feito por Leonardo de Lima Borges Lins, mas por Leo Lins, um personagem criado com uma única finalidade: o entretenimento. Nesse sentido, da mesma forma que um ator de teatro não é o seu papel, um comediante também não deve ser confundido com a sua representação artística, são perfis diferentes.
Leo Lins: “A partir de agora, se eu ver uma comédia romântica, eu posso processar os atores por atentado ao pudor, porque saiu do cinema e foi para a sala da minha casa”, disse.
Leo Lins: “Agora dá para prender a atriz que faz a vilã da novela”
Contra-ponto: A equivalência entre o teatro (ou cinema) e o stand-up não faz muito sentido, porque embora sejam artes, elas se comportam de formas diferentes. A comédia de stand-up é um fenômeno atual, típica de uma sociedade que centraliza o indivíduo acima de qualquer coisa. Ela mistura experiências pessoais com toques de performance, tudo isso numa clara conjunção com a identidade concreta do próprio artista. A fronteira entre o comediante de stand-up e sua vida privada é muito mais frágil do que em qualquer outra modalidade artística. Ela não se compara com o teatro, como no exemplo de um ator que representa um assassino ou um pervertido. A equivalência entre as duas formas de arte é forçada e não leva em conta o lado específico do stand-up, o quanto ele facilmente se mistura com a identidade do próprio profissional de comédia.
6) O Argumento das Consequências
Esse malabarismo retórico, também muito popular, segue um caminho curioso. Como extensão do tópico 2, o artista não deve ser responsabilizado por aquilo que outros fazem com sua obra. Se, por acaso, o público agir de maneira discriminatória com negros, mulheres e outros grupos, isso não seria culpa do artista, mas exclusivamente desse mesmo público que interpreta a performance de forma literal. Os espectadores, nesse sentido, não entendem que a piada é “apenas” arte, apenas um show. O aparecimento de qualquer “ismo” ou “fobia”, seja ele qual for, está sempre nos olhos de quem vê ou nos ouvidos de quem escuta, nunca uma responsabilidade do artista.
Danilo Gentili: “piadas não geram gente morrendo, não geram intolerância, preconceito. São apenas piadas”.
Contra-ponta: O outro é sempre um enigma diante de mim, eu não tenho como prever a sua reação aos meus comentários e comportamentos… isso é um fato. Desde Descartes, é muito claro o abismo entre as motivações na minha cabeça e a vida interior do meu vizinho. Mas, ainda assim, isso não significa que eu não tenho nenhuma responsabilidade sobre o que é dito e feito. Um exemplo disso sou eu, um professor. Sem dúvida, eu não tenho a mínima ideia do que acontece na cabeça do meu aluno quando assiste minhas aulas, ou como eles usam o conteúdo fora dos portões da universidade, mas isso não significa que eu devo ser descuidado com minhas palavras. O infinito número de interpretações no planeta, e até as crises nesse cenário hermeneuticamente confuso, não deve ser um cheque em branco entregue aos artistas, uma espécie de convite a um mundo onde tudo é possível. Ou seja, eu não tenho controle sobre sua interpretação, eu não tenho acesso ao seu conteúdo mental, mas alguma responsabilidade eu carrego comigo.
Conclusão:
Como sociólogo que desconfia do eu soberano, e de um mundo onde as instituições vivem em ruínas, eu acredito que arte precisa sim de um limite, embora reconheça a flexibilidade dessa demanda. Estabelecer um parâmetro institucional em um mundo complexo, frágil e constantemente aberto a críticas e suspeitas como o nosso, é sempre um desafio. Mas continua sendo necessário algum parâmetro, alguma coisa, porque não vivemos apenas em uma sociedade com indivíduos empoderados, fazemos parte também de um espaço coletivo com instituições importantes. Sobre a condenação, “ela foi radical?”, pergunta você. Eu acho que sim, eu penso que foi bastante extremista, mas algum limite deve ser estabelecido, eu apenas não sei onde ou como ou quando. De qualquer forma, deixar os critérios do mundo (estético, ético, epistêmico) nas mãos do indivíduo, não é uma escolha muito inteligente, mas uma receita de um bolo nada agradável: o caos.
Créditos da imagem da capa: Reprodução.