Tóxica é a positividade

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Causou incômodo em um grupo de troca de mensagens instantâneas entre antigos colegas de graduação a manifestação de uma profunda tristeza e pessimismo em relação à situação do Brasil atual. Mais ainda a crítica direcionada ao brasileiro em geral, tantas vezes exaltado como povo alegre, leve e bem humorado, considerado na oportunidade individualista, fascistóide e desprovido de inteligência.[1] A referida manifestação foi feita de forma crua, descompromissada e, acima de tudo, como um desabafo ressentido pela perda de um Brasil que não existe mais. Sem ofensa direta a ninguém, ela foi motivo de baixas no grupo – talvez fosse necessário um alerta de gatilho para alguns – e de tentativas de disciplinar o sentimento pessimista com lições sobre otimismo e fé. Em torno destas reações, a ideia de que o pessimismo ou “bad vibe” seria obstáculo intransponível para a ação de sujeitos interessados na transformação social e política.

Se a experiência acima citada, por um lado, não contribuiu em nada para fomentar o debate sobre o problema da situação do Brasil em si – cabe dizer que eu estava, neste momento, como Belchior em A palo seco, de 1976: no tempo em que os amigos sonhavam, eu me desesperava –, por outro, particularmente, deu oportunidade para a retomada de uma reflexão sobre uma condição que já é lugar comum na discussão filosófica: o lugar do pessimismo na crítica à realidade.

Interessante observar que a tristeza e o pessimismo que causam incômodo ao serem manifestados pelo indivíduo são os mesmos sentimentos que, aprofundados, já estão democratizados na forma de depressão e que nos levaram à chamada epidemia do desencanto. Teoricamente já deveríamos estar familiarizados a esses sentimentos do “presente como tortura” ou do “futuro como impossibilidade”, pois os homens e mulheres da contemporaneidade estão particularmente sujeitos a se deprimirem. Pesquisa recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) informa que o Brasil é o pais mais deprimido da América Latina, com 12 milhões de doentes diagnosticados em 2019. O país segue na contramão da tendência mundial de redução de mortes por suicídio, tendo registrado um aumento de 24% deste tipo de morte nos últimos anos.

A experiência brasileira recente – que de nenhuma maneira está isolada do sistema neoliberal global – escancarou uma realidade difícil de ser digerida por aqueles que a observam com crítica política e social razoavelmente aguçada, independente de posições político-partidárias: a complacência da sociedade com avanço do abismo social, o reconhecimento da fragilidade da nossa democracia liberal, a popularização de uma retórica fascista e a instrumentalização da própria existência humana por meio da necropolítica. Cito apenas alguns dos componentes de um amálgama cristalizado em um contexto de pandemia que ceifa centenas de vidas diariamente e relega os sobreviventes à solidão e à apatia. Que qualidade de afetos se depreende de um corpo social e político nestas condições? Quantos super-humanos são capazes de manter o vigor da sua vontade de potência, de ação transformadora?

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em maio deste ano pode indicar a resposta: 63% dos entrevistados estão tristes com o Brasil, 59% declaram-se desanimados, 57% têm medo e 69% se sentem inseguros sobre o futuro do país. Mulheres e jovens entre 16 e 24 anos lideram todos os índices que mediram a preponderância de sentimentos negativos. E como bem lembrou Vladimir Safatle em O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (Contexto, 2015), reprimendas morais a respeito da luta contra esse tipo de “força reativa” de nada adiantarão se quisermos compreender a carência de ação dos sujeitos. Faz-se necessário reconhecer que este é o solo pré-político para qualquer política de transformação que se queira possível.

Por isso este texto parte da ideia de que se há algum otimismo ou esperança de positividade para o corpo político e social brasileiro, eles devem advir da concentração do pensamento na realidade crua como ela é, neste “mundo dilacerado” que nos dilacera a todos que sobre ele refletimos. Para quem ousa pensar a transformação da realidade não cabe aderir acriticamente ao otimismo vago e à busca da felicidade vazia impostos pela engrenagem do sistema que se pretende modificar. O escritor português José Saramago foi certeiro quando em 2008, numa entrevista a jornalistas brasileiros que acusaram o seu pessimismo, respondeu: “eu não sou pessimista, o mundo é que é péssimo”.

Embora a psicanálise estabeleça diferenciações entre a melancolia e a depressão, no plano geral do “mal-estar na civilização” é possível estabelecer um traço de continuidade entre o sofrimento depressivo da contemporaneidade e a tradição melancólica que marca a história da dor de viver da antiguidade até o século XIX. Se considerarmos as depressões como uma das expressões do sintoma social do mal-estar contemporâneo, podemos supor, como sugeriu Maria Rita Kehl em O tempo e o cão: a atualidade das depressões (Boitempo, 2009), que os depressivos constituem um grupo incômodo e ruidoso dentro do sistema de crenças e sentidos que sustentam a vida social contemporânea.

O desprestígio social que hoje em dia se abate sobre quem padece da depressão acaba agravando o sofrimento, pois aumenta o sentimento de inadaptação e culpa dos indivíduos por não serem capazes de corresponder aos ideais vigentes de bem-estar e felicidade. O mercado em expansão das terapias de autoajuda e coaching comportamental reforçam a segregação e a intolerância aos sentimentos que se aproximam da melancolia: “seja alérgico a pessoas negativas”, “pensar negativo atrai coisas ruins”, “proteja-se de pessoas negativas”, “deixe a tristeza fora de sua vida substituindo-a por qualquer coisa que lhe cause felicidade e alegria”, “preencha sua mente com conteúdo positivo”, são algumas lições sobre a toxidade do negativo que se aprende.

Mas quanto maior a demanda pela realização destes ideais, parece aumentar também a quantidade de depressivos diagnosticados. Enquanto eles se privam (e são privados) de relações sociais para evitar afetar negativamente outros ao seu redor, a indústria farmacêutica não mede esforços para mediar o retorno do depressivo ao convívio dos ajustados. Quando se vive uma realidade adversa, travar uma batalha consigo mesmo para dominar a mente e fazer dela um campo de otimismo pode se tornar não apenas uma fonte inesgotável de angústia, frustração e culpa, mas também um exercício de alienação de si mesmo e do mundo. E neste caso, tóxica é a positividade.

Entre nós, as manifestações de tristeza começaram a ser patologizadas e diagnosticadas como depressões a partir da década de 1990, momento em que se instalou uma nova ordem que impactou todo o corpo econômico, social e político no país, o neoliberalismo. A medicalização passou a ser uma regra, pois aparentemente não havia mais tempo para nos recuperarmos das dilacerações que a vida impõe, para a lentidão das elaborações ou para a efetiva superação dos lutos. E nesse ritmo veloz dos novos tempos ficamos impedidos de construir referências que fossem novas e verdadeiramente transformadoras.

Pierre Dardot e Christian Laval deram contribuições importantes para a reflexão sobre o novo ser que o neoliberalismo vem construindo. Como uma racionalidade que se impõe para além de práticas econômicas ou ideologias políticas explícitas, o neoliberalismo é um sistema normativo que produz uma subjetividade inédita, pois modifica não apenas as formas de viver, mas as formas de sentir e sofrer. E essa nova subjetividade não é um efeito secundário do sistema, mas parte necessária de sua reprodução e extensão. A saúde mental dos indivíduos, como disse Enric Berenguer na edição de El ser neoliberal (Gedisa, 2018), de Dardot e Laval, passou a ser uma zona importante do campo de batalha neoliberal. Aí se impõem formas de felicidade e de auto superação que pouco ou nada correspondem com o modo de ser e existir que experimentamos fora deste discurso.

Em A nova razão do mundo (Boitempo, 2016), Dardot e Laval identificam este novo sujeito como “homem-empresa” ou “sujeito empresarial”, pois o neoliberalismo cria indivíduos que se autogovernam na medida em que são condicionados psiquicamente a exercerem sobre si mesmos a conformação às normas. As forças coercitivas do Estado ou da empresa já não compõem a centralidade do sistema, o objetivo não é mais o adestramento dos corpos, mas a gestão das mentes. A subjetividade do ser neoliberal está inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra, pois seu trabalho é a própria realização do desejo que o constitui. Ele sente que trabalhar para a empresa é trabalhar para ele mesmo, eliminando qualquer distância entre o indivíduo e a empresa que o emprega. A intensificação de seu esforço é uma conduta que vem do próprio sujeito, uma ordem imperiosa de seu próprio desejo. Por isso, os autores identificam esta nova forma de governo como um “governo lacaniano”: obedecer ao próprio desejo ou ao Outro que fala dentro de nós dá no mesmo, pois o desejo do sujeito é o desejo do Outro, desde que o poder neoliberal se torne o Outro do sujeito.

A economia capitalista já não produz as “jaulas de aço” a que se referia Weber. No mundo neoliberal cada indivíduo é obrigado a constituir por conta própria a sua “jaula de aço” individual. Para isso, se põe em um trabalho interior constante para ser o mais eficaz possível em todas os componentes da vida social e individual: trabalho, família, relações pessoais são pensadas como um investimento, um cálculo de ganhos e custos e, acima de tudo, um aprimorar-se continuamente. Daí que os sentimentos e afetos positivos são mobilizados em nome da eficácia. A ética empresarial unifica diferentes regimes de existência e transforma o trabalho em veículo privilegiado da realização pessoal, ou seja, ser bem sucedido profissionalmente significa ser bem sucedido na vida. Dardot e Laval lembram da máxima da dama de ferro do neoliberalismo, Margaret Thatcher: “Economics are the method. The object is to change the soul” [A economia é o método. O objetivo é mudar a alma].

E para “mudar a alma” o indivíduo pode recorrer às “estratégias de vida” para aumentar seu capital humano e valorizá-lo da melhor maneira na lógica da empresa de si mesmo. A atitude social e o modo de agir necessários para tornar a vida mais eficaz podem contar com a ajuda dos “consultores em estratégias de vida” para fazer uma gestão moderna das subjetividades por meio de meditação, autorreflexão ou autodiagnostico fundamentados pela programação neurolinguística, análise transacional etc. É o que Dardot e Laval chamam de “ascese do desempenho”, expressão tomada de empréstimo de Éric Pezet, e cujas técnicas constituem um mercado em plena expansão no mundo todo. O objetivo de todas elas é um só: dominar a si mesmo, o que significa dominar as emoções, o estresse, as relações interpessoais, fortalecer o eu, adaptá-lo melhor à realidade neoliberal, torná-lo operacional em situações difíceis. Em outras palavras, são técnicas de autogovernabilidade que visam a aumentar a eficácia da relação com o outro dentro do mesmo sistema normativo que a corrói.

Os efeitos patológicos de um sujeito que só encontra a sua verdade na forma como o poder gerencial a define não poderiam ser menosprezados. Dentre os vários sintomas que a literatura clínica contemporânea descreve, incluindo aí a depressão generalizada, Dardot e Laval identificam um ponto em comum ao qual todos os sintomas se referem: o definhamento dos quadros institucionais e das estruturas simbólicas nos quais os sujeitos encontraram seu lugar e sua identidade. Assim, a empresa de si mesmo apresenta sua dupla face: o rosto triunfante do sucesso sem pudor e o rosto deprimido do fracasso diante dos processos incontroláveis e das técnicas de normalização.

Voltemos, pois, às demandas subjacentes aos discursos disciplinadores da tristeza e do pessimismo que nos referimos no início deste texto. Tratam-se de demandas por uma “gestão da alma” (a expressão é de Lacan) para que cada indivíduo tenha condições de desenvolver suas qualidades pessoais, reagir rápido, inovar, criar, “ser melhor”. Mas é curioso observar que esse autocuidado, este trabalho do eu sobre si mesmo, em nada se compara com o movimento de interiorização do sujeito filosófico que procura conhecer a si mesmo sem nenhuma relação com uma ordem externa. Tratam-se de demandas que fazem parte da gestão neoliberal de si mesmo e que identificam problemas psíquicos como relacionados a um domínio insuficiente de si e da relação com os outros.

Nesta dinâmica da “empresa de si” estamos todos envolvidos em quase todas as formas da nossa existência. Não surpreende, portanto, que até mesmo o pensamento que busca construir estratégias políticas e soluções coletivas para transformar a sociedade esteja ele mesmo aprisionado pela ética neoliberal. Mas se justamente pretendemos denunciar a destruição da dimensão coletiva da existência que o capitalismo avançado nos impõe, não parece razoável querer transformar uma crise que é social em crises individuais. Se como já disseram sobre nosso tempo, “entre nós, hoje em dia, o blues não é compartilhável”, talvez resida na possibilidade do compartilhamento dessa tristeza – numa espécie de nova revolução subjetiva – a arma que nos permitirá transformar significativamente a realidade.

Talvez seja necessário aceitar a condição de que os corpos precisam se quebrar, os organismos precisam se decompor, nós precisamos ser despossuídos de nossa identidade empreendedora para que novas possibilidades de afetos apareçam e instaurem uma possibilidade de ação completamente nova. Só assim se pode promover a recomposição numa forma autêntica que supere as fantasias que nos defendem do desamparo e que conformam uma sensibilidade que pode estar, na verdade, atrofiada e com ela atrofiando nossa capacidade de pensar.

 

 

 


REFERÊNCIAS

DARDOT, P.; LAVAL, C. El ser neoliberal. Edición a cargo de Enric Berenger. Madrid, Gedisa, 2018.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.

KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.

SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Contexto, 2015.

 

 

 


NOTAS

[1] É interessante analisar os dados da percepção dos brasileiros sobre o governo Bolsonaro no resultado da pesquisa Datafolha divulgada no mesmo dia da fatídica “treta de WhatsApp”: embora a maioria dos brasileiros considere que Bolsonaro é pouco inteligente (54%), despreparado para o cargo (58%), incompetente (52%), indeciso (53%) e que respeita mais os ricos do que os pobres (58%), apenas 44% dos brasileiros desaprovam o seu governo.

 

 

 


Créditos na imagem: “Pessimismo e Otimismo”, Giacomo Balla. óleo sobre tela, 1923.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Alessandra Soares Santos

Doutora em História pela UFMG. Professora de História do Centro Pedagógico da UFMG. Atualmente desenvolve estágio pós-doutoral em História na UFRJ.

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