HH Magazine
Humanidades e dissonâncias

Aprendizado de amor e de morte

Cena do Filme: A morte cansada (Der müde Tod). Fritz Lang, 1921

Dedicado aos alunos e alunas da disciplina: MPB, contracultura e história do Brasil: o que pode a canção?

 

Na beira do mundo
Portão de ferro, aldeia morta, multidão
Meu povo, meu povo
Não quis saber do que é novo, nunca mais

Os povos. Clube da Esquina. 1972 [1]

 

“Acabamos de saber que ‘Vingança’, essa magnífica interpretação de Linda Batista, possui o dom de preparar o clima para a morte. Primeiro uma moça ligou a vitrola e deixou o disco ‘Vingança’ tocar, até que, influenciada pela música, abriu o bico do gás e esperou que a morte terminasse com a tristeza de sua vida. Agora soubemos que um rapaz, ainda moço, abandonado pela namorada, que fugiu com outro para Pernambuco, fez o mesmo gesto com a mesma música. Será que ‘Vingança’ provoca o estado de espírito próprio para o suicídio? Se assim for, teremos o próximo carnaval muito desagradável”[2]. Esse trecho é de um jornal do ano de 1951 e relata suicídios que teriam se desdobrado a partir de uma das principais canções de Lupicínio Rodrigues regravada por Jamelão em 1972. Que poder é esse que a arte exerce sobre nossos corpos? Que força é essa do amor de convocar à morte? Que intimidade existe entre os três?

Quando decidi em 2017, depois de velar um morto, escrever um livro sobre alguns discos brasileiros de 1972, eu não sabia bem o que estava fazendo. Mas estava convicta de que o exercício convocado por Hans U. Gumbrecht, tão presente na minha formação, tinha tudo a ver com aquela decisão. Já faz tempo que Gumbrecht tem nos provocado a estabelecermos uma relação com a literatura (mas não somente) que extrapole as leituras desconstrucionistas e os estudos culturais. Não se trata de uma negação a essas correntes, mas de um convite para corrermos algum risco ao enfrentarmos os textos literários. Ele tem defendido uma leitura que busca a Stimmung, palavra alemã de difícil tradução. Poderíamos traduzi-la como humor, aquele estado de espírito interior, difícil de descrever, precisamente solitário. Pode-se também traduzir a palavra por atmosfera, algo que está no nosso entorno, exerce influência sobre nossos corpos, pode ser intuída coletivamente, mas não pode ser posicionada de forma objetiva. Em alemão, o termo reúne as palavras Stimme (voz) e Stimmen (afinar um instrumento musical). Gumbrecht nos convoca a um exercício que desafia nosso poder de discernimento, a ocupar aquele abismo no qual a linguagem e sentidos plenos não são capazes de nos confortar. Mas, no qual estamos profundamente afinados com a vida e, por algum ângulo, sendo observados pela morte.

Eh! Minha cidade
Aldeia morta, anel de ouro, meu amor
Na beira da vida
A gente torna a se encontrar só

É o componente físico, o poder da arte na afetação de nossos corpos que está em questão. Gumbrecht está certo de que a literatura tem um poder semelhante ao da música: nos toca como que de dentro [3]. Por isso, ele define uma leitura da Stimmung como “prestar atenção à dimensão textual das formas que nos envolvem, que envolvem nossos corpos, enquanto realidade física – algo que consegue catalisar sensações interiores sem que questões de representação estejam necessariamente envolvidas”[4].

Esse exercício está relacionado a um projeto maior do filósofo de fazer dos “efeitos de presença” um objeto das humanidades [5]. As coisas estariam já simultaneamente dispostas para nós e, nossos corpos seriam os primeiros a percebê-las e a “compreendê-las” como são. A insistência de Gumbrecht nos “efeitos de presença” pode ser vista também como um gesto de resistência [6]. Ao longo da modernidade, a tradição ocidental privilegiou as esferas do sentido na análise das experiências estéticas. E ainda hoje o tem feito.  Isso significa dizer que aqueles elementos que podem ser explicados mediante uma narrativa foram priorizados como objetos por excelência do humano. Daí o abandono do poder do corpo como dimensão fundamental ao estar-no-mundo. Daí sangue, suor e carne terem sido substituídos por silício.

A hipótese de Gumbrecht é: formas específicas de narrar (ou de cantar) evocam atmosferas específicas. No caso dos humanistas interessados nesse percurso, trata-se de entregarem-se às atmosferas e aos humores despertados pela arte. Uma escrita construída a partir desses elementos, aposta Gumbrecht, pode tornar possível (mas sem garantias) encontrar realidades do passado que continuam a desempenhar efeitos sobre nós ainda que não possamos claramente defini-los. Nesse caso, é o passado ele mesmo que nos toca, não sua representação. Eis aí a diferença de uma experiência estética para uma experiência histórica. A segunda produz consolo, que se desdobra da produção de sentido. A primeira é desconforto. É como estar possuído por um demônio que a narrativa e a razão não têm poder de exorcizar.

Escrever a partir dos efeitos de presença, dos humores e das atmosferas que nos tomam por dentro. Eis então o que me arrisquei a fazer quando comecei o livro sobre 1972. No começo, meu “objeto” eram apenas as canções dos álbuns lançados naquele ano. Procurava e procuro escrever sobre as experiências para as quais aquelas canções me jogavam/jogam. Procurava e procuro também tornar mais palatável aquilo que José Miguel Wisnik escreveu ao tematizar a música contemporânea como espaço de simultaneidades que ressoa a unidade do mundo, mas que também se apresenta como “sinfonia inacabada da angústia e da impossibilidade, a neutra loucura e a dor de um mundo sem promessa (solidão que muito da música contemporânea capta e devolve, intencionalmente ou não, como projeto ou como sintoma)”[7]. As músicas de 1972 estariam então a nos mostrar futuros desfeitos, aqueles sonhos retraídos da geração de 1968, a solidão dançando em nós, a tristeza de um mundo em silêncio sem Jimi Hendrix e Beatles, as experiências de chumbo. Canções de protesto. Canções de exílio. Canções do fim do sonho. Canções de medo. Canções de resistência. Sambas-canção tristes. Sambas de malandro tristes. Canções de amor. Canções.

Ah, um dia, qualquer dia de calor

É sempre mais um dia de lembrar
A cordilheira de sonhos que a noite apagou

Mas isso era pouco. “Ver a ciência através do artista, a arte, porém através da vida”[8]. Nietzsche sabia o que dizia. Quando contei para um amigo sobre o livro de 1972, ele compartilhou uma história vivida por sua mãe e por sua tia que se passara naquele ano. Não a anteciparei aqui. Por ora, basta registrar que fiquei fascinada com o que “via” na medida em que ouvia aquela narrativa e como ela me trazia uma sensação semelhante a algumas daquelas canções. Decidi, então, que procuraria outras histórias daquele ano vividas por gente comum. E daí, ao encontrar outros relatos, o livro ampliou-se para histórias de amor, silêncio e morte.

A razão pela qual escrevo sobre um livro ainda inacabado é uma satisfação que preciso dar e um agradecimento a fazer aos alunos e alunas com os quais compartilhei pela primeira vez este projeto em uma disciplina. Finado o ano letivo e lidos os ensaios que produziram, senti uma (des)confortável sensação decorrente dos riscos intelectuais e existenciais que vivenciamos juntos. Ao se abrirem para aquelas atmosferas que as canções instauraram sobre nossos corpos, eles trouxeram suas avós, seus pais, seus discos favoritos, seus livros, seus amigos, seus amores doloridos, o misto de raiva e desesperança que é viver o Brasil de 2019…  e jogaram sobre mim, assim como joguei sobre eles, uma responsabilidade: o que a gente faz com isso agora?

*

“Grave-me,/ como selo em seu coração,/ como selo em seu braço;/pois o amor é forte, é como a morte!/ Cruel como o abismo é a paixão/ Suas chamas são chamas de fogo, uma faísca de Deus”[9].  No livro bíblico dos Cânticos, atribuído ao Rei Salomão, um mistério é revelado através da canção. Melodia e poesia erótica precisam que o amor é tão forte quanto à morte; a paixão cruel como o abismo – em outras traduções também se encontra: a paixão é tão cruel quanto à sepultura. Arte, amor e morte. Eles podem atuar como espaços culminantes de repercussão daquilo que somos e do mundo que é o nosso. Ou podem operar como espaços de afastamento e pausa do mundo, uma experiência encantada, que nos afasta da necessidade de sentidos. Mas, são, sobretudo, como meu amor me ensinou, espaços no qual se é em parte repercussão de si mesmo e do mundo que é o nosso, em parte encontros com outros mundos possíveis que o passado e suas atmosferas tornam possível alcançar. O amor e a arte nos permitem morrer: levam a um agudo deslocamento de nós mesmos, deixam mundos entrar e outros retroceder. Quanto mais mundos uma obra de arte abriga, mais ela irá nos requisitar. Daí vem a necessidade de ouvir aquela canção quando ela se apresenta para nós, daí o poema ser registrado no caderno ou enviado em alguma carta, daí o livro estar repousando na cabeceira, daí o amor que vira tema da canção e do poema… Estes objetos materiais que chamamos arte estão a nos dizer que compartilhamos com eles e a partir deles alguma experiência singular, uma experiência de morte (existencial, e por isso, fundamental à vida) . É preciso aprender a ouvi-los nos efeitos produzidos em nossos corpos, e assim, reconquistamos a nós e a nossos antepassados.

E eu reconquistado
Vou caminhando, caminhando e morrer
Perto de seus olhos
A gente aprende a morrer só
Meu povo, meu povo
Pela cidade a viver só

____________________________

Notas

Imagem: Cena do Filme: A morte cansada (Der müde Tod). Fritz Lang, 1921.

[1] Milton Nascimento e Márcio Borges.

[2] GONZALES, Demóstenes. Roteiro de um boêmio, vida e obra de Lupicínio Rodrigues. Porto Alegre: Sulina, 1986, p.39-40.

[3] GUMBRECHT, Hans U. Atmosfera, ambiência, Stimmung. Sobre um potencial oculto da literatura. Rio de Janeiro, Contraponto/PUC-Rio, 2014, p. 13.

[4] Idem, p.  14.

[5] GUMBRECHT, Hans U. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro, Contraponto/PUC-Rio, 2010.

[6] GUMBRECHT, Hans U. Nosso amplo presente – o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

[7] WISNIK, José Miguel. O Som e o sentido: uma outra história das músicas. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 213.

[8] NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das letras, 1992.

[9] Cânticos 8:6.

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