Lançado no Brasil em 21 de novembro de 2024, Razões Africanas chega às telas em uma data carregada de significado: o dia seguinte à celebração da Consciência Negra. Não por acaso, o documentário de Jefferson Mello, produzido pela Tremé Produções, se insere no calendário como uma resposta cultural ao apagamento histórico das contribuições africanas nas Américas. Mais do que um percurso musical, a obra é um ensaio audiovisual que percorre os caminhos da diáspora africana para revelar a vitalidade de uma herança cultural que, mesmo forjada sob o peso da violência colonial, permanece viva, fértil e essencial na formação das identidades afro-diaspóricas. O ponto de partida é Angola, território que figura entre os principais portos de saída de africanos escravizados durante o tráfico transatlântico. De lá, a narrativa atravessa o oceano e percorre Brasil, Estados Unidos, Cuba, Congo e Mali, configurando uma geografia da diáspora que desafia as divisões nacionais impostas pela lógica colonial. Em cada uma dessas paragens, a música atua como fio condutor da memória e da resistência. O jongo, a rumba e o blues, gêneros surgidos em contextos distintos, mas conectados por uma raiz comum, são apresentados não como meras expressões artísticas, mas como dispositivos culturais de sobrevivência e reinvenção.

A pesquisa de Jefferson Mello — que já havia articulado cultura e ancestralidade no documentário Samba & Jazz (2014) — aprofunda a ideia de que a diáspora não foi um apagamento, mas um replantio. O que emerge do documentário é uma crítica ao discurso ocidental que associa modernidade exclusivamente à Europa e ignora as contribuições africanas na constituição da música universal.

O jongo da Serrinha, no Rio de Janeiro, ganha voz na figura de Lazir Sinval, cantora, compositora, atriz, mestra e guardiã de uma tradição ancestral que sobreviveu à escravidão e resiste hoje ao silenciamento e à mercantilização da cultura negra. A rumba cubana, expressa nos movimentos e na fala da dançarina e pesquisadora Eva Despaigner, revela como corpo, ritmo e espiritualidade se entrelaçam em uma prática que resguarda o sagrado e a resistência comunitária. Já o blues, interpretado pelo norte-americano Terry ‘Harmonica’ Bean, é resgatado em sua dimensão mais visceral, anterior à indústria musical, como lamento e catarse das dores vividas por afro-americanos marginalizados.

Esses três personagens não apenas ilustram os gêneros abordados — eles são o próprio enunciado do filme: sujeitos que transformam herança em potência, tradição em movimento e dor em criação. A escolha de Mello por uma abordagem intimista, sensível e centrada nas pessoas é uma recusa à espetacularização da cultura negra. Ao invés disso, ele opta por valorizar os laços afetivos, os contextos comunitários e os processos históricos que moldaram essas práticas.

O reconhecimento internacional de Razões Africanas — premiado como Melhor Documentário Especial no Festival Cinema on the Bayou (EUA) e como Melhor Documentário no Festival Internacional de Cinema Africano (Argentina), entre outros — reforça não apenas sua qualidade estética, mas sobretudo sua potência política. Longe de se restringir à exibição de músicas e danças, o filme propõe uma reconfiguração simbólica: reposiciona a África e seus descendentes no centro do imaginário cultural do Ocidente, desafiando séculos de invisibilização promovida por narrativas eurocêntricas. Trata-se de um gesto de reivindicação histórica que devolve à cultura afro-diaspórica o protagonismo que lhe foi sistematicamente negado. Mais do que um documentário, Razões Africanas é uma travessia: da margem ao centro, do esquecimento à afirmação, do silêncio à celebração.

 

 

 


Créditos na imagem de capa: Imagem de divulgação do filme “Razões Africanas”