O projeto curatorial como fonte primária para o historiador: analisando a exposição Contribuição da Mulher às Artes Plásticas no País (1960)

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O projeto curatorial ou expositivo tem como base a construção discursiva da exposição que desejamos desenvolver para a sociedade. É a partir deste discurso que todas as outras etapas – expografia, produção, dentre outras – serão guiadas. Enquanto fonte primária para a pesquisa em História, o projeto curatorial é relevante pois trata-se do modo como tal narrativa foi apresentada ao público, o que inclui ainda os seus impactos neste último. A partir de nossas pesquisas acerca de trajetórias e atuações de mulheres artistas no Brasil, cujo recorte temporal compreendia as últimas décadas do século XIX ao início do século XIX, uma fonte em específico nos chamara a atenção por seu discurso: o catálogo da exposição Contribuição da Mulher às Artes Plásticas, organizada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) em 1960, disponibilizado digitalmente pelo Arquivo Bienal (Bienal de São Paulo). Para o presente texto, faremos uma breve análise da construção discursiva proposta pela curadoria do evento, cuja intenção central era colocar em pauta a importância da atuação feminina para o desenvolvimento da arte moderna no Brasil.

O escritor Mário Pedrosa (1900-1981), então diretor do Museu, assina o texto de apresentação da exposição, onde faz colocações interessantes sobre o evento. Inicialmente, a exposição fora proposta pelo antigo diretor, Paulo Mendes de Almeida (1905-1986), e Pedrosa insinua que tal proposta poderia desagradar parte do público mas que, ao mostrar algo que passava despercebido aos observadores – a atuação feminina, a exposição terminava por ser de “inapreciável valor documentário e cultural”. A seguir, o autor destaca que o número de expositoras na Bienal havia cresccido exponencialmente, assim como a qualidade dos trabalhos em seus diferentes gêneros, “até os menos femininos, como a escultura”; tais dados foram coletados pela introdutora da mostra, a escritora Maria de Lourdes Teixeira (1907-1989), a quem o autor se referencia. Um aspecto importante deste texto é que atribui-se como período inicial para a atuação das mulheres os anos em que ocorre o advento do Modernismo, com Zina Aita (1900-1967), Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral (1886-1973), estas duas últimas presentes na exposição. A historiografia, no entanto, mostra que esta atuação começara mesmo antes de haver a regularização das matrículas das estudantes de arte em fins do século XIX – haja visto o exemplo de Abigail de Andrade (1864-1890). Mesmo estabelecendo níveis de feminilidade aos gêneros artísticos, Pedrosa finaliza o texto reforçando que não há mais motivo para distinguir os artistas de acordo com seu sexo, e atribui exclusivamente a Paulo Mendes a visão deste fato de grande “eloquência e significação histórica”. Como é possível perceber, coube à figura masculina a grande anunciação da presença das mulheres no campo artístico brasileiro, em um período onde esta já estava visível mesmo internacionalmente – Georgina de Albuquerque (1885-1962), por exemplo, já havia representado o Brasil nas Bienais de Veneza, na Itália, durante a década de 1950.

O texto que se segue é o de Maria de Lourdes que, ao que o documento indica, teve papel central na curadoria da exposição. A autora inicia sua colocação fazendo uma retomada aos tempos em que as mulheres estavam restritas ao espaço doméstico, ou tinham grandes limitações para ingressar e se consolidar em uma profissão, inclusive as artísticas. Maria de Lourdes demonstra a intenção de se contrapor a Mario Pedrosa ao dizer da atuação das mulheres, tanto nas áreas práticas quanto as de pesquisa e etc. como algo “nada estranhável”, principalmente após a Primeira Guerra Mundial e, com esta entrada, figuravam então “em plano de igualdade com o homem, alcançando por vezes situação privilegiada”. Cabe salientar que a noção de igualdade entre gêneros apontada pela curadora, bem como sua esperança de avanços para o futuro ainda não havia sido totalmente, ou o elemento das excepcionalidades não se faria presente.O texto curatorial, apesar de manifestar esforços em situar a atuação feminina como algo construído em uma perspectiva de maior duração na História do que na perspectiva de Pedrosa, termina por reforçar a fala do primeiro autor quando este atribui às modernistas o pioneirismo nas Artes Plásticas ao trazer o seguinte trecho:

 

Consideramos hoje como heroínas melancolicamente frustradas aquelas artistas que arrastavam incompreensões e caipirismos, numa época em que não haviam salões nem galerias e em que os seus pendores habituais se limitavam à arte aplicada das almofadas, rendas, bordados, flores artificiais, etc.

 

Observa-se, até o final do texto, que Maria de Lourdes tem nas estatísticas o fio condutor da narrativa curatorial, mas abstrai-se das formas de atuação das artistas pré-moernistas; o Rio de Janeiro, já no século XIX, despontava galerias particulares e, principalmente após a virada do século XX, também em outros salões para além das grandiosas Exposições Gerais de Belas Artes da Escola Nacional de Belas Artes. Há, nas publicações deste período, diversas menções de exposições e outras participações de artistas como Abigail, Georgina, Haydéa Santiago (1896-1980) e outras. Em São Paulo, a própria Anita Malfatti já havia desbravado galerias particulares para suas exposições individuais. Aqui, portanto, temos de nos atentar a alguns elementos discursivos: o uso de dados sem a devida contextualização e a imposição de uma visão que desvaloriza grande parte das artistas, relegando apenas a um grupo ou figuras individuais a responsabilidade pela consolidação de toda uma cena artística, no caso, a acadêmica. Para além disto, vemos também que outras linguagens artísticas – como a arte popular da qual provém o bordado e  a renda, não aparecem em nenhum momento do texto, demonstrando um recorte centralizado.

Além das artistas já mencionadas, também estavam presentes a neoconcretista Lygia Clark (1920-1988), que assina a obra de capa deste texto – Contra Relevo (Objeto N.7, de 1959, e várias artistas cujas obras perpassavam as mais diversas temáticas e estilos, o que atesta uma variedade de contribuições abarcada pela curadoria. A presente análise dedicou-se a um evento ocorrido em 1960, o qual não nos foram disponibilizadas imagens da exposição e, por isto, não nos voltamos à sua expografia. Para a pesquisa historiográfica, o projeto curatorial dispõe, além da narrativa ou regra condutora, os aspectos expográficos; partindo daí, também é possível analisar a disposição das obras no espaço, a iluminação e o traçado de circulação do público. É interessante que o (a) pesquisador (a) traga, sempre que possível, imagens do evento, para que a análise possa ser melhor aprofundada junto ao leitor. Sob a perspectiva de gênero, este tipo de análise se revela de grande importância para compreendermos, por exemplo, o porquê algumas artistas permanecem invisibilizadas ou tratadas de forma desigual, seja pelo campo artístico, seja pela sociedade em geral.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Contribuição da Mulher às Artes Plásticas no País. Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo de exposição. Ficha catalográfica disponível em: http://arquivo.bienal.org.br/pawtucket/index.php/Detail/documento/94578

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Contra Relevo (Objeto N.7). In: WikiArt. S.L: WikiArt, 2013. Disponível em: https://www.wikiart.org/en/lygia-clark/contra-relevo-objeto-n-7-1959

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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