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Proust Suburbano

Sobrevoar o deserto – uma leitura de “Algo chega tarde demais”

 

Sobrevoar o deserto / não é leve / nem menos penoso /

do que caminhar / sobre o deserto. // Sobrevoar o

deserto / é sobre / olhar de cima / a si mesmo só /

sozinho / solitário / único / singular. // As asas do avião

/ a imitação. // E a sombra ínfima / o grão de areia. // Eu

nenhum / a explosão. // Sobrevoar o deserto / não tem

fotografia aérea. / De câmera clara / desprovido / não

tem luz / só tem balão. // Sobrevoar o deserto / é falar

poemas / no rádio / tal qual Ricardo.

(poema para Ricardo Pedrosa Alves)

 

Não sei se o que escreverei será o suficiente, nem o bastante. Escrever é sempre parcial, faltante. Não sei se terei fôlego, se atravessarei a piscina de uma borda à outra, tendo a poesia de Ricardo Pedrosa Alves como miolo. Não sei se chegarei tarde, cedo ou à hora. Sei que essa ideia de hora tem me rondado já tem um tempo. Fui reler A Hora e a Vez de Augusto Matraga, do Rosa. Fui reler A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Fui assistir a aulas.

Sei que vou escrever me incluindo. Não tenho como me ausentar. Os poemas de Algo chega tarde demais (Medusa, 2020) me sugeriram, assim que os comecei a ler, os ler em voz alta, com os dedos de uma das mãos na boca.

Acabei de pensar em uma frase que já usei em um conto meu: quando desci não parecia ser assim tão longo.

Estou lendo os textos do mais recente livro de Ricardo Pedrosa Alves em voz alta e segurando a boca, mas de modo a não impedir que o som das palavras saia, nem que a boca não articule. Uma experiência de segurar a palavra poética do texto quando ele escapa dito. Será uma doideira isso?

Qual é a hora agora? Não é a hora de a onça beber água. É a hora da palavra. Ler, segurando a boca, pode ser tentar pegar o fôlego que brota sugerido da palavra poética dos textos, quase sem pontuação, de Ricardo.

Não sei se tenho pulmões para tanto. Mas gosto de pensar que mergulho e nado submerso. Sabe atravessar a piscina debaixo d’água?

Quantas palavras cabem numa piscina olímpica? Quantos metros cúbicos de palavras e em que profundidade tem essa piscina Algo chega tarde demais?

A capa do livro figura chuva, capa, guarda-chuva, homem de costas, encapuzado e com um cão. Mostra-se e não se mostra, deixa-se e não se deixa ver. Sugere sonho, sugere alguma espécie de surrealismo.

Vou começar a descer.

Que horas são?

Capa do livro: “Algo chega tarde demais”, de Ricardo Pedrosa Alves, Medusa, 2020.

 

Ocorre-me atentar para os usos da palavra nos textos de Ricardo. Pegar a palavra. Mas sem mãos? Com outras palavras.

Algo chega tarde demais me sugere ficar preenchido da palavra. A palavra presentifica o que falta, o que era para ter chegado antes. A palavra se põe no lugar. Os usos dela.

A hipótese que faço é de que estamos diante de um livro que nos impõe sermos tomados pela palavra. Mas não porque logicamente o material é o verbo, por estarmos frente a uma arte da palavra, feita por meio de palavras, por ser de poesia verbal do que se trata.

Somos tomados pela palavra porque Ricardo faz usos dela, da palavra, de modo muito substancial, muito acalentado, muito pleno. A palavra, em Algo chega tarde demais, é cheia, ela é transbordante sem excesso e em precisão, em medida certeira e econômica. São palavras que dão prazer em tê-las na boca, ainda que o discurso em que elas estão, muita vez, tenha aura de tristeza, angústia, opressão, adversidade. Ainda que tenham chegado tarde demais.

Chegar tarde demais é como se não mais valesse, como se não adiantasse, é como se fracassasse.  Mas não é. O efeito de fracasso pode haver, mas em acerto de realização compositiva.

Faço a hipótese de que as palavras dizem do lugar nenhum da poesia enquanto utilidade. Não são mais úteis. E a poesia, Ricardo sabe, não é útil. Útil é a guerra. Úteis são as atividades econômicas. Úteis são os genocídios, as atividades essenciais.

Na parcialidade, na insuficiência, penso em individualizar esse geral de que falo até agora. Penso em particularizar o que digo, penso em particularizar meu nado atravessado.

Em todos os casos, a palavra em Ricardo é palavra política. Tem esse escopo, tem essa substância, tem essa consistência, tem essa matéria.

O exemplo maior da palavra política do (e no) livro é, talvez, o poema “Vê-lo carregado em pelo…”, que trata de Lula ou tem Lula como núcleo.

Ricardo Pedrosa Alves também fala coisas políticas como: “escrever as palavras de neblina sépia suas tatuagens cegas na retina”.

Faço outra hipótese: parar de falar e deixar Ricardo falar, porque as palavras, em Algo chega tarde demais, falam, porque no livro mais recente de Ricardo Pedrosa Alves estamos diante de discursos, ainda que escritos, orais. Não é o “eu” quem fala, embora ele esteja ali, discorrendo. São as palavras que dizem o “eu” ou do “eu”.

As palavras falam coisas outras coisas políticas como “caiu lona no chão”, “aqui só mói carne”.

Há uma distância entre o que se fala, do que se fala e quando se fala em Algo chega tarde demais, talvez por isso eu sobrevoe o deserto. Talvez por isso eu mergulhe em águas tão fundas, ainda que margeadas.

O que fazem falar os poemas e o que falam os poemas? Que retórica? Que poética? São essas as perguntas. Na junção retórico-poética, desolação? Discrepância? Delay? Descompasso? Interstício?

Qual o tempo ou quais os tempos que as falas de Ricardo têm? O que é esse algo que chega depois, que chega tarde, quando não se esperava mais por ele? Atualização talvez do desengano do mundo, do mundo às avessas, do teatro do mundo, da vida é sonho.

Quais são as palavras?

Os poemas, em Algo chega tarde demais, são variados, de extensões e tamanhos variados, em formatos variados, mais ou menos longos, mais ou menos curtos; poemas em verso, poemas em prosa, poemas sem nome ou título, tendo, todos, como inicial a letra inicial, ou o primeiro termo, em maiúscula e em negrito, marcando a delimitação de cada um dos textos.

Ricardo Pedrosa Alves monta na derrisão no primeiro poema “Montaria…”, enquanto que no último (“Esta prisão do sentido…”) se abaixa ao solo. Sobe para descer e cair até “que não se para nem se quer parar de cair”. No miolo desse processo contínuo de queda, há junho dos protestos, o platô e as curvas, por exemplo.

Até a página 33, ao terminar o poema Estão, com o primeiro nome do autor, o livro mais recente de Ricardo Pedrosa Alves é um. Depois disso, outro. Mesmo sem marcação, o livro acaba por se dividir em duas partes. Na primeira, o “eu” é atravessado pelas coisas. Na segunda, as coisas atravessam o “eu”. As duas partes comporiam os movimentos em que os textos formam corpo e poema.

Entendo essas duas partes como sendo sobrevoo e mergulho. Sobrevoo do corpo e mergulho no poema.

Cândido Rolim, que assina o Posfácio de Algo chega tarde demais, também vê duas partes dividindo os textos, assim como reconhece haver o que chamo de poética da queda. Cândido Rolim, inclusive, esmiúça com mais argumentos e com maior rigor essa questão da queda na feitura do livro de Ricardo, a questão da relação corpo / poema.

Quando não cai, nem está caindo, a palavra poética do livro anda sobre um cemitério índio, anda sobre abatidos, sobre caídos. Cair pode ser lido como ser derrotado, ter perdido a resistência, como jargão, ou simplesmente léxico, de subversivos presos (e torturados e ou mortos) por regime ditatorial.

Por fim, Ricardo Pedrosa Alves, em Algo chega tarde demais, “penetra surdamente no reino das palavras”, chega tarde, talvez, mas perto das palavras, contempla as palavras. “Cada uma / tem mil faces secretas sob a face neutra / e te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível que lhe deres: / trouxeste a chave?” [1]

 

 

 


NOTAS

[1] ANDRADE, Carlos Drummond de. “A procura da poesia”. In: A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945.

 

 

 


Créditos na imagem: reprodução. Foto: Gruet Florian, 2019.

 

 

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