Sons venezuelanos!

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Caracas, 08 de dezembro de 18: Fui levar à Negrita no seu passeio matutino na passarela do condomínio. Embora goste de brincar com todo mundo e pareça com uma filhota, ela está mais tranquila do que há dois anos. Uma vez o Ángel teve que correr e atravessar a Av. Lecuna tentando pegá-la depois dela perseguir outro cachorro sem sequer reparar nos carros! Em outra ocasião começou a latir para outro cachorro, ele correu assustado para o estacionamento, ela foi persegui-lo e todos nós tivemos que correr atrás deles. Foi um espetáculo mesmo! O pior foi que o cachorro se perdeu e a dona dele ficou brava conosco. Então, deixar solta à Negrita nos passeios sempre havia sido um dilema. No entanto, desta vez eu reparei que ela já não corre como uma doida; ela só late, tenta perseguir os outros cachorros, olha para a gente e aí fica quietinha. Acho que tem aprendido alguma coisa. Risos.

Ficando de olho na Negrita, escutei alguém me chamando. Era o Pedro, um dos dançarinos dos Vasallos del Sol, um grupo de música tradicional venezuelana. A última vez que o vi foi na festa de Tamunangue[1] organizada pelo Enano e a família de José Alejandro há quase quatro anos. Hoje ele estava deixando o seu filho no ensaio com a Sinfônica Infantil de San Agustín para logo depois ir ensaiar com um grupo de música popular venezuelana na qual ia estrear como cantor. Fiquei muito curiosa! Nunca imaginei o Pedro como cantor.

Ele estava com um pouco de pressa e despediu-se ao jeito venezuelano, com um abraço bem apertado. No entanto, antes de ir embora me convidou para o show em que ia cantar nos espaços abertos do Teatro Teresa Carreño. Eu fico feliz com essas notícias nas quais as pessoas próximas aventuram-se a explorar os seus sonhos em momentos tão difíceis no país.

Enquanto Pedro e eu conversávamos, a Negrita aproveitou para brincar com o cachorro de um vizinho. Quando a chamei, correu até mim e subimos para casa. Eu precisava fazer algumas tarefas domésticas, mas estava com vontade de dar uma volta pelo Teresa Carreño para “curtir” o ambiente natalino de Caracas.

Eu estou com tantas saudades do Natal do meu país! Na Venezuela, as festas de Natal são muito importantes e alegres. Acho que são equivalentes ao Carnaval no Brasil. Desde outubro e novembro você escuta os sons das gaitas zulianas e das parrandas nas casas, nas ruas, nos ônibus e no metrô. No entanto, este dezembro não tem a mesma alegria natalina daqueles que me recordo.

Depois de cozinhar o nosso almoço do final de semana (um arroz tipo chinês mesclado com vegetais e um ovo mexido), tomei banho e fui para a rua sozinha porque o Aquiles estava com preguiça “adolescente” e não quis me acompanhar. Saí de Parque Central e passei pelo Hotel Alba Caracas (o antigo Caracas Hilton) para chegar para o Teresa Carreño. Se bem o Hotel está funcionando, uma parte do prédio está “em remodelação”; aliás, fiquei surpresa quando reparei em que o acesso está restringido para as pessoas comuns e apenas podem entrar os militares, alguns funcionários do Estado e os hóspedes.

Caminhei pela Praça dos Museus e entrei no Eje del Buen Vivir, um espaço com pequenos botecos no ar livre, que comunica com o Teatro. Vários dos negócios no Eje estavam fechados. Minha expectativa de achar o ambiente natalino ficou frustrada quando vi a solidão nesses lugares que, em anos anteriores nesta época, sempre costumam ter muita vida por causa dos shows de gaitas e de parrandas que acompanham as feiras de venda de presentes, comida e artesanatos para o Natal.

Ao longe se escutava um som de parrandas. Meu coração bateu no meu peito cheio de emoções encontradas. Aproximei-me nas escadas que descem para o Teresa Carreño e que funcionam como gradas. Ali estava o Pedro! Que voz linda que ele tem, meu Deus! Que bom vê-lo e ouvi-lo cantar! Chorei de alegria, chorei de tristeza. Para xs venezuelanxs, os sons e a vida natalinos são tão importantes quanto a arepa, e ter a possibilidade de viver esses sons naquele momento era um motivo de gratidão para mim. No entanto, o cenário não deixava de ser desalentador. Havia poucas pessoas e elas não dançavam nem cantavam.

No público estavam vários músicos amigos: Ismael, o Enano, Chicho e a sua família… Gostei muito de encontrá-los. Ismael falou-me um pouco da situação da Marisela e da Amanda, maravilhosas cantoras da nossa música tradicional e grandes irmãs da vida. Elas, como muitas outras pessoas, foram embora do país.

A caçula do Chicho, que nasceu poucos meses antes de eu vir para o Brasil em 2017 e que eu não tinha conhecido até agora, ficou brincando comigo e converteu-me no seu veículo. Ela pegava minha mão para eu leva-la até o palco para ela dançar ali pertinho. Logo ia até onde a mãe para pegar um biscoito e voltava para o palco, e nesse trem estivemos quase todo o show.

Após o show acabar, por volta das 17 horas, o Enano e eu ficamos batendo papo e, como eu tinha trocado algum dinheiro em bolívares, eu o convidei para beber uma cerveja na Patana. Ele me falava com indignação da cumplicidade de alguns velhos guerrilheiros que ficavam calhados diante os casos de tortura e assassinatos que estavam acontecendo nos últimos meses. No fundo, uma música de salsa começou a tocar e eu fiquei feliz de viver novamente esses sons dos que sentia  falta enquanto estive no Brasil. O Enano reparou na minha alegria e perguntou:

Echamos um piecito, mi amor[2]?

 

 


NOTAS

 

[1] O Tamunangue ou “som de negros” é uma manifestação cultural do estado Lara, na Venezuela, que se realiza em 13 de junho de cada ano para comemorar o dia de Santo Antônio. É uma festa ritual que consiste numa dança de oito sons ou partes na que se canta e se dança ao santo negro: la Batalla, la Bella, el Galerón, el Yiyivamos, el Poco a Poco, la Perrendenga, el Galerón y el Seis Figuriao. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=XCSNS7H_jjE e também https://www.youtube.com/watch?v=fYSr1lNfJYw.

[2] “Echar un pie” é uma expressão venezuelana que significa “vamos dançar”.

 

 

SOBRE A AUTORA

Livia Vargas González

Venezuelana, militante feminista-marxista, filósofa e mestra em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade Central da Venezuela (UCV), é professora na Escola de Sociologia nessa mesma casa de estudos e, além disso, editora, formando parte do equipe editorial da Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes editoras da América Latina, bem como de El Perro y la Rana e Amalivaca Ediciones. O pensamento de Karl Marx, Jean Paul Sartre, Walter Benjamin e Daniel Bensaïd, fazem parte do seu repertório teórico fundamental, visando a construção de uma proposta teórico política que permita compreender e afrontar os desafios de nosso tempo. É autora do livro Entre libertad e historicidad. Sartre y el compromiso literario (Caracas, 2008), e de vários artigos acadêmicos e de divulgação.

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