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Humanidades e dissonâncias

Sobre a derrota e “Democracia em vertigem”

Para Ana Paula Dayreel

Faz alguns dias, Ana, uma ex-aluna, escreveu para que eu compartilhasse com ela alguma impressão sobre o documentário “Democracia em Vertigem” (2019, disponível na Netflix), que a teria emocionado bastante. Atendendo o seu pedido, acabo de assistir ao filme no qual a história recente de nossa experiência política é contada junto à história de Petra Costa, diretora do filme.  Uma euforia e uma esperança triste me motiva, junto ao pedido de Ana, na escrita deste ensaio. Trata-se, portanto, de um texto precipitado e afoito, no qual de forma muito breve eu explicito a razão pela qual o documentário de Petra se torna necessário àqueles que, como eu, se sentem derrotados desde 2016.

“Em curto prazo, a história é feita pelos vencedores, que talvez consigam sustentá-la também em médio prazo. Mas ninguém a domina em longo prazo; eis um axioma da experiência que sempre se confirmou.”[1] São essas palavras do historiador alemão, Reinhart Koselleck, que vejo o documentário materializar através das sequências de imagens e depoimentos das derrotas que nossa democracia sofreu desde o “impedimento” de Dilma Rousseff à vitória de Jair Bolsonaro à presidência.

A proposição de Koselleck é bastante simples. Segundo o historiador, há um dualismo responsável pela pulsão do movimento histórico: a dialética entre “vencedores” e “vencidos”, no qual os últimos seriam definitivamente responsáveis pelas mudanças e transformações históricas. Em curto e, talvez em médio prazo, os vencedores e os historiadores dos vencedores conseguiriam sustentar uma determinada realidade com bases assimétricas e violentas de poder. Mas a longo prazo (ou em médio) a manutenção dessas estruturas torna-se difícil. Isto ocorre porque as frustrações em torno das expectativas outrora projetadas aparecem mais precisamente bem como se tornam visíveis as contradições dos vencedores para alcance do poder que julgam ter sob controle. O acúmulo de decepções é a experiência primária do derrotado. Como as coisas não aconteceram como desejado cabe a ele à reflexão sobre seu fracasso e à proposição (combativa) de novas possibilidades – (mas isso só ocorre se o derrotado não for tomado por um otimismo ingênuo ou um pessimismo paralisante). Koselleck sugere ainda que as narrativas históricas são fundamentais para essa rearticulação, quando os historiadores (não apenas os profissionais) dos derrotados que vão de Tucídides a Marx realizam a história pelo prisma dos vencidos. A “derrota contém um potencial inesgotável para a aquisição do conhecimento”, pois de sua disposição conflitiva e da reescrita das narrativas visualiza-se outros cenários possíveis imprescindíveis à mobilidade da história.[2]

Essa compreensão de Koselleck sobre a história se aproxima da “história à contrapelo” do pensador alemão Walter Benjamin. As mudanças históricas estruturais dependeriam de uma economia sentimental capaz de pôr “…incessantemente em questão cada vitória que couber aos dominantes”[3]. Entre os sentimentos desta economia sentimental benjaminiana, estaria presente o ódio, capaz de afastar os homens de uma empatia ontológica que os levaria ao conformismo. O ódio a partir de Walter Benjamin induziria a comportamentos capazes de acolher e repercutir perspectivas denegadas e dissonantes. “Ele está assentado em outro sentimento de base, o amor aos vencidos, esquecidos e silenciados”[4]. O documentário de Petra é a repercussão deste exercício narrativo que a motiva a contar a história da nossa democracia pela perspectiva dos vencidos como reação odiosa à parte de sua família comprometida historicamente com os vencedores.

Curioso observar, que não por acaso, o documentário acolhe tantas vezes a tão cobrada autocrítica do Partido dos Trabalhadores manifestada, por exemplo, na palavra “arrependimento” que sai da voz rouca do presidente Lula por aquilo “que faltou fazer”. Não deixa de ser impressionante também a tranquilidade com que Lula toma a decisão de deixar-se prender a fim de “transferir a responsabilidade” do poder para o juiz que o queria (e hoje precisa se haver com ele).

Sobre Dilma, foi bonito confirmar na sequência de seus depoimentos, que ela não teve medo de perder o poder que nunca quis, deixando ruir a tão necessária coalização para governar. Há quem denomine esta decisão “incompetência”. Mas, essa escolha expressa a coragem na qual a maior dignidade da vida democrática é saber viver a derrota e o risco próprio a ela. O momento mais importante do enredo para mim, no entanto, foi o encontro da mãe de Petra com Dilma, mulheres de muitas semelhanças. O encontro deixou ainda mais claro como a primeira presidenta de nossa história era uma necessidade para presos, desaparecidos, torturados, mortos, silenciados. E com isso torna-se fácil visualizar que nunca foi ocasional sua sucessão pelo voto popular por um entusiasta de seu torturador.

“De onde tirar forças das ruínas e começar de novo?”,  pergunta Petra melancolicamente ao final de seu documentário.  Da derrota. Da história que se conta a partir dela. E da arte que nos impacta a despeito de nossa vontade.

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Notas:

[1] KOSELLECK, R. “Mudança de experiência e mudança de método. Um esboço histórico-antropológico.” In.: Estratos de Tempo. Op. cit, 2014, p. 63.

[2] Idem, p. 72

[3] RANGEL, Marcelo de Mello. História e Stimmung a partir de Walter Benjamin: sobre algumas possibilidades ético-políticas da historiografia. In.: Cadernos Walter Benjamin, N. 17. Julho a Dezembro de 2016, p. 169.

[4] RANGEL, Marcelo de Mello. Rehistoriciação da história, melancolia e ódio. In.: BENTIVOGLIO, Julio. & CARVALHO, Augusto. (Org.). Walter Benjamin: Testemunho e Melancolia. Serra: Editora Mil Fontes, 2019, p. 113.

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Imagem: Reprodução.

 

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