Na terra dos caminhos: música, poesia e representatividade em Auta de Souza (1876-1901)

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Auta de Souza foi uma poetisa brasileira nascida na cidade interiorana de Macaíba (RN), em 1876. Órfã ainda na infância em decorrência da tuberculose que acometera seus pais, Souza e seus dois irmãos foram criados pela avó, que embora analfabeta proporcionou a seus netos o acesso à educação de maior qualidade disponível na época, matriculando a futura poetisa no Colégio São Vicente de Paula. Lá Auta de Souza aprenderia diversas línguas, além de Literatura, de Música e de Desenho. Aos quatorzes anos precisou, entretanto, deixar a instituição após receber o diagnóstico de tuberculose, passando a estudar em casa por conta própria. Dois anos depois, começou a escrever seus poemas e a frequentar círculos sociais voltados às récitas e aos estudos da poesia. Foi membra honorária do Congresso Literário e membra efetiva do Grêmio Polimático, ambos sediados no Rio Grande do Norte. Dentre os periódicos para os quais escreveu podemos citar a revista Oásis e os jornais A República, O Paiz, A Gazetinha, O Oito de Setembro e A Tribuna. Na Revista do Rio Grande do Norte. Souza era a única mulher colaboradora. Seu livro de manuscritos, Horto, teve alta e positiva repercussão.

                                    Fonte: FENSKE, Elfi Kürten. 2013.

Um dos aspectos que mais diferencia Auta de Souza de suas contemporâneas, e mesmo de poetisas brasileiras atuantes em outros períodos, é o fato de ter sido reconhecida ainda em vida por nomes não apenas da literatura e da poesia, mas, também, da música. Poemas como Caminhos do sertão e Róseo (rezando) foram musicados, à época, por artistas locais na forma de modinhas ou de repertórios para corais eruditos, por exemplo. A grande variedade de versões musicadas de seus poemas também ajudou na divulgação do seu trabalho, fazendo com que fosse, inclusive, considerada importante compositora. Em Caminhos do sertão, a melodia é trabalhada sobre o dedilhado característico das modinhas, surgidas em fins do século XVIII e consideradas o principal gênero de música popular brasileira de então. Neste primeiro caso, a lira e o simbolismo do poema remetem diretamente à musicalidade e à identidade sertaneja. Já em Róseo, observamos que há a predominância das interpretações pensadas para as celebrações religiosas católicas, o que implica na presença de elementos que vão do canto gregoriano ao canto barroco, acompanhados de instrumentos de teclado como o órgão e o piano.

A poesia de Auta de Souza, é importante destacar, ficaria marcada pelas perdas familiares e a do seu companheiro, João Leopoldo da Silva Loureiro, que tiveram como causa a tuberculose. Souza também escreveria, por diversas vezes, sobre sua própria experiência enquanto portadora da doença, seus receios e seus desejos caso viesse a falecer. No caso de Caminhos do sertão, vemos que o cotidiano foi bem representado pela autora segundo suas vivências no interior norte-rio-grandense. Já em Róseo, o tema da religiosidade católica, pelo qual Auta de Souza mais se destacaria em vida, remete a aspectos e a episódios da sua trajetória como um todo. Referenciada por Luís da Câmara Cascudo como a maior poetisa mística do País pela poesia e pela literatura simbolistas, a produção de Auta de Souza pôde ter tido o respaldo da Igreja Católica, evitando a associação negativa entre a sua escrita e a noção da fuga da moral.

Para as mulheres oitocentistas, atuar com autonomia e obter o devido reconhecimento não era algo capaz de ser alcançado com facilidade, dadas as diversas convenções de gênero a elas impostas. Tal como vimos em Beatriz Brandão, a atividade da escrita não era bem-quista para as mulheres, sendo considerada um afastamento da religiosidade e da moralidade. Em Auta de Souza há, ainda, as barreiras impostas pela discriminação racial, uma vez que atividades profissionais autônomas, sobretudo as artísticas, estavam em grande parte limitadas às mulheres brancas e pertencentes à elite. Segundo Farias (2013), o sucesso da poetisa gerou toda uma movimentação por parte de figuras importantes do meio cultural e político para construir uma imagem aristocrática e embranquecida para a família de Auta de Souza. Isso visava a “adaptação” ao cânone social eurocêntrico da arte. A atuação de Souza deve, por isso mesmo, ser analisada não apenas enquanto pioneira no campo artístico, mas também no âmbito da política, da luta e da justiça social no período oitocentista. Afinal, trata-se de uma artista cuja relevância se tornou, em poucos anos, nacional, e cujos traços permanecem presentes na cultura brasileira até hoje.

 

 

 

 


REFERÊNCIAS

FARIAS, Genilson de Azevedo. Auta de Souza, a poeta de “pele clara, um moreno doce”: memória e cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2013.

FENSKE, Elfi Kürten. Auta de Souza – seus versos e traços de sua vida breve. Templo Cultural Delfos, maio/2013. Disponível em: http://www.elfikurten.com.br/2013/05/auta-de-souza.html.  Acessado em 26 de março de 2023.

GOMES, Ana Laudelina Ferreira. Auta de Souza: uma poeta de múltiplas marcas culturais. In: Revista da FARN, Natal, v.6, n. 1/2, p. 161-181, jan./dez. 2007, p. 161-181.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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