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Humanidades e dissonâncias

Torquato Neto e o futuro à deriva

Rio de Janeiro, 03 de dezembro de 1968. “Vou embora porque alguma coisa vai explodir por aqui, algo vai acontecer”.[1] Foram essas as palavras de Torquato Neto antes de embarcar no navio que o levaria para uma temporada em Londres junto de Hélio Oiticica, companheiro da saga Tropicália. O poeta e o artista plástico estavam ainda no mar, quando no dia 13 de dezembro daquele mesmo ano, o general Costa e Silva promulgou o ato adicional n. 05. Era o endurecimento da ditadura civil-militar no Brasil. No dia 27 de dezembro, recém-chegados em Londres, receberiam a notícia da prisão de Caetano Veloso e de Gilberto Gil em São Paulo. Tempos depois os músicos baianos iriam para o exílio, também na capital inglesa. Mas antes, uma parada em Paris, onde Torquato passava uma temporada. A ruptura. Rumores da paixão de Torquato não correspondida por Caetano. Junto do desejo… A carnavalização, o desbunde… A Tropicália… Suspensos. Mas eles sabiam, afinal, que a tristeza era o porto seguro da geléia geral brasileira.[2]

Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:

Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1970.  Torquato estava de volta ao Brasil depois da temporada em Londres e Paris, onde suas crises depressivas começaram a aumentar significativamente. Nesse dia, internou-se no Hospital Odilon Gallotti no bairro do Engenho de Dentro, o futuro Instituto Psiquiátrico Nise da Silveira, procurando tratar seu alcoolismo e sua depressão. Na ficha clínica de Torquato, como registrou Toninho Vaz na biografia do poeta, constava: “Idade 24 anos. Faz uso de bebidas alcoólicas. Histórias de tentativa de suicídio. Começou a ficar doente a partir de 1968, morando em São Paulo, começando um trabalho de equipe com músicos [Caetano, Gil]. Nessa época era pouco compreendido. Em maio de 1968 tomou Valium em grande quantidade, sendo internado em Hospital. […] Deu entrada com tristeza e estado de ânimo muito abalado. Estado psíquico: lúcido e coerente”.[3] Começou a ficar doente a partir de 1968. Em maio de 1968 tomou Valium em grande quantidade…

Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.

Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1970.  Nesse dia, seu Diário de Internação do Engenho de Dentro registra sobre aquele cuja morte o havia agredido e emudecido. “Onde em mim a morte de Jimi Hendrix repercutiu com mais violência?”[4] – pergunta o poeta. Em sua reclusão, recorda o encontro com Hendrix no apartamento em Kensington. Naquela noite fria, falaram pouco, fumaram haxixe e ouviram o disco branco dos Beatles. Naquela noite fria, Torquato “havia dito com absoluta certeza: ele [Hendrix] vai morrer[…] e não demora dois anos”.[5] Recorda a intuição daquela noite e não suporta a notícia que o torturava há três semanas. Hendrix morto. Tamanha a lucidez, Torquato não tolera a nota e o fardo de não conseguir escrever ou compartilhar com os poucos amigos que lhe restaram algo que fizesse justiça àquele encontro. Padecia da pergunta que o minava desde o dia 18 de setembro de 1970: “onde, em Jimi Hendrix, [Torquato havia visto] o espectro da morte?”.

Não faria diferença, ele alegava, ouvir a música de Hendrix, estivesse este vivo ou morto (será?).  E embora convicto de que toda morte comunicasse “uma certa sensação de alívio, de descanso” perguntava a si mesmo “por que, então, uma data de jornal ainda me espanta e fere?”. Torquato, na companhia de seu Diário, tenta escrever sobre aquela fissura que linguagem alguma costuraria: a morte de um mundo figurado na cara e na guitarra de Hendrix. “(não posso, nem quero explicar por que eu, e muita gente mais, sabia de tudo desde muito tempo. posso, com simplicidade, dizer apenas que eu sabia ler a sua música)”[6]. O poeta piauiense, o mais sedento do tempo aberto pela Tropicália, soube ler a música de Jimi Hendrix. Soube com aquele homem “claro demais, limpo, preto” compartilhar a abertura de um mundo. Não sabia, contudo, compartilhar seu fim. O espectro da morte que o poeta vira na música e na cara de Hendrix era também a sua própria morte, seu próprio arremate, já anunciado quando 1968 entrou em suspensão.

Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:

Rio de Janeiro, 10 de maio de 1972. Torquato escreve a Hélio Oiticica, que estava em Nova York. Na carta se desculpa pela ausência de notícias que ele e outros amigos como Waly Salomão não davam há tempos. Ele se explica – “parece que ninguém tem falado: deve ser a falta de assunto: pelo menos no meu caso”.[7] Na carta, o poeta relatava o envolvimento com diversos trabalhos. Seu maior entusiasmo, contudo, era a Revista Navilouca que levava à frente com Waly e que reuniria contribuições dos concretistas Décio e Haroldo de Campos, dos poetas marginais, Duda Machado, Chacal, do próprio Hélio e outros artistas. Torquato apresentava a Revista que sairia em apenas um volume, uma “espécie de antologia, almanaque, revista indefinida”, como experiência única e necessária àquele contexto brasileiro. Solicitava com urgência que Hélio enviasse sua fotografia e outros conteúdos que estavam pendentes. “Essa revista vai ficar a coisa mais bonita, mais violenta e mais incrível que você possa imaginar”.[8]

Torquato aproveitava para deixar o amigo a par do cenário cultural brasileiro à época. Externava sua insatisfação com o caminho que o cinema nacional ia tomando, a “extensão da filhadaputisse de Glauber [Rocha]”.[9] Mas contava entusiasmado sobre a estreia do filme de Ivan Cardoso, A sentença de Deus, no qual um judeu sádico tortura um empregado anormal que é mantido no cativeiro por ter possuído a sua filha única, em pleno velório, no dia de sua morte. Relata também sobre o filme que ele mesmo estava produzindo, mas que estava parado por falta de grana. Também avisa que o livro de Waly Salomão (Me Segura qu’Eu Vou Dar um Troço, 1972) estava para sair logo e que iria a São Paulo com Ivan arrumar o dinheiro que faltava para o filme e, quem sabe, depois encontrar Hélio em Nova York. Por fim, mencionava que o show de Gil e Gal fora ótimo; que Gil voltara do exílio dizendo que “o Tropicalismo foi um movimento Yin – ‘não sei o que lá Yang etc’. […] Mas as músicas estão fora dessa moral aí: e o som, da pesadíssima”. Caetano, “machão”, andava pela Bahia e por lá ia ficando.  Terminava pedindo que o amigo não se aborrecesse com o silêncio, “e me escreva, que eu te amo”.

só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:

 Teresina, 07 de junho de 1972. “Hélio, querido: aqui é a voz do sertão”[10]. Em outra carta a Hélio, Torquato relatava que teve de sair às pressas do Rio para repousar compulsoriamente no Piauí na Clínica Meduna em Teresina. Deixara a Navilouca com Waly para que a terminasse e a publicasse até julho. Continuava seu entusiasmo por ela – “será qualquer coisa de definitivamente novo, forte e rigoroso”. Enviara junto à carta, a Revista Gramma, produzida por alguns “meninos do Piauí”, colegas de infância, e com euforia explicava ao amigo a importância daquela produção “subterrânea” naquele sertão “onde não acontece nada, onde nunca passou um filme de Godard e onde cabeludo não entra na escola nem nas casas das famílias”. Novamente, pede aflito e urgente o material para Navilouca a Hélio. Fala de alguns filmes que estava produzindo com os meninos da Gramma. Comenta também sobre um trabalho seu que Hélio queria publicar num livro do Octávio Paz, mas isso era assunto para outra carta. “Querendo me escrever (escreve, amor)”.

não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de ideia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento

19 de janeiro de 1972.  Agora não se fala nada.  Os versos que conduzem este texto pertencem ao poema Literato cantábile de Torquato Neto. O poema nos direciona a um tipo de emudecimento facilmente associado à polarização do mundo, às ameaças atômicas, à experiência da violência, às ditaduras ou de modo mais amplo à quebra do entusiasmo revolucionário da juventude de 1968. A morte de Hendrix. O fim dos Beatles. The dream is over. O exílio de Caetano e Gil. O fim da Tropicália. Mas a depressão, a “loucura” e a angústia de Torquato manifestos no poema é retomado aqui como desvelamento de algo ainda mais radical: o emudecimento de um mundo que se aprisionou em uma linguagem. Eu me refiro à morte daquela urgência pelo novo que Torquato compartilhava nas cartas com Hélio Oiticica. Aquele espectro do fim que o poeta viu na cara, na música, na morte de Hendrix.

Torquato no seu poema nos revela que a palavra passava a abrigar uma armadilha por meio da qual uma realidade retomava a si mesma infinitamente. O verbo, que outrora fora o princípio, perdera o poder de criar. Os gestos, os movimentos teriam como destino sua própria origem. Nesse cenário, o novo estaria estagnado e com dificuldades para transbordar. Uma realidade que se repete está dada e a tudo determina, sem mistério algum. Aqueles que buscavam ainda produzir com ela novos contornos, pássaros/poetas, estavam aprisionados e enlouquecidos ouvindo o eco de seus gritos. Presos e loucos, ou loucos porque presos, não sentiam mais o poder de rearticulação do mundo.

Mas o poeta não deseja que o revelem o código para distensão dessa realidade em suspensão. Ele não quer se defrontar com o semblante desse fim, pois ele já havia visto o espectro dessa morte em outra cara. O que ele quer mesmo saber é o nome da república que está escondida e recuada nessa realidade. O poeta espera a negação desse mundo que se apresenta como acabado, circunscrito por limites que não podem ser ultrapassados. Ele quer que o digam sobre a possibilidade da conquista, do alcance e da posse do futuro.

Um parêntese é aberto e não será fechado. O poeta sabe, porém, que agora ninguém mais fala nada, e que o tempo vindo está estagnado. Nada se pode dizer porque não é consentido mudar de ideia. O movimento, a criatividade, o deslocamento de olhares, os conflitos, a dissidência, os amores… estão proibidos. O poeta nos revela um mundo que entrava em arrebatamento. Ele sofre. Seu confinamento, em fragmentos como seus textos, é a realidade e metáfora do tempo ao qual pertence.  O verbo silenciado! Não se fala nada. Nenhum outro mundo parece possível. Um passado pesado, de chumbo grosso, de violência sistêmica mantém uma tradição difícil de transpor. Imbecis por todos os lados. O poeta nos mostra o seu confronto final com o desmoronamento de uma ambição: aquela busca incansável pela criação e instauração do novo há tão pouco viva na Tropicália e em suas reminiscências contraculturais no final dos anos sessenta… Essa ambição era agora uma cilada (ele sabia), na qual apenas alguns loucos embarcavam à deriva. Pois é, nós conhecemos aquela canção na qual o coringa diz ao ladrão que deve haver algum jeito de sair da torre. Nunca soubemos no fundo se eles escaparam ou morreram por lá.[11]

Navilouca. A palavra-poema criada por Waly Salomão que dava nome à Revista tão esperada por Torquato fora inspirada na Nau dos Insensatos. Ela refere-se à uma experiência que ocupava o imaginário renascentista, na qual uma embarcação deslizava pelos calmos rios da Renânia e dos canais flamencos, com homens que embarcavam para uma viagem simbólica que lhes conferia verdades existenciais. Isso nos explicou Michael Foucault na História da Loucura, cuja primeira edição fora no ano de 1972. O filósofo francês nos esclarece também que esses barcos existiram de fato, na primeira metade do século XV, nos quais loucos escorraçados das cidades, viviam à deriva e à responsabilidade de marinheiros, que os levavam de uma cidade à outra, sem um porto, contudo. Essa prática buscava evitar que o “alucinado” vagasse de forma indefinida pelas cidades, garantindo que estivesse longe e fazendo-o sempre “prisioneiro de sua própria partida”. O mar, diz Foucault, os levava embora, entregando-os à incerteza de seu destino, sendo, cada embarque, “potencialmente, o último”. E também já ali os aprisionava entre o mundo deixado para trás e o mundo no qual nunca desembarcariam de fato – “se ele não pode e não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem”. [12]

Loucos à deriva. Essa fora a imagem escolhida por Torquato e Waly para a Revista pela qual trabalharam. Navilouca, o plano editorial que alimentava a urgência do poeta pelo novo naquele ano de 1972, buscava reunir a produção poética experimental do Brasil da época, ligada às reminiscências da Tropicália e à contracultura. É irônica a coincidência entre a imagem dos “alucinados” que vagam prisioneiros pelo mar (ou pelo espaço, tendo em vista as imagens que a palavra “nave” ativava nos anos 1970) à espera de um mundo no qual poderiam desembarcar e o projeto que não chegou ao destino esperado. A Revista não fora publicada em 1972. Por falta de recursos, o projeto estagnou. Alguns anos depois, Waly conseguiu que André Midani, executivo da Polygram, apoiasse a Revista. Navilouca foi, então, lançada em 1974 e oferecida como brinde de Natal a clientes da gravadora. Em 1975, alguns exemplares foram vendidos em livrarias. Mas naquela ocasião, Torquato não estava mais aqui. O cansaço. O esgotamento de energia. O silêncio, enfim.

10 de novembro de 1972.  “Pra mim, chega!”. Existirmos a que será que se destina? Perguntam os versos da canção Cajuína de Caetano Veloso dedicados ao amigo piauiense. O poeta não quis saber. Ele se recusou ao emudecimento do seu mundo. Se recusou ficar à deriva de seu próprio tempo e “loucura”. Disse tranquila e violentamente o sim do fim do fim de tudo, ligando o gás na madrugada após celebrar seu aniversário. Ao lado do corpo, estava o caderno, que além da clássica nota de despedida, trazia registrada uma frase isolada atribuída a Caetano, “o amor é imperdoável”.[13]  Sim, nós sabemos que no fundo, junto do futuro que não ancora, a paixão também pode matar e que as coisas definitivas se escrevem mesmo é no corpo. Mas Torquato só tinha 28 anos.

 

 

 


NOTAS E REFERÊNCIAS:

Este texto faz parte da pesquisa Agora não se fala nada: Amor, música e morte em 1972.

[1] Torquato Neto Apud VAZ, Toninho. Pra mim chega – a biografia de Torquato Neto.  São Paula: Editora Casa Amarela, 2005, p. 125.

[2] Referência aos versos da canção Geléia Geral de autoria de Torquato Neto e Gilberto Gil, um dos destaques do disco Tropicália (1968).

[3] VAZ, Toninho. Op. cit, 2005, p. 159.

[4] Diário de Internação. In.: Torquato Neto – Essencial. MARICONI, Itálo (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 226.

[5] Idem.

[6] Idem, p. 227.

[7] Carta de Torquato Neto a Hélio Oiticica. In.: Torquato Neto – Essencial. MARICONI, Itálo (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 192. Grifo meu.

[8] Idem, p. 193.

[9] Nessa conjuntura Torquato repercutia maior interesse pelo cinema marginal, estando mais próximo de Ivan Cardoso e de Luís Otávio Pimentel, que realizavam cinema de forma independente. O afastamento e a divergência com Glauber Rocha manifestados na carta estavam ligados ao fato do Cinema Novo ter capitaneado a nova política cinematográfica ligada à Embrafilme. Torquato não engolia bem a ideia de se fazer filme com o dinheiro do governo, “fingindo critica-lo”. Ver. VAZ, Toninho. Op. cit., p. 171.

[10] Carta de Torquato Neto a Hélio Oiticica. In.: MARICONI, Itálo. Op. cit., p. 197.

[11] All Along The Watchtower (1967) – Música de Bob Dylan também interpretada por Jimi Hendrix em 1968, transformando-a em uma espécie de hino contra a guerra do Vietnã.

[12] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva (1ed. 1972), 1978, p. 16.

[13] VAZ, Toninho. Op. cit, 2005, p. 200.

 

 


Crédito da Imagem: Vitrine Filmes/Divulgação

 

 

 

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