HH Magazine
Humanidades e dissonâncias

Pai, parece o fim do mundo!

Para as mulheres e os homens, cujo ferro tem faltado ao sangue.
Este texto é uma reação ao documentário O amigo do rei (2019) de André D’Elia.

Este na foto é meu pai. Lembro do dia quando trouxe reveladas as fotografias, nas quais me mostrava orgulhoso o tamanho das rodas e pás dos caminhões que operava na mina. Trabalhava na mineradora Samitri, empresa que pertencia ao grupo Arbed, de Luxemburgo, controladora da siderúrgica Belgo-Mineira, comprada pela Vale em setembro de 2000. Essa adquiriu 51% do capital da Samarco (que pertencia à Samitri), empresa especializada na produção de pelotas de minério de ferro. A Samarco possuía ainda um mineroduto com 396 quilômetros de extensão e um terminal de embarque de minério na Ponta do Ubu, Espírito Santo. Na mesma negociação, a Vale vendeu, por cerca de US$ 8 milhões, 1% do capital da Samarco ao grupo australiano BHP, que já detinha 49% da empresa. A mesma Vale, Samarco, BHP dos crimes sócio-ambientais Mariana e Brumadinho.  Mas tudo isso foi depois do meu pai se aposentar e morrer.

Vendo essas fotografias, eu me recordo das viagens entre Mariana e Catas Altas. Eram os anos 1990.  Eu me lembro daquelas tubulações grossas e verdes no caminho. Nós no Chevette azul e meu pai a me mostrar a mina e a barragem. “Pai, parece o fim do mundo! É marrom e triste.” Mas ironicamente era a Mina da Alegria. As barragens de Fundão, o complexo de Germano.  Meu pai, um operário assalariado quase clássico dos anos 1980 e 1990, sindicalista e lulista, mostrava-me orgulhoso o resultado da força de trabalho que vendia mediante alguns direitos trabalhistas (à época existentes) com os quais me criou.

Após 05 de novembro de 2015, essas lembranças ganharam uma tristeza maior que me acompanha de forma permanente e que o documentário O amigo do rei despertou. Quando a barragem de fundão rompeu, levando uma destruição exponencial que, de modo algum, acabou; parte da minha vida foi dedicada a atividades que me colocaram em contato com o sofrimento ao qual os diretamente atingidos estavam expostos. Falar dessa experiência é  ainda um processo difícil, cujo conforto ainda não encontro na linguagem. Embora tente escrever sobre (como já fiz em outra ocasião nesta coluna), sinto que estou longe de apresentar algo que me dê um mínimo de alívio e desabafo. Sei, porém, que a mais dolorosa das experiências foi em uma audiência pública em 15 de dezembro de 2016 quando se discutia o possível retorno da atividade mineradora da Samarco a partir de um “novo” sistema de disposição de rejeitos utilizando a Cava de Alegria Sul. Nada novo. Só mais uma barragem temporária. Naquela ocasião, a Empresa, poder público, comerciantes faziam seu papel defendendo o progresso que ainda os há de matar, mas que antes matarão outros. As poucas vozes dissonantes e corajosas que alertavam para os riscos da retomada das atividades tal como planejado pela Empresa – professores, ambientalistas, os próprios atingidos, movimentos sociais – eram vaiados e ignorados por mais de dois mil trabalhadores uniformizados convictos de que minerar era a única “dignidade” possível. Eu tenho ainda pesadelos com aquelas vaias.

Rever essas cenas no documentário me quebraram. Eu me lembro do meu pai nas suas botas e no uniforme azul e fico imaginando que opinião e que postura teria tido nesse cenário. Teria ele colocado sua esperança em um lugar seguro? Ou teria, como um trabalhador da lógica neoliberal contemporânea, perdido e aberto mão de sua esperança, deixando seus sonhos do tamanho do trator?

Mas agora, importa mais os vivos. O depoimento de Ailton Krenak é, dentre todos os reunidos no filme, o mais cortante e mais significativo cuja resposta é dada a quem tem ouvidos para tal:

Quando a gente tiver acabado com todos os rios e com toda a possibilidade de criar histórias, aí nós vamos estar todos dominados. Talvez a gente vá ser ótima mão de obra para as mineradoras: um monte de gente burra, sem história para contar… pode trabalhar para as mineradoras. Um programa legal. Escravos, né?

A fala sarcástica é reveladora porque, embora pareça oferecer um prognóstico para o futuro, tematiza nosso passado e nosso presente. O fim dos rios é realidade e metáfora a partir da qual Krenak fala sobre nossa incapacidade de se relacionar com o mundo para além da técnica. Ele fala sobre a perda da capacidade de imaginar e tecer outras realidades para além do projeto econômico extrativista e predatório que chamam desenvolvimento. Gente burra. Gente sem história para contar. É nisso que o ocidente (com “o” minúsculo) se transformou. É disso que Minas nasceu.

O que Krenak alerta – ausência da imaginação histórica, ausência de vida – tem exemplos variados ao longo do documentário. Mas um em particular me chamou atenção. Trata-se da cena na qual o deputado Rogério Correia aparece comentando os projetos que discutiam a legislação ambiental para a atividade mineradora e que resultou no PL 3676/2016  e na Lei 23291/2019 que institui a política estadual de segurança de barragens (e que acabou por flexibilizar a legislação). No que parece ser seu gabinete, atrás de Rogério está um passado que como um fantasma nos assombra. Num quadro grande vemos uma pintura: um escravo e sua peneira, costas abaixadas minerando ouro. Um escravo minerando. Esse quadro, metonímia da “Minas do Ouro”, está ali para atestar nosso desapego pelo futuro.

A imagem da Minas colonial imponente de trens, bons queijos, montanhas, gente simples que preenche nossa consciência histórica obscurece uma ode à lógica colonial. Os casarões, igrejas e calçamento que preservamos pelo seu valor artístico, cultural, religioso e patrimonial; a imponência disto que chamamos “cidades históricas” nos faz esquecer de que a lógica colonial foi a responsável pela estruturação de uma sociedade escravista. Não apenas uma sociedade de escravos, mas escravista: aquela cuja organização do imáginário e do entedimento do trabalho e suas relações se organiza pela exploração –. Mas vejam bem, eu não estou usando esse exemplo para personificar em Rogério Correia o problema. A cena do quadro que acompanha a fala do deputado é comum Minas à fora, casas a dentro. Ela é a naturalização de relações de trabalho opressoras e assimétricas, que emolduramos, poetizamos e, assim, esquecemos dos corpos que calçaram cada uma das pedras-sabão na qual pisamos e do percurso do ferro até nossos telefones.

A realidade de Minas Gerais, com suas quase 700 barragens, anunciando o fim do mundo, e um povo que, desacredita profundamente em outras possibilidades de renda e felicidade, é um exemplo dessa sociedade colonizada e escravista que ganha hoje outra roupagem. Outros nomes. Mas a história é a mesma daquela do ouro que fez a revolução industrial, da qual ainda participamos oferecendo commodities. Tem um passado vivo nos rasgando à medida que dinamita a montanha. Minha história, a qual não consigo exorcizar, é um exemplo disso. O desconforto que as fotografias do meu pai me trazem revelam esse passado mortificador atuando e se presentificando. Meu pai operador de máquinas de mina de minério de ferro. Meu avô garimpeiro. Meu bisavô, primeira geração de libertos, meu tataravô, escravo. Escravo de mina. Falta-nos ver – junto desse passado íntimo ancorado em ouro, ferro, cruz e sino – os rios que secam, as montanhas que desaparecem e as histórias que morrem com a violência que orienta nossas escolhas de consumo e de sociedade que aprendemos a (des)imaginar como única possível.

 

“(…)O maior trem do mundo
puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
engatadas geminadas desembestadas
leva meu tempo, minha infância, minha vida
triturada em 163 vagões de minério e destruição. (…)”

Carlos Drummond de Andrade

Imagens: Acervo pessoal.

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