A minissérie “Chernobyl”, uma produção conjunta entre os EUA e a Inglaterra (HBO e Sky UK), estreou em maio de 2019 no serviço de streaming da HBO e teve uma recepção calorosa pelos espectadores. A história, contada em 5 episódios, tem como narrativa o acidente nuclear no reator 4 da Usina Nuclear de Chernobyl, ocorrido em abril de 1986 na cidade de Pripyat, norte da Ucrânia Soviética. No IMDB, uma base de dados online de informações a respeito de filmes, séries, música, “Chernobyl” aparece com 9,5 estrelas em 10, com base na participação de mais de 382 mil usuários. A série também levou três Emmy’s, o maior e mais prestigioso prêmio atribuído a programas e profissionais de televisão, em 2019: melhor minissérie, melhor roteiro em minissérie e melhor direção em minissérie. O sucesso da série foi tamanho que o movimento de turistas no local aumentou em cerca de 40%[1] e o livro “As Vozes de Tchernóbil”, da vencedora do Nobel Svetlana Aleksiévitch, entrou na lista dos livros mais vendidos da VEJA em junho, um mês após a estreia da minissérie[2].
A boa recepção pelos espectadores não é à toa, a série tem uma excelente produção, ótimas atuações, fotografia incrível, efeitos 3D de última qualidade. Tais aspectos técnicos são capazes de produzir um efeito de verdade ao ponto do espectador sentir-se ambientalizado, quase que como uma personagem extra da narrativa. As filmagens foram produzidas pensando-se em um filme, por conta disso os episódios conseguem dialogar entre si, evitando fios soltos. Também há constante mudança temporal, dialogando passado, presente e futuro, isto é, em um mesmo episódio tem-se cenas antes da explosão, durante e após, movimento esse também bastante elaborado. Os aspectos técnicos auxiliam na explicação do sucesso da minissérie, mas sozinhos não são capazes de entendê-lo, outros pontos de vista são necessários e a discussão de Andreas Huyssen sobre memorialização muito acrescenta nesse sentido.
Em “Passados presentes: mídia, política, amnésia”, capítulo de “Seduzidos pela memória” (2000), Huyssen aponta para o nascimento de uma cultura e de uma política da memória que se expandiu globalmente, principalmente a partir da década de 1980[3]. Para ele é nesse momento que teria ocorrido um deslocamento das narrativas de futuro para a produção de narrativas de passado e a explicação desse fenômeno deve ser tanto histórica quanto fenomenológica, pois evidencia mudanças na experiência e na sensibilidade do tempo. Uma das explicações possíveis a esse cenário tem como base a noção da rápida transformação das vidas ocidentais a partir da modernidade, pensando as mudanças tecnológicas, a interferência da mídia de massa e os novos padrões de consumo, trabalho e mobilidade global. Essa alteração da temporalidade tem sido discutida por diversos autores, como Koselleck, Hartog e Gumbrecht, mas um ponto comum possível de identificar é que esse cenário ocasionou em um afastamento do passado e uma perspectiva de fechamento de futuro. Assim, a emergência memorialística pode ser entendida como uma necessidade desse tempo acelerado de produzir raízes, principalmente no passado.
Alice Melo (2016) também discute esse retorno ao passado ao analisar edições do Jornal do Brasil, entre 1965 e 1972[4]. Segundo a autora, na metade do século XX, a sociedade teria parado de sonhar, houve ali uma mudança no “imaginário social acerca do
futuro: de objeto de fascínio a símbolo do medo e metáfora do fim”. Dessa forma, o retorno ao passado parece mais seguro do que a miragem de futuros. Essa é uma das análises possíveis para o sucesso estrondoso de “Chernobyl”, atrelada a outro fator: a ausência de narrativas a respeito da explosão nuclear. Em entrevista concedida à revista estadunidense-canadense VICE[5], Craig Mazin, criador, roteirista e produtor da minissérie corrobora com essa hipótese:
VICE: Como você começou a pensar sobre o desastre de Chernobyl, e como foram os primeiros estágios de ler e pesquisar sobre o caso?
Craig Mazin: Eu tinha 15 anos quando Chernobyl aconteceu, então sempre pensei vagamente nisso na maior parte da minha vida. Mas por volta de 2015, me ocorreu que eu não sabia como o acidente tinha acontecido, o que parecia um lapso bizarro no meu entendimento do mundo e como ele funciona. Então comecei a ler. Eu honestamente só queria saber, de um ponto de vista científico, o que exatamente deu errado naquela noite. E o que descobri enquanto continuava lendo foi algo chocante, marcante e que não saía da minha cabeça. Foi um pouco como se eu tivesse descoberto uma guerra sobre a qual ninguém tinha escrito profundamente. E aí, claro, descobri que as pessoas tinham escrito – era só que isso não tinha cruzado a consciência coletiva. E fiquei obcecado. (SCHWARTZ, 2019, on-line. Grifos meus).
Esse passado pouco discutido e com ares sombrios auxilia na construção de um fascínio que a indústria cultural é capaz, mais do que qualquer outra área, de captar e de responder. Ao colocar que o ocorrido de Chernobyl e as ausências de narrativa ali produzidas são capazes de auxiliar o ser no entendimento do funcionamento do mundo, Mazin corrobora com a hipótese de Huyssen sobre o Holocausto: o acontecimento “perde sua qualidade de índice do evento histórico específico e começa a funcionar como uma metáfora para outras histórias e memórias” (HUYSSEN, 2000:13). Cabe lembrar que em 1997 foi lançado “Vozes de Tchernóbil – A História Oral do desastre nuclear”, da jornalista bielorussa Svetlana Alexievich, obra que foi lida por Mazin e que segundo o mesmo serviu de inspiração para a produção da minissérie. O livro de Alexievich trabalha com relatos orais de pessoas comuns – médicos, soldados, ex-trabalhadores, cientistas – sobre a catástrofe recolhidos e selecionados por quase 20 anos.
Por outro lado, as críticas que a minissérie da HBO e parceiros receberam foram inúmeras, principalmente no que diz respeito ao seu caráter de propaganda anti-comunista. Alguns comentários também apontam para lacunas ou para um certo grau de invenção em histórias contadas por “Chernobyl”. É importante lembrar que a série é uma ficção, ainda que baseada em documentos oficiais e relatos orais, por conta disso o criador tem liberdade artística para produzir novos pontos de vista, mas a produção foi disseminada entre os espectadores como uma espécie de documentário. Ao fim do episódio final são expostas fotos da época, assim como das personagens principais da série e que de fato existiram, e comentários, como o destino daquelas pessoas. Nesse momento a série deixa claro que a personagem da física nuclear Ulana Khomyuk foi inventada de modo a representar o grupo de cientistas que trabalhou juntamente a Valery Legasov buscando solucionar as causas do acidente, sendo esse um dos únicos momentos em que a narrativa evidencia ter um aspecto ficcional e inventivo. Para os espectadores mais ingênuos a minissérie passa como um documentário que retrata fielmente o contexto, as personagens, o acidente, a URSS, e o elaboradíssimo trabalho de pesquisa e construção do cenário e do vestuário fortalece essa visão.
Em relação a “Chernobyl” ser uma propaganda anti-comunista o próprio roteirista auxilia no endossamento dessa visão. Quando perguntado pelo repórter da VICE sobre os motivos de querer uma obra tão autêntica e precisa, a introdução da resposta de Mazin nos dá a dica:
Bom, no cerne dessa história está uma pergunta sobre o que acontece quando nos desconectamos da verdade. E o sistema soviético era basicamente um monumento à mentira útil. Eles transformaram mentir numa arte: Eles mentiam uns para os outros, mentiam para as pessoas acima dele, mentiam para as pessoas abaixo, e faziam isso por um senso de sobrevivência (…) (SCHWARTZ, 2019, on-line)
E é dessa maneira que a série conduz a narrativa, com base na dicotomia mentira e verdade, mocinho e bandido, como se administração da usina e a própria URSS fosse possível de ser compreendida no preto e branco. As escolhas dos atores para representar as personagens ligadas ao governo e aos cargos de administração da usina foram muito bem pensadas, pois conduzem à elaboração de um afeto negativo. São homens rudes, egoístas, viciados em fumar cigarros e que bebem vodka várias vezes ao dia e todos os dias. Assim, a recepção positiva do público do ocidente contrapõe-se às críticas de jornais e cidadãos russos, como o relato de Andriy Manchuk, filho do mestre de uma equipe de mineiros que participou da construção de um túnel logo embaixo do reator explodido[6]. Na série, os mineiros são obrigados pelo ministro do carvão, ao lado de dois soldados empunhando armas, a irem até Chernobyl. Manhuck fala em voluntariado, contrariando a narrativa da minissérie. “Preciso dizer que suas memórias daqueles dias de Chernobyl são significativamente diferentes das fantasias presentes no trama dos escritores da HBO?” (MANCHUCK, 2019, on-line). Para responder a “Chernobyl”, a televisão estatal russa produzirá uma série tratando sobre o mesmo acontecimento, mas com outra narrativa[7]. O diretor, Aleksey Muradov, afirmou que a intenção é mostrar “o que realmente aconteceu na época”, introduzindo a narrativa de que Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA, teve influência direta no desastre.
As inconstâncias da narrativa são entendíveis se o espectador tiver em mente que “Chernobyl” é um produto da indústria cultural e que tem como objetivo atingir níveis de audiência a partir da comercialização do trauma. Também é importante lembrar que a mídia não transporta a memória inocentemente, como apontado por Huyssen, e é ela mesma condicionada pelo seu tempo a partir de sua forma e estrutura. Entretanto, enquadrar essa produção de memória como baixa cultura não responde aos anseios de memorialização e retorno ao passado, assim como não evita que novas mídias que manipulam a memória sejam produzidas. Huyssen entende que ir por esse lado é reproduzir a velha dicotomia “alta/baixa da cultura modernista sob uma nova aparência” (HUYSSEN, 2000:21). Na intenção de responder ao desafio contemporâneo que envolve o fascínio pelo passado e a emergência de narrativas outras, Valdei Araujo introduz a noção do historiador enquanto “curador de histórias”, isto é, de forma semelhante ao trabalho de Svetlana Alexievich cabe ao historiador hodierno o “acolhimento crítico e a amplificação de oportunidades e ferramentas” em vez da autoria e da produção[8]. A curadoria de história apresenta uma dimensão crítica frente a discursos de ódio e de preconceitos, desestabilizando anti-histórias e viabilizando os discursos que celebram e amplificam as diversidades, que correspondem à verdade do acontecimento e que são, em sua essência, democráticos.
NOTAS
[1] SCOFIELD, Gilberto. Fantasma, Tchernóbil renasce com turismo da tragédia nuclear. Folha de São Paulo, junho de 2019. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/fantasma-tchernobil-renasce-com-turismo-da-tragedia-nuclear.shtml>. Acesso em novembro de 2019.
[2] VEJA. Série da HBO faz livro sobre Chernobyl entrar na lista dos mais vendidos. VEJA, junho de 2019. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/serie-da-hbo-faz-livro-sobre-chernobyl-entrar-na-lista-dos-mais-vendidos/>. Acesso em novembro de 2019.
[3] HUYSSEN, Andreas. Passado presentes: mídia, política, amnésia. In: Seduzidos pela memória, 2ª ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
[4] MELO, Alice . Entre o Fascínio e o Medo: Questões Sobre Imprensa e as Ideias de Futuro no Contemporâneo. In: XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2016, São Paulo. Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo: Intercom, 2016. p. 1-15.
[5] SCHWARTZ, Drew. A obsessão de anos de Craig Mazin em fazer ‘Chernobyl’ ser terrivelmente precisa. Traduzido por Marina Schnoor. Revista VICE, junho de 2019. Disponível em: https://www.vice.com/pt_br/article/j5wbq4/a-obsessao-de-anos-de-craig-mazin-em-fazer-chernobyl-ser-terrivelmente-precisa. Acesso em novembro de 2019.
[6] MANCHUK, Andriy. Minha Chernobyl e a versão da HBO. Revista Opera, julho de 2019. Disponível em: https://revistaopera.com.br/2019/07/04/minha-chernobyl-e-a-versao-da-hbo/. Acesso em novembro de 2019.
[7] BBC NEWS. ‘Chernobyl’: como série de TV é vista na Rússia e por que o país está fazendo sua própria versão. BBC, junho de 2019. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/geral-48569446#orb-banner>. Acesso em novembro de 2019.
[8] ARAUJO, Valdei. O Direito à História: O(A) Historiador(a) como Curador(a) de uma experiência histórica socialmente distribuída. In Géssica Guimarães, Leonardo Bruno, Rodrigo Perez. Conversas sobre o Brasil: ensaios de crítica histórica. Rio de Janeiro: Autografia, 2017, pp. 191-216.
Créditos na imagem: “Chernobyl”, HBO.
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