Lançado em dezembro de 2022, o Extended Play intitulado “taheantah tri” é uma produção artístico‑literária experimental em que toco as raízes de minha família por meio de uma ambientação que (re)toma aspectos da literatura oral. As nove faixas que integram a obra reúnem escritos publicados por Xipu Puri na forma de poesias, contos e versos breves, além de trazer três canções – sendo uma dedicada a meu avô. A musicalidade, na forma de um experimentalismo imersivo, do acústico ao psicodélico, entra como um caldo que nutre e expande a narrativa, trazendo as dimensões que envolvem a poesia e a existência indígena do Puri.
A primeira faixa de “taheantah tri“, intitulada “ambonam“, traz o conto presente no livro “O Passarinho Que Viu O Vento“, lançado em 2022, no dia do equinócio de primavera no hemisfério sul. O livro traz uma narrativa em duas línguas (a Portuguesa e a Puri) com histórias distintas, que se desencontraram nos caminhos dos novos tempos que foram anunciados com o que por muito tempo ficou conhecido por “Descobrimento”. A invasão dos territórios a que chamamos de Pindorama, Abya Yala, mas que possui tantos outros nomes antes mesmo de arbitrariamente chamarem tudo de “América”, representou o início do fim de muitos mundos e o nascimento das sociedades que conhecemos hoje. A medida em que outros Povos foram consumindo nossos territórios, nossos corpos foram adoecendo, nossas línguas foram morrendo e nossos sonhos foram sendo varridos para outro espaço. O Brasil nasceu da queima de tudo que nos era/é mais sagrado. E ainda assim, alguns Povos, muitos Povos, mais de trezentos Povos indígenas resistem, dentro ou fora de seus territórios ancestrais, nas grandes e pequenas cidades, nas universidades, aonde quer que sonhamos em ver o urucum e o jenipapo, as cores, os cheiros, a força encantada de nossos conhecimentos tocarem para fazer nascer novos mundos.
“ambonam“, assim como todo o álbum em sua inscrição artístico‑literária é uma contação pindorâmica, enunciando alguns caminhos, sentidos, trazendo por meio de diversos campos semióticos a expressão da existência indígena do Puri em sua literatura, em estreita relação com a música. Foi a primeira faixa a ser produzida, após meu avô se encantar e surgir em meu peito o impulso que me levou a produzir a obra em seu conjunto. Quando o texto é renomeado para compor a nova produção, a própria narrativa do conto se expande, pois O Passarinho então se revela como o meu querido avô, que no meio de um canto, alçou seu voo no coração do tempo.
“Ô pena branca, vai para casa. O raio de fogo vai me curar. Trazer o fogo, esquentar a madeira, aumentar a chama, num cozinhar azul e vermelho. Essa nuvem traz a força da casa, queima as dores do corpo doente, corta a força do mau. Muita cura, cura, cura…” (Canto Puri).
A escrita e a produção de “manifesto” possuem como fundamento o pertencimento, a existência e a consciência histórica dos Povos Indígenas pelo mundo. É uma poesia de autoinscrição, auto‑história, de denúncia e renúncia ante concepções que instituíram imaginários, narrativas e políticas que sobre nós fez pesar uma sub‑humanidade que é e sempre foi alheia a quem somos. O título original do texto é “Manifesto pela Memória Indígena” e a faixa em “taheantah tri” é composta por elementos que trazem a ambientação de um encontro ao redor do fogo, com a presença de cantos, danças, outros animais não humanos, chuva e trovões. Os estalos das chamas queimando a madeira, como raios em contato com a terra, são como as raízes de pensamentos que dão força, sustento e sabedoria à nossa existência.
“Estão matando nossos parentes e o silêncio do Brasil é estarrecedor.”
Curiosamente, “guapo’y, brasil” está entre as faixas mais ouvidas de “taheantah tri“, embora seja também a mais triste. Confesso que até pouco antes de finalizar a produção do EP, eu me questionava sobre as impressões que algumas pessoas poderiam ter diante da reza, da procissão, dessa tradição… Mas, penso que partir do cristianismo para critica‑lo, evidenciando e denunciando, por meio das artes e da história, seus males e contradições na constituição dessa sociedade, é uma forma de tocar as raízes do Brasil. Sabemos que essa mesma tradição e suas ramificações estiveram lado a lado dos processos de invasão de nossos territórios e sociedades — e que os Povos pindorâmicos resistiram e resistem como a própria Terra para manterem vivos a esperança.
O título faz menção a um acontecimento histórico recente que ficou conhecido como “Massacre de Guapo’y“, mas que junto a tantos outros episódios, temos, diante de nós, incontáveis exposições do que foi e do que tem sido a história dessa nação brasil. Portanto, essa faixa melancólica expressa de algum modo um canto triste que emana das pedras, do ouro, da prata e da madeira das igrejas, das ruas e construções coloniais, dos rios empodrecidos e das montanhas cavoucadas aos montes… Esse canto, atravessado pela cruz, tem o poder de ultrapassar essa fé e tocar a memória dos filhos da terra, abrindo caminhos para que novas gerações instituam novos marcos, retomem identidades adormecidas e suas línguas ancestrais, que evocam outros mundos e sagrados.
Gosto da profundidade que alguns versos breves carregam e é nesse sentido que as faixas em sequência vão se juntando à narrativa presente na obra.
O Interlúdio do álbum literário “taheantah tri” é uma poesia breve que conta sobre um Passarinho que voou pelas costas da Terra e que viu a vibração dos Povos que são com Abya Yala.
“revoada” é uma canção dedicada ao meu avô. Quando eu a ouço, me lembro de seus dedos segurando as cordas do violão com destreza, extraindo do oco da madeira o som de canções de sua época. Mas, vovô não tocava só violão. O Seu José Ezequiel de Jesus era e sempre será conhecido como o Zé Passarinho. Aquele que incendiou nossos corações e as vidas de tantas pessoas com música. Tenho muitas lembranças marcadas com seu sorriso, seu carinho, sua simplicidade, sua gratidão. Se sou Puri, é porque ele veio, andou nessa terra e nos deu uma porção de sua vida. Existências Indígenas, a meu ver, são assim. Sutis e profundas como as raízes das árvores.
Quando comecei a tecer “revoada”, me vinham memórias de vovô me ensinando a tocar violão. Ele dedilhava muito bem, enquanto eu só aprendi a arranhar as cordas. Minha mãe diz que é bonito, mas eu acabei me tornando um poeta que sente muito. O legado das cordas na família perdura. E do canto também. Mas vovô só tocava, minha mãe só cantava, meu tio fazia os dois e eu ficava no meio.
Me alegro em saber que nossas memórias agora serão livro, serão ilustrações, serão poesias e serão canções. E me alegro muito mais em saber que muitos parentes desse conglomerado de Povos, Pindorama, saberão de ti, vô. “revoada” é uma faixa instrumental que poderia muito bem ter sido tocada por você. E como o senhor gostava de tocar só as melodias, eu fiz essa canção em sua homenagem, em seu grande voo para junto do mundo encantado.
“serpenteio” é uma canção instrumental inspirada no mito sobre a serpente de sangue, expressando o movimento de xamum (a serpente) sob(re)/com a terra e a relação de pertencimento dos Puri com o território de origem dos taheantah, nossos antepassados.
Concluindo a série de publicações sobre o “taheantah tri“, temos a faixa que intitula a obra, “retomada” e um ato final. “taheantah tri” reúne versos breves que me sobrevieram nos últimos anos, considerando o processo de retomada vivenciado por mim e minha família junto a meu Povo, os Puri. Costumo receber mensagens muito bonitas de parentes sobre alguns versos, ver performances, registros de sate fazendo artesanato e fico pensando em como esse sonho brotou em meu peito e ganhou vida no coração de outras pessoas. Por se tratar de um trabalho experimental, em que transito entre a literatura e a música, por ter sido produzido de forma independente (com as limitações que sei que ainda tenho), por ter nascido de uma força como se demandasse certa urgência, penso que talvez essa espontaneidade carregue um propósito…
“retomada” e “taheantah tri” são temas que versam sobre a importância do conhecimento de nossas histórias para a compreensão de quem somos como pessoas Indígenas. São faixas que dizem sobre movimentos que valorizam as memórias de nossas famílias e a reconstituição de nossos Povos no presente, tendo em vista as formas com as quais a sociedade brasileira foi se constituindo sobre nossos territórios, pois como canto em poesia, há quanto tempo não “querem varrer nossa origem indígena”?
Aos curiosos, o ato final, que encerra o álbum com o psicodelismo pindorâmico do artista Puri, é só o começo.
Créditos na imagem: Reprodução. Capa do Extended Play “taheantah tri”. Xipu Puri, 2022.
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