“Ideias para adiar o fim do mundo” vem como um antimanual de teoria da história. É um texto que desaproxima e que interrompe as narrativas mormente reproduzidas na modernidade: as narrativas da comunidade. É a exposição, por assim dizer, de um arranjo teórico do tempo do comum hoje. 

Há uma forma primordial de contar e contar-se que nos ocupa desde há muito, uma linguagem colonial do mundo e do humano. O colonial como incentivador ou inventor de uma “mundanidade”, dirá Achille Mbembe. Essa linguagem (corporal) explicita de fato aquilo que Ailton Krenak denomina os subumanos: os indígenas, os outros, os pobres, os sem pátria, os negros. A leitura anticapitalista de Krenak, embora menos rebuscada que as leituras basilares aqui correlacionadas, tais como a de Achille Mbembe (Crítica da Razão Negra), introduzem de maneira indubitavelmente poética a dimensão temporal do problema do capitalismo. A produção de um excedente humano, frequentemente excedente para a morte, é aqui reportado como aquele mundo do sonho, aqueles que podem contar mais uma história. 

A comunidade de Ailton Krenak não quer encontrar as nossas semelhanças apesar de tudo. Disso ela não necessita. A comunidade há de ter a maior contiguidade possível ao revelar a Terra como substrato do ser, ali onde ele sempre aparece. A Terra é nosso comum: habitamo-la enquanto ela deve nos habitar. O discurso ecológico (ainda que o termo não dê conta da questão) é flagrante. Aquilo que inventamos como “Antropoceno”, isto é, a naturalidade de nosso corpo “humanidade” na paisagem natural, remete à prontidão de uma narrativa capitalista do mundo e da existência. É uma Era – dimensão temporal eminentemente humana. 

E se pudéssemos pensar de outra maneira as formas de contar e os enunciados do mundo? E se não colocássemos fim a uma narrativa? Walter Benjamin percebeu exatamente isso em O Narrador. O romance moderno deve mesmo ter inventado a teimosia do “desfecho”. Ainda com o célebre pensador alemão:

Comparados com a história da vida orgânica na Terra […] os míseros 50.000 anos do Homo Sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas. Por essa escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último segundo da última hora (BENJAMIN, 1987, p. 232)

Acreditamos ser viável pensar que o tempo da pandemia, longe de proclamar “o fim do mundo”, apareça como essa fina dimensão do tempo da Terra de que Benjamin e Krenak nos alertam. Cabe-nos o esforço dificílimo de imaginar tudo aquilo que não somos e que não nos compete enquanto cultura.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. Editora Brasiliense: São Paulo, 1987.

KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Companhia das Letras: São Paulo, 2019.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Despedida do dia em três tempos. Porto Alegre. Foto: Chronosfer.

 

 

 

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