Lendo as atas das reuniões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), deparo-me com um fato que para mim têm cheiro, sabor e cor de anedota[1]. Trata-se de um debate que desestabilizou a tranquilidade da “ordem do dia”. Três dias após a princesa Isabel assinar a Lei Áurea, estavam os sócios reunidos numa sessão extraordinária para discutir como deveriam expressar o contentamento sobre esse novo fato nacional, pois não podiam “passar desapercebido tão sublime feito”.[2] Reunidos na sala do Paço Imperial, pensaram em enviar um telegrama ao imperador parabenizando-o[3] e uma deputação para saudar a princesa, dirigir mensagens de agradecimento e louvor à câmara legislativa e ao ministério, registrar em ata o voto de louvor à imprensa,[4] colocar um busto do finado Perdigão Malheiro, autor de “Escravidão do Brasil”,[5] na sala de reuniões, erguer uma coluna bem alta com a estátua da princesa Isabel no Campo da Aclamação – o atual Campo de Santana[6] – e, ainda, decidir quais sócios representariam o IHGB na missa campal realizada no dia 17 de maio[7] – data que, cinco anos mais tarde, Machado de Assis nomeou como “dia de delírio”.[8] Penso que talvez, sob os efeitos desse espírito delirante, nas reuniões subsequentes, as discussões continuaram, pois Isabel, “a augusta Senhora”, não aprovou a proposta da estátua e comunicou por meio do Conde d’Eu, seu esposo, que “não podia anuir a que, por qualquer motivo, lhe fosse aceito o projeto apresentado com o justo intuito de comemorar a lei”.[9] Logo, com a impossibilidade de erguer uma estátua, os sócios do Instituto pensaram em outras formas “justas” de comemorar o “treze de maio”.
Após ouvir e recolher as novas propostas, formou-se uma comissão responsável para avaliá-las e, no dia 10 de agosto, foi lido o parecer assinado pelos sócios Olegário Herculano de Aquino e Castro, Visconde de Beaurepaire Rohan e Barão de Miranda Reis: reconheceram que “fatos notáveis e grandiosos na história do nosso país” deveriam “ser perpetuados na memória das gerações futuras”, compreendendo a abolição como um movimento pacífico, uma vez que “as festivas aclamações e aplausos”, “sem a mínima perturbação da ordem pública”, efetuaram entre nós “essa revolução incruenta”, uma “magna reforma” que havia nos elevado “no conceito de nações civilizadas”. Assim, consideraram justo “que tão memorável acontecimento” fosse “por modo digno e solene celebrado pelo Instituto”. Mas era “preciso conter a expansão do desejo nos restritos limites do possível”.[10] Por fim, chegaram a duas propostas: na primeira, talvez sob o império do delírio, cabia ao “Instituto cunhar medalhas comemorativas” e destiná-las ao Imperador, à princesa, ao Conde d’Eu e a outras autoridades e corporações nacionais e estrangeiras, na segunda, um tanto mais trabalhosa, deveria ser “escrita uma memória contendo a história resumida de tudo quanto se refere ao assunto de que se trata, desde a fundação do Império até a data da áurea lei de 13 de maio de 1888”.[11] Afinal, concluía o parecer: “Um bom livro é também um monumento, e tanto mais digno de apreço quanto representa a superioridade da atividade humana. Os templos e as estátuas esboroam-se; mas sobrevive o pensamento e perduram as grandes ideias, porque essas são imortais”.[12]
O desejo da comissão era que tanto as medalhas como a memória sobre a escravidão fossem entregues ainda no final daquele ano, entretanto o tempo da expectativa não foi o mesmo da execução. Passado mais um mês da leitura do parecer, o conselheiro Olegário pediu a palavra e cobrou do presidente a deliberação para as duas propostas apresentadas, contudo, somente uma teve encaminhamento: ficou sob a responsabilidade do tesoureiro Tristão de Alencar Araripe mandar cunhar as medalhas. Tratando ainda do mesmo assunto, as medalhas, nas reuniões seguintes discutiram sobre as quantidades, e, após viabilizar a verba, decidiram cunhar 2 de ouro, 50 de prata e 300 de bronze. Contudo, ainda não haviam decidido quem escreveria a memória da escravidão. Este adiamento levou o conselheiro Olegário, na reunião do dia 9 de novembro, a cobrar do presidente se ele havia designado alguém ou alguma comissão para escrevê-la. O presidente declarou que iria tomar “providências com brevidade”.[13] Um mês mais tarde, ainda não se sabia quem a escreveria e o tesoureiro Tristão de Alencar Araripe noticiou que as medalhas só ficariam prontas no próximo 13 de maio, uma vez que precisou gravar novamente a efigie da princesa imperial, pois “[…] a gravura existente representava a efigie em idade muito anterior à época atual”.[14] Logo, a homenagem teve que ser adiada para o ano seguinte.
Sei que todo novo prazo é bem-vindo e naquela situação deve ter sido um alívio a prorrogação de seis meses, mas, mesmo assim, os sócios não conseguiram escrever a breve “memória da escravidão”, afinal, esta era uma operação mais complexa, mesmo que não tanto quanto escrever uma história, pois sabiam que para isso faltavam tanto os documentos quanto a crítica documental e esperavam que o “nosso historiador” realizasse uma “análise físio-psicológica” de “um povo verdadeiramente livre”, estudando e julgando “seus sentimentos e na sua evolução”.[15]
Com as medalhas[16] e sem a memória, o grande momento se aproximava: o aniversário de um ano da abolição da escravidão. Na sessão do dia 10 de maio de 1889, ficou deliberado que o conselheiro Araripe elaboraria uma lista com os nomes das pessoas e das instituições que receberiam a medalha de prata e de bronze – sim, isso mesmo, as medalhas não tinham destinatários até aquele momento – e o conselheiro Olegário, por ter sido o relator das propostas, entregaria as medalhas de ouro para o Imperador e para a Princesa em nome do IHGB, sem a memória histórica da escravidão.
Assim, no dia 13 de maio, às 19 horas, o conselheiro Olegário foi recebido no paço imperial pelo Imperador e pela princesa, entregou as duas medalhas e discursou: “Senhor!”, dirigindo-se a Pedro II, “As medalhas comemorativas […] trazem gravadas a efigie da Ínclita Redentora dos cativos e uma data auspiciosa”, com elas “[…] perdurará brilhantemente inscrita em caracteres indeléveis na memória da pátria e no coração agradecido dos Brasileiros, recordando o mais grandioso feito, que enobrece as páginas gloriosas da nossa história contemporânea.”, pois a “extinção da escravidão” era o “complemento necessário da nossa emancipação política”. Sabiam o quão foi “árdua a empresa, longo e doloroso o estádio percorrido”, mas as “negras sombras da triste escravidão sucederam as rutilantes galas do astro, que ilumina um povo inteiramente livre”, graças aos “[…] sentimentos de encendrado patriotismo e indefectível amor da justiça e da humanidade se manifestaram sempre favoráveis a causas sacrossanta da liberdade”. E assim prestava o “Instituto suas respeitosas homenagens à Vossa Majestade e à Sua Alteza Imperial […] que com gerais aplausos do mundo civilizado, declarou para sempre extinta a escravidão no Brasil”.[17]
Por fim, o Imperador “dignou-se a responder: ‘Agradeço muito ao Instituto; e nada mais digo, porque o Instituto bem sabe, que eu sou todo dele’”.[18]
Se este episódio do passado nos parece bizarro e estranho, como não poderia deixar de ser, também é muito familiar. Aquele espírito oitocentista delirante encontrou uma sobrevivência no governo de Jair Bolsonaro, que, no apagar das luzes, criou, por meio do decreto 11.277, a Ordem de Mérito Princesa Isabel. No último dia 31 de março, o novo decreto 11.463, assinado pelo Presidente Lula, cria a Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos.
O delírio foi revogado!
NOTAS
[1] Este texto foi extraído e adaptado para a HH magazine, ele faz parte da tese, recentemente defendida, “Uma ajustada escrita da História: a historicidade os atos historiográficos de julgar no IHGB (1870-1944). Para conhecê-la, consultar: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/242327.
[2] ATAS DAS SESSÕES em 1888. Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LI, parte II, p. 209-327, 1888, p. 210.
[3] Dia 30 de junho de 1887, Pedro II partiu para a Europa e a princesa Isabel assumiu pela terceira vez a regência do Brasil. O Imperador encontrava-se em Milão, em tratamento, quando recebeu a notícia da Abolição pela princesa. SCHAWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca dos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.; BARMAN, Roderick J. Imperador cidadão [tradução de Sonia Midori Yammato] São Paulo: Editora Unesp: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012.
[4] Franklin Távora, em “A extinção da escravidão no Brasil – O Jubileu do Instituto Histórico” (1888), fez uma breve apresentação da importância da lei e reuniu as mensagens encaminhadas aos políticos e à imprensa. TAVORA, Franklin. A extinção da escravidão no Brasil – O jubileu do Instituo Histórico. In: Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, Tomo LI, 1º Folheto de 1888, p. XVIII-XXVII.
[5] Para o jurista Perdigão Malheiro (1824-1881), a abolição deveria ocorrer de forma lenta e gradual. Acreditava, ainda, que o escravizado jamais seria livre, mesmo alforriado, pois, essa seria sua condição natural. PAES, Mariana Armond Dias. Perdigão Malheiro e a escravidão no Brasil. Revista do CAAP, Belo Horizonte, Número Especial: I Jornada de Estudos Jurídicos da UFMG, p. 81-92, jul-dez, 2010. Disponível em <https://revistadocaap.direito.ufmg.br/index.php/revista/article/view/320 >. Acessado em 28 ago. 2020.
[6] GUIMARÃES, Ivo Venerotti. Campo de Santana: de charco a palco privilegiado de manifestação populares e oficiais. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 5, p. 243-254, 2011. Disponível em: <http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/campo-de-santana-de-charco-a-palco-privilegiado-de-manifestacoes-populares-e-oficiais/>, acesso em 24 jul. 2020.
[7] As fotos da Missa Campal estão disponíveis em <http://brasilianafotografica.bn.br/?page_id=736>. Acessado dia 13 jul. 2020.
[8] MORAES, Renata Figueiredo. O “dia delírio” de Machado de Assis e as festas da abolição. Machado Assis Linha, São Paulo, v. 11, n. 23, p. 34-53, abr. 2018, p. 35. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-68212018000100034&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 13 jul. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1983-6821201811233.
[9] ACTAS DAS SESSÕES em 1888, op. cit., p. 220.
[10] ACTAS DAS SESSÕES em 1888, op. cit., p. 257.
[11] ACTAS DAS SESSÕES em 1888, op. cit., p. 258.
[12] ACTAS DAS SESSÕES em 1888, op. cit., p. 259.
[13] ACTAS DAS SESSÕES em 1888, op. cit., p. 301.
[14] ACTAS DAS SESSÕES em 1888, op. cit., p. 314.
[15] TAVORA, Franklin. A extinção da escravidão no Brasil. p. XXVII. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LI, p. XVII-XXVII, 1º folheto de 1888, p. XVIII.
[16] Na borda do anverso lê-se “D. ISABEL PRINCEZA IMPERIAL REGENTE DO BRASIL” e no centro há o desenho do busto da princesa; na face oposta, o reverso, lê-se na borda “INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO” e no centro apresentam-se dois ramos de ouro que envolvem o escrito “LEI DE 13 DE MAIO DE 1888” COIMBRA, Álvaro de Veiga. Noções de Numismática Medalhística. Revista de História, v. 23, n. 47, 221-264, jun. 1961. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/121521>, acesso em 24 jul. 2020.
[17] ATAS DAS SESSÕES em 1889. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LI, parte II, p. 374-549, 1889, p. 410-412, grifo nosso.
[18] ATAS DAS SESSÕES em 1889, op. cit., p. 412, grifo nosso.
Créditos na imagem: Largo do Paço Imperial, onde funcionava, em uma sala, a primeira sede do IHGB. Litogravura (17,4 x 26,5 cm) de I. Ludwig e Briggs (colaboradores), 1845-1846. Domínio público.
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