Ângela do Amaral Rangel

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Na escrita da História, muitas vezes nos deparamos com o problema das representações e das reminiscências da memória. O que quer dizer que, quando falamos a respeito das artistas brasileiras, estes dois aspectos devem estar sempre em observância – haja visto, por exemplo, o caso da pintora modernista Anita Malfatti o impacto da imagem de “sofredora”, “feia” e “mártir” à suas performances, memória e aos estudos realizados acerca de sua trajetória e obra. Mais uma vez, a semântica utilizada nas fontes é de fundamental importância à análise pois, muitas vezes, ela se reflete como uma forma de construção da memória em torno da artista. Para quem lê e/ou pesquisa estas fontes, é importante não abrir mão da leitura crítica para, desta forma, não limitar suas possibilidades de pesquisa.

Ainda na primeira metade do século XVIII esta questão já se fazia presente. Para este texto, apresentaremos a trajetória e a obra de Ângela do Amaral Rangel, poetisa nascida no Rio de Janeiro em 1725, Rangel nasceu cega e este fato seria determinante à grande parte das fontes atualmente disponíveis a seu respeito.

A poetisa carioca aprendeu a desenhar e a escrever de forma relativamente autônoma; de acordo com alguns textos que tratam brevemente de sua biografia, no período em que Rangel viveu – o chamado período “gomesfreiriano”, alguns métodos de ensino para pessoas com deficiência começavam a ser aplicados, como treinos com vendas e com a ajuda de amigos das crianças para guiá-los nas atividades, etc. Está relatado também, pelos autores, o papel da família da jovem poetisa incentivando seu desenvolvimento. Ainda jovem, já compunha versos em português e em espanhol. A família de Ângela Rangel, inclusive, é mencionada como uma “família ilustre pelos serviços prestados à Pátria”. Seus pais eram Antônio Marcos Vale e Custódia Rangel.

Tendo aprendido as principais noções da poesia, Rangel teria deixado poucas obras escritas, sendo que a maioria por nós encontradas, para a escrita deste texto, transcritas de suas declamações. Ainda assim, o nome de Ângela Rangel está presente tanto nos principais compêndios de literatura e poesia, como o Parnaso Brasileiro e a antologia Júbilos da América (1754), quanto em obras que tratam das brasileiras que se destacaram em suas áreas de atuação, a exemplo da extensa obra de Joaquim Norberto de Souza e Silva, Brasileiras Célebres. Seu feito mais rememorado, nesta bibliografia disponível é, com certeza, a declamação do poema em homenagem ao general Gomes Freire de Andrade por ocasião de uma reunião da Academia dos Seletos, em que Rangel foi recebida por figuras políticas e intelectuais importantes da época, e a primeira mulher a participar de uma sessão da Academia. Não por acaso, muitas das poesias de Ângela têm temáticas militares e referentes ao patriotismo, o que indica a relação de sua família com a história política e militar colonial brasileira, mas há também a presença de temáticas mais ligadas ao cotidiano. Seu estilo tendia a oscilar entre a profunda alegria e a profunda tristeza, sempre de forma melódica, singela e denotando erudição intelectual. De acordo com os autores, embora a presença na Academia não tenha sido sua primeira notabilidade pública, foi de fato a que a consolidou como uma das maiores poetisas de seu tempo, junto a Beatriz Brandão, Delfina da Cunha, Bárbara Heliodora e Rita Joana de Souza.

O problema da representação e da construção da memória, em Ângela do Amaral Rangel, situa-se no emprego e na repetição de termos como “sofredora”, “triste”, “anormal” e “insuficiente”, todos diretamente relacionados à sua deficiência visual. A semântica dos poucos registros encontrados tende a sobrepor as condições físicas da artista à sua obra, sendo esta sempre elogiada, porém, pouco registrada em trechos ou de forma integral. Além disto, a tendência dos periódicos à replicação de um mesmo texto ou uma mesma ideia não corrobora com a intenção de uma construção de uma memória mais rica em informações. A data de falecimento de Rangel, por exemplo, é um problema geral, não sendo encontrada em nenhuma destas fontes e sendo colocada como supostamente ocorrida quando Rangel contava cerca de 28 anos.

Por estas leituras iniciais, vê-se, no entanto, que o fato de Rangel representar uma das primeiras entradas das pessoas com deficiência em círculos intelectuais e culturais restritos não deve estar deslocado de sua produção, algo percebido com frequência nas fontes. Aspectos relacionados à sua formação permanecem pouco conhecidos, assim como suas intersecções e correspondências políticas, intelectuais e culturais. A falta de fontes, que dificulta o acesso às obras e recepções das artistas torna ainda mais necessária a análise de tópicos como o da semântica das recepções, o da crítica literária em relação às obras, e à busca por fontes ligadas a artistas contemporâneas às pesquisadas pois, em muitos casos, o contexto coletivo de atuação estará mais presente em resumos de eventos e em textos que buscam apontar aquelas e aqueles que mais se destacam no dado momento e o motivo deste destaque, por exemplo. Lidar com estas ausências e representações é lidar diretamente com a memória, o que faz com que seja necessário que estejamos atentos ao modo como ela foi constituída e no que isto implicou à posteridade em termos de distinção profissional, performance em meio a um contexto específico e, no caso de Ângela de Amaral Rangel, da possibilidade de pesquisa acerca de pedagogias, sociabilidades e possíveis representatividades para as pessoas com deficiência e que também desempenhavam atividades artísticas.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BARROS, Jacy rego. Uma poetisa cega no século XVIII. Jornal do Brasil. 11 set. 1957, p.3. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_07/78515

Biographia de mulheres célebres. O Domingo: Jornal Literário e recreativo. 18 jan. 1874, p.3. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/719030/35

Mulheres de ontem e hoje – Ângela do Amaral Rangel. Diário de Notícias. 17 jul. 1955, p.7. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/093718_03/42510

SOUZA E SILVA, Joaquim Norberto de. Brasileiras célebres – Ângela do Amaral Rangel. Sino Azul. nº 201 1944, p. 28-29. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/009318/5793

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. JARDIM, Rubens. As mulheres poetas na literatura brasileira. 10 fev. 2014. Acesso em 10 de outubro de 2023. Disponível em: https://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com/2014/02/as-mulheres-poetas-na-literatura_10.html

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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