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O que muda a terra – nossa América indígena

Sítios arqueológicos, lugares e espaços de memória indígena.            

É preciso destacar, antes de qualquer palavra, que o Brasil é terra indígena e, por isso, muitos são os lugares de memória dos povos originários. A territorialidade é uma abordagem que permite não só a reivindicação de um espaço tradicional e ancestral, mas também o próprio entendimento, recuperação e valorização das histórias de ocupação e presença indígena, nas mais variadas regiões brasileiras. É o que demonstra Dominique Gallois, em Terras ocupadas? Territórios? Territorialidade? (2004). Para a autora, ainda há uma visão romantizada sobre os indígenas no Brasil de nomadismos e não-fixação em territórios, e mais, os povos que não se adequam à essa percepção estereotipada e idealizada, são cunhados como aculturados, que perderam suas tradições.

Faço esse apontamento pois os lugares e espaços de memória são múltiplos e são vivenciados de maneiras diferentes pelos diversos povos originários, mesmo os sítios arqueológicos de povos ancestrais. É o que demonstra Niéde  Guidon, em As ocupações pré-históricas do Brasil (excetuando a Amazônia) (2006). A arqueóloga demonstra que no Sítio da Pedra Furada, que compreende também grupos humanos do Pleistoceno, conta com um caldeirão capaz de ser abastecido com 7 mil litros de água, em um abrigo. No entanto, apesar desse local ter sido utilizado como refúgio temporário, as pesquisas demonstram que se tornou um sítio cerimonial, caracterizado pelas pinturas, demonstrando assim a preocupação daqueles povos com os registros de suas presenças.

Guidón também aponta a importância da larga distribuição espacial e temporal de sítios, classificando-os a partir de subtradições (SIC) e estilos. É o caso da região Amazônica, que ainda é pouco encarada como espaço de adaptações humanas e centro de culturas pré-escrita (ou pré-históricas, a depender da linha de pesquisa). Pode-se perceber isso a partir do texto de Anna Roosevelt, Arqueologia Amazônica (2006). A autora destaca que as novas perspectivas teorico-metodológicas de campo demonstram novos sítios arqueológicos, mais preservados e que trazem informações renovadas. Um dos exemplos é o surgimento de um modo de vida semelhantes aos dos atuais indígenas amazônicos, a partir de 3 mil A.C., destacando-se pelas aldeias agrícolas e estabelecimento da horticultura de raízes, nas terras baixas. Este é um dado importante, principalmente para contradizer a construção depreciativa de que indígenas não desenvolveram tecnologias de subsistências, como escreveu Francisco Varnhagen, no século XIX, em História Geral do Brasil (1854-1857).

Essas constatações são inovadoras também considerando um desafio natural da arqueologia brasileira, que é o solo ácido, como apontam Pedro Paulo Funari e Ana Piñon, em A Temática Indígena na Escola (2011). De acordo com os autores, é por meio da cerâmica que, junto das rochas como materiais de maior resistência, os pesquisadores conseguem diagnosticar os costumes e modos de vidas tradicionais em diferentes tempos. É o caso da importância da figura feminina e prestígio das mulheres na sociedade da Ilha de Marajó, cujos artefatos encontrados contam com a representação do corpo feminino, destacando o útero.

O destaque sobre o feminino e sobre a mulher é fundamental para corrigir a invisibilização das mulheres indígenas e das violências cometidas contra elas, ao longo da história. Outra mulher importante no campo da arqueologia foi Luzia, nome dado para a ossada encontrada no sítio arqueológico de Lagoa Santa, considerado como o fóssil humano mais antigo encontrado na América do Sul. É o que apontam André Prous, Alenice Baeta e Ezio Rubbioli, no livro O Patrimônio arqueológico da região de Matozinhos: conhecer para proteger (2003). No livro, os autores demonstram que as primeiras populações chegaram na região de Minas Gerais entre 20 e 15 mil anos atrás, com marcas mais precisas de presença entre 12 e 11 mil anos. Luzia foi datada com cerca de 12 e 13 mil anos e teve seus ossos espalhados, antes de serem sedimentados, pelas águas. O crânio dessa mulher foi de grande importância para o entendimento dos hábitos alimentares e da reconstrução física dos primeiros habitantes da região.

As pesquisas dedicadas ao conhecimento dos habitantes originários é, muito anteriores a chegadas dos europeus invasores nas Américas, a área de recentes descobertas na região do Triângulo Mineiro. Em 2017, foram encontrados materiais líticos, como raspadores, facas e pontas de flecha, na região rural de Gurinhatã, como demonstra o historiador e geógrafo Cláudio Scarparo Silva.[1] De acordo com Aurelino José Ferreira Filho, os resquícios arqueológicos devem ser dialogados com a etno-história, fontes históricas e relatos memorialísticos, como descrito no texto Indígenas no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba: sítios arqueológicos e patrimônio (2018).

De acordo com o Instituto Socioambiental, o Brasil possui mais de 24 mil sítios arqueológicos cadastrados no banco de dados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), incluindo os sambaquis.[2] Estes últimos são sítios arqueológicos muito próprios do litoral brasileiro. Madu Gaspar, em Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro, demonstra como que, com análise desses sítios arqueológicos, contatou-se a boa nutrição daqueles povos, que era baseada em alimentos frescos, além de terem organizações sociais específicas e diferenciadas, a partir do sistema de classificação proposto por Elman Service: bando, tribo, chefia. É importante dizer que esta classificação é direcionada àquelas sociedades e não pode, de forma alguma, categorizar povos recentes.[3] Isto implicaria em uma perspectiva perversamente evolucionista e etnocêntrica.

É contra tais perspectivas que entra a metodologia da história oral e memória dos povos indígenas em nossa contemporaneidade. A historiadora Aline Rochedo Pachamama, do povo Puri, aborda em Boacé Uchô: a história está na terra (2020), sobre a necessidade do uso de metodologias da história oral para a real construção das histórias indígenas nos Brasil. Isso porque, apesar da lei 11.645/08 garantir sua obrigatoriedade, o ensino é ainda baseado em registros colonialistas (não apenas coloniais). Para a historiadora, a oralidade contrapõe as violências de um sistema colonizatório que vem silenciando e invisibilizando os povos originários desde as primeiras invasões europeias.

Além disso, trazer relatos orais, que também podem estar presentes nas literaturas, é fomentar o patrimônio memorialístico presentes nas mais diversas regiões do Brasil, apesar das tentativas de apagamento. Esse movimento é importante pois os lugares de memória indígena, a partir do que apresentou Pierre Nora, podemos dizer que os lugares de memórias indígenas são dinâmicos, vivos e agentes dos espaços e povos que os reverenciam. Este é o caso do Rio Doce, ou Watu, para o povo Krenak. Após o crime da mineradora Samarco, o Watu “entrou em coma”, como destacou Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019). O autor explica que o rio faz parte da ancestralidade de seu povo, de suas histórias, resistências e cosmogonias. O Watu banha uma serra, chamada pelos Krenak de Takukrak, e Ailton Krenak escreve que a serra fala com seu povo, como parente encantado de suas vidas.

O encantamento, de acordo com Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, em Encantamento: sobre políticas de vida (2020), catalisa o sentir de outras sensibilidades, outros modos de vida, opostas ao fenômeno violento da colonização. Dessa forma, museus podem ser espaços de encantamento e de memórias indígenas. É o caso do Museu Nacional que protegia um amplo acervo de peças indígenas, mas foi consumido por um incêndio em 2018. Com a perda de relíquias originárias, o pesquisador indígena José Urutau Guajajara comentou em entrevista da época, concedida ao The New York Times, que “é como se fosse um novo genocídio, como se massacrassem todas essas comunidades (SIC) indígenas de novo, porque era ali que nossa memória residia”.[4] A catástrofe não foi maior porque parte substancial das peças estavam em exposição em Brasília e, de acordo com João Pacheco, autor de O Nascimento do Brasil e outros ensaios, que argumenta: “é o que resta de memória das atividades antropológicas do museu Nacional”.[5]

Outros acervos, também em museus, correspondem a uma memória recente dos povos indígenas. É o caso da obra artística audiovisual O Parto, de Olinda Yawar[6]. A obra, apresentada na II Mostra de Arte Indígena Contemporânea “Em tempos sombrios, eu ilumino”, do Museu do Índio da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), mostra uma mulher indígena em trabalho de parto, e dá a luz a todas as heranças que os povos originários ofereceram à sociedade brasileira, incluindo a arte audiovisual atual. Em contrapartida, a sociedade devolveu a violência de uma evangelização forçada (representada pela Bíblia), que a artista deixa de lado, renegando-a. Finaliza-se a interação com a representação de uma criança indígena, que carrega tudo isso em sua ancestralidade e memória coletiva. “Parir não está ligado apenas à reprodução”, é o que a artista fala, destacando a sobrevivência física, epistemológica e emotiva, concluindo com a fala: “nossos corpos também são nossos territórios”, e territórios são espaços de memória.

 

 

 


REFERÊNCIAS

FERREIRA FILHO, Aurelino José. Indígenas no Triângulo Mineiro e Alto Paranaiba: sítios arqueológicos e patrimônio. Albuquerque: revista de história, v. 10, n. 19, 17 dez. 2018.

FUNARI, Pedro Paulo; PIÑON, Ana. A Temática Indígena na Escola: subsídios para os professores. São Paulo, 2011.

GALLOIS, Dominique. Terras ocupadas? Territórios? Territorialidade?. IN.:RICARDO, Fany Pantaleoni (Org). TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004.

GASPAR, Madu. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

GUIDON, Niéde. As Ocupações pré-históricas do Brasil (excetuando a Amazônia). IN.: CUNHAS, Manuela Carneiro da Cunha. História do Índio no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

PACHAMAMA, Aline Rochedo. PACHAMAMA, Aline Rochedo. Boacé Uchô: a história está na terra. Rio de Janeiro: Editora Pachamama, 2020,

PROUS, André; BAETA, Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da região de Matozinhos: conhecer para proteger. Belo Horizonte, 2003.

ROOSEVELT, Anna. Arqueologia Amazônica. IN.: CUNHAS, Manuela Carneiro da Cunha. História do Índio no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre políticas de vida. Editorial Morula, edição Kindle, 2020.

 

 

 


NOTAS

[1] Para leitura completa da reportagem, consultar: https://comunica.ufu.br/noticia/2020/04/pesquisadores-estudam-sitios-arqueologicos-em-gurinhata-e-descobrem-artefatos . Acesso em 27/09/2022.

[2] Para leitura detida, consultar a página https://acervo.socioambiental.org/acervo/noticias/brasil-possui-mais-de-24-mil-sitios-arqueologicos-cadastrados . Acesso em 27/09/2022.

[3] Mesmo entre arqueólogos, antropólogos e historiadores, essa divisão é problemática e intensamente debatida.

[4] Para leitura da entrevista, consultar: https://www.nytimes.com/es/2018/09/17/espanol/museo-nacional-brasil-obras-indigenas.html . Acesso em 27/09/2022.

[5] Para leitura detida, consultar: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-09/unicas-pecas-do-acervo-indigena-do-museu-nacional-estao-em-brasilia#:~:text=%E2%80%9CSe%20o%20material%20n%C3%A3o%20estivesse,de%20um%20projeto%20de%20pesquisa. Acesso em: 27/09/2022.

[6] Disponível no seguinte link: https://www.musindioufu.org/euilumino . Acesso em: 27/09/2022.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução Caverna kamukuanká (MS). Foto: Pedro Biondi/ Agência Brasil, 2017. Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/turismo/2017/09/1922248-veja-cinco-sitios-arqueologicos-para-conhecer-no-brasil.shtml

 

 

 

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