(Des)Alinhar

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Tracei uma linha, pensei em parar. Meses atrás, iniciei alguns estudos sobre desenho em linhas contínuas, isto é, que se iniciam num ponto e só se encerram depois de encontrar a forma, a ideia da obra. Em tempos de incertezas e inconclusões inquietantes, procurei pela fluidez. A intenção era buscar artistas que trabalhem com as linhas para encontrar a forma, em um movimento contínuo ou não. Um dos conceitos centrais desses estudos seriam os caminhos da busca por uma direção individual e coletiva.

Iniciei a pesquisa para um projeto expositivo, a partir da palavra revivescência. Partindo de sua definição mais conhecida, revivescência é a sobrevivência a tempos difíceis. Renascer. Bastante conhecida e estudada pela Botânica, a característica de revivescência está presente em algumas plantas, as chamadas poiquilo-hídricas; são aquelas plantinhas que se abrigam em seu próprio interior durante dias ou meses de estiagem. Quando a chuva finalmente vem, as águas lhes devolvem a vida. Esta mesma característica também pode ser encontrada em humanos. Olhar para si, encontrar-se no mundo e como uma parte dele. Nossa alma é como uma plantinha. Alma estiada, antes das águas. Qual o nome da sua estiagem? Qual o nome das águas que lhe trouxeram de volta à vida? Nas tramas da vida, o eu e o nós se encontram em afluências, revivescências.

Nestas buscas, destaco o trabalho de Gabriela Manali Bortoletto, que assina pelo nome artístico Gabidrw; Gabriela é artista e psicóloga moradora do estado de São Paulo e, em suas obras, as linhas também externam incertezas, inquietudes, angústias e fragilidades inerentes à experiência terrena humana. Para Gabidrw, a vulnerabilidade à qual nos propomos ao encarar estas instabilidades é capaz de nos fazer repensar a nossa convivência interna e a coexistência de forma a encontrar as belezas destas vivências. O traço de Gabidrw bem reflete esta intencionalidade: linhas finas, delicadas, trêmulas, que caminham pelo suporte até encontrar a forma pensada pela artista, sem compromisso com a continuidade do traço, abraçando as curvas, idas e vindas da tinta.

Andando mais um pouco nas pesquisas, me deparei com o trabalho de outra artista que trabalha estas construções por meio das tramas tecidas coletivamente: Isa Whitaker. A aquarela, técnica utilizada com frequência pela artista e educadora nascida em Americana (São Paulo) traz o ar intuitivo da relação consigo mesmo e com o outro. Além da construção, um outro conceito que vemos em várias de suas obras é a brotação. O que é brotar na terra? Como pensar o meu lugar em meio às transformações do lugar em que habito? Estamos em constante brotação, troca e construção. Ambas as artistas, como se pode perceber, lidam com o desconhecido que há dentro de nós mesmos e dos nossos processos criativos e construtivos. A linha traçada nem sempre encontra um lugar tranquilo, uma terra firme. Às vezes, ela encontra a insegurança, o hesitar, os obstáculos. Nascer, olhar à volta. Situar-se no mundo pela primeira vez. Mais tarde um pouco, a vida nos leva a refazer este processo fora de casa, e o primeiro lugar para o qual devemos olhar, desta vez, é para o nosso interior. Pode ser que seja identificada alguma estiagem, algo a que o olhar deva se dirigir com mais atenção. Aguar a alma é amar a si mesmo e à vida. A revivescência parte, antes de tudo, de si mesmo e do olhar para dentro. Isa Whitaker traz em seus trabalhos, a dúvida e a incerteza de um momento, mas também a clareza da construção de si por si e através das trocas com os outros, as tramas das identidades.

 

Traçar uma linha até encontrar uma forma é um processo de busca que muitas vezes parecerá caótico mas, no fim, desenha-se um projeto para si e/ou para o coletivo no qual nos inserimos. Por projeto, entende-se que pode ser desde o autodescobrimento e autoentendimento até o entendimento dos pormenores da vida social. As fragilidades humanas também se refletem no uso solitário das linhas para criar arte, no entanto, esta fragilidade não define a forma; ela é parte intrínseca a ser elaborada em diferentes direções, moldando novas percepções sobre si e sobre o nosso espaço e temporalidade. Neste sentido, a linha, formada por vários pequenos pontos, representa processos nos quais as experiências pessoais e sociais traçam direções para o olhar para si, o olhar para o outro e para o meio em que nos encontramos em constantes tramas de ideias.

O olhar para si quase sempre tende a vir acompanhado do olhar sobre o mundo, tamanha a necessidade que temos de nos religar a ele. O elemento espaço acompanha a trajetória. Se estou em um grande centro urbano ou se estou em meio à natureza, as relações estabelecidas têm um fundo em comum: a terra, as plantas, pedras, ventos, chamas e águas. A terra permite surgir, ressurgir, continuar pelo tempo. Permite também que nos encontremos uns com os outros na caminhada, e troquemos olhares sobre o existir. Assim, é contada e reafirmada uma parte de nossa História que permaneceu silenciada por séculos, mas sempre esteve lá, sempre foi essência. A história ao redor da qual dançamos em ciclos efêmeros; no ritmo da revivescência, revivemos a essência.

 

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Presença. In: Behance – Isa Whitaker. São Paulo: Behance. Disponível em: https://www.behance.net/gallery/83329069/Presenca

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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