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Crônicas, contos e ficções

Timbiras, sabiás e um poeta de 200 anos

A primeira quadra de Canção do exílio (aquela que fala das palmeiras onde canta o sabiá) é um dos fragmentos poéticos mais conhecidos no Brasil. Tudo bem que a maioria não consiga declamar o poema inteiro — 3 quadras e 2 sextetos — mas pelo menos o seu introito ficou cristalizado na mente dos brasileiros, o que não deixa de ser um feito num país que pouco lê. Pois bem, esse canto nostálgico, pátrio e brasiliano é invento de um dos nossos literatos mais admiráveis: Antônio Gonçalves Dias. Em 2023, completam-se 200 anos de nascimento do poeta nacional.

Não é exagero chamar a Gonçalves Dias de poeta nacional, assim como o fez primariamente José de Alencar. Essa identificação já começa no berço. Filho de pai português e mãe mestiça (cafuza ou mameluca, há controvérsias), o bardo maranhense personifica a amalgamação da raça brasileira. Além disso, a sua obra está incorporada nos próprios símbolos nacionais. Quando escreveu a letra do Hino Nacional, em 1909, Joaquim Osório Duque Estrada, reverentemente, adornou a sua composição com os versos de Canção do exílio “nossos bosques têm mais vida/ nossa vida mais amores”. Estamos, portanto, diante de uma brasilidade legítima, de pena e de pele.

Outro aspecto notável em Gonçalves Dias era como ele conseguia granjear a admiração de seus pares. Manuel Bandeira organizou excelentes antologias do confrade e também foi seu biógrafo. Machado de Assis era outro fã declarado, e fez-lhe menções honrosas em vários textos. A própria morte do poeta — ocorrida no naufrágio do Ville de Boulogne — foi citada numa crônica de novembro de 1864, publicada poucos dias após a tragédia. Consternado, Machado lamenta (e eufemiza) que o “mais prezado filho” da poesia nacional encontrara no mar “túmulo imenso para o seu imenso talento”. No seu terceiro livro de poesia — Americanas, de 1875 — Machado deixou lavrado “A Gonçalves Dias”, um longo poema laudatório ao vate do Maranhão.

Entretanto, o mais saboroso registro está numa crônica publicada em agosto de 1893. Nela, vemos um Machado andejo que vai, debaixo de chuva, à Rua Gonçalves Dias pra pegar o bonde de Botafogo e depois se lembra de que o ponto havia sido transferido para a Senador Dantas. A zanga só não teria sido maior porque ocorrera justo no dia 10 de agosto, aniversário natalício do homenageado pela rua. Mais tranquilo após chegar em casa, Machado relembra seus encontros com o ídolo: “Vi Gonçalves Dias duas vezes. Da primeira adivinhei quem era, não sentindo mais que o passo rápido de um homenzinho pequenino. Era ele, o autor da Canção do exílio, que eu soletrara desde os dez anos…”

Olha o famoso poema aparecendo novamente, e por ninguém menos que Machado de Assis. De fato, é uma construção primorosa, tanto por ter sido escrita por um rapaz de 19 anos como pela força rítmica, pela simplicidade e pela originalidade (é um poema sem adjetivos). Como disse Manuel Bandeira, Canção do exílio é verdadeiramente sublime, mas não é a única joia gonçalvina. O Canto do Piaga, I-Juca-Pirama, Se se morre de amor são também — entre tantas outras — peças inoxidáveis da nossa literatura, que sempre merecem ser revisitadas.

A criação poética de Gonçalves Dias está reunida nos livros Primeiros cantos, Segundos cantos, Sextilhas de Frei Antão, Últimos cantos, publicados no Rio de Janeiro, e   Cantos (todos os poemas, mais alguns inéditos) e Os Timbiras, publicados na Alemanha. Além de poesia, escreveu romance, peças de teatro, crônica literária, folhetins teatrais, crônica urbana, etnografia, história e o interessantíssimo Dicionário da língua tupi — uma produção intensa e vária para um escritor que morreu aos 41 anos.

A face cronística de Gonçalves Dias é uma preciosidade. Conheci-a graças à gentileza de Daniela Leite, Coordenadora-Executiva de Patrimônio da ABL, que me presenteou o Crônicas Reunidas. A obra, de organização impecável, traz ensaios, notas biográficas e principalmente a rara atividade folhetinesca do autor — quase toda exercida no Rio entre 1846 e 1850. Por dever de ofício, ative-me à crônica urbana, e quão prazeroso foi meu exercício! Publicados originalmente no Correio Mercantil, os folhetins gonçalvinos compõem o retrato vivo da sociedade carioca nos meados do século 19. Neles, não vemos mais o traço romântico e melancólico, mas a verve mordaz, irônica, espirituosa e erudita do cronista de estirpe que prefiguraria Machado de Assis.

Escutei o Alexei Bueno — crítico e ensaísta — dizer que sempre se emociona ao ler I-Juca-Pirama e que a genialidade jamais prescreve. Foi bom ouvir tal deferência, mas esse é um ponto na multidão. O poeta indianista habita o reino dos gênios esquecidos, dos literatos ditos obsoletos. Verdade que alguns estudiosos da literatura indígena se lembram dele, não pra louvá-lo, mas para diminuí-lo, para deslegitimar seu lugar de fala. Convenhamos que os inimigos dos índios brasileiros são outros. À sua maneira e a seu tempo, Gonçalves Dias valorizou sim a cultura autóctone brasileira e merece ser reverenciado, no seu bicentenário, como um autêntico cantor dos brasis.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Gonçalves Dias – Biografia. Revista Prosa Verso e Arte.

 

 

 

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