PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
A pandemia do COVID-19 trouxe impactos profundos em nossa relação com o tempo. Antigos hábitos foram postos em suspensão, alterando o ritmo “normal” de nossa existência cotidiana. Confinados em casa, muitos reclamam do tédio, do tempo que parece não passar. Traçar planos para o futuro próximo tornou-se uma quase impossibilidade. Muitos esperam ansiosamente pelo retorno à “normalidade” da vida, mas, ao mesmo tempo, é evidente que o mundo porvir, embora imprevisível quanto aos seus contornos, será certamente diferente do mundo que habitávamos antes do início da pandemia. Governos e organizações internacionais se vêem diante da necessidade de tomar decisões urgentes e rápidas, mesmo com a grave incerteza que paira no horizonte.
Essa desorganização do tempo é ainda agravada por uma situação que caracteriza o nosso presente, a saber: a produção massiva de informações fragmentadas e que circulam em fluxo contínuo, 24 horas por dia, no qual o valor de verdade de uma notícia tende a ser confundido com o seu valor de novidade ou de atualização. Essa organização atualista[1] da informação dificulta a construção de quadros mais amplos e reflexivos sobre a situação presente, reforçando a sensação de desorientação e insegurança quanto ao nosso presente-futuro. A asfixia causada pela pandemia encontra, assim, um paralelo com o sufocamento causado pela “infodemia”, um fenômeno que os autores interpretam a partir da chave do atualismo.
Como se não bastasse, o nosso presente encontra-se na contingência da (des)ordem política promovida pelo bolsonarismo, que ao mesmo tempo parasita e alimenta essa organização atualista da informação de modo a tentar tirar o máximo proveito da crise. Com efeito, a infodemia abre terreno fértil para a propagação de notícias falsas, que o atual governo brasileiro – assim como ocorre em outros países, como os EUA, o Reino Unido, a Turquia, entre outros – sabe explorar tão bem. Aliás, é da natureza do bolsonarismo a produção em série de crises políticas, uma realidade que a chegada do novo coronavírus ao país evidenciou ainda mais, e que os autores analisam nas crônicas reunidas na segunda parte do livro.
Frente a esse turbilhão de crises e atualizações contínuas, que geram em nós uma sensação de dispersão, insegurança e angústia, nada mais urgente do que realizar um esforço de interrupção, de uma parada para respirar e refletir sobre a nossa situação crítica, sobre o que o passado recente nos revela e sobre as possibilidades de futuro que temos disponíveis. É por isso que o Almanaque da COVID-19, o novo livro de Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo, chega em hora tão oportuna. Lançando-se ao desafio de uma história imediata, os autores apresentam um diagnóstico de nosso presente e apontam para possíveis formas de ação rumo a construção de um novo tempo, de forma ativa e não apenas reativa.
Um primeiro aspecto a ser salientado é a decisão, bastante inventiva e perspicaz dos autores, em escrever sobre a “triste e catastrófica experiência histórica que estamos vivendo” (p. 15) sob a forma de um almanaque. Esse gênero tradicional de escrita da história é retomado e atualizado pelos autores, uma escolha que se mostrou acertada por possibilitar duas grandes conquistas: por um lado, o de historiar a experiência de nosso “tempo epidêmico” para além do modelo narrativo canônico da historiografia acadêmica; e por outro lado, o de produzir uma reflexão teoricamente densa sobre essa experiência por meio de uma linguagem acessível, sem exigir do(a) leitor(a) um conhecimento prévio de conceitos e categorias disponíveis apenas a quem tenha uma formação especializada.
Tradicionalmente, os almanaques possuíam a função de organizar o tempo vivido com referência ao calendário, datando os acontecimentos e narrando a sua história, além de oferecer informações práticas e sobre variedades. O tempo cronológico linear fornece, assim, uma primeira base para a tarefa de reorganização do tempo desestruturado pela situação atualista de nosso presente epidêmico-infodêmico. Não por acaso, a primeira parte do Almanaque consiste em um diário, que engloba os primeiros 150 dias contados desde o dia 31 de dezembro de 2019, quando pela primeira vez a prefeitura de Wuhan comunicou oficialmente à OMS sobre a ocorrência de um surto de pneumonia incomum e cujo agente seria mais tarde identificado como um novo tipo de coronavírus. Nesse diário, os autores souberam conjugar uma descrição objetiva do desdobramento dos fatos relacionados à pandemia no mundo e no Brasil, e uma escrita subjetiva que permite a nós, leitores(as), nos identificarmos no próprio texto – sentimos empaticamente a angústia de manifestar sintomas similares à COVID-19 (e o alívio em saber que o teste deu negativo!), a preocupação com nossos familiares e amigos(as), os efeitos mentais e emocionais de ficarmos em um longo período de confinamento, ou aquela frustração em vermos nossos planos serem adiados ou mesmo cancelados.
Contudo, se a cronologia caracteriza a organização temporal do diário, essa temporalidade não se desdobra de forma homogênea e vazia. Afinal, e como os autores bem sabem, articular o tempo epidêmico não significa simplesmente submeter essa experiência à lógica linear do tempo do calendário. De fato, à medida que os dias vão passando, nota-se um aspecto que corresponde à forma da experiência do tempo indicada pelo conceito de crise, a saber, um tempo cada vez mais contraído e sob pressão, que revela uma situação de emergência e de insegurança quanto ao presente-futuro.[2] Assim, a cada nova quinzena, os textos vão ganhando maior volume, os intervalos de tempo vão diminuindo, chegando até a ser registrado as horas e os minutos. Impossível não nos encontrarmos em uma espécie de asfixia, de uma sensação na qual está acontecendo “tudo-ao-mesmo-tempo-agora”. Assim, a cronologia linear do calendário se entrecruza com uma temporalidade kairológica, ou seja, um tempo marcado pela urgência diante de um grande perigo, mas também um tempo que demanda uma postura ativa para buscarmos soluções criativas e oportunas.[3]
Vale destacar ainda que, do ponto de vista da leitura, essa temporalidade linear pode ser rompida desde o início graças ao recurso dos hiperlinks, que os autores adotaram na escrita do livro. Ao clicar em um termo em destaque, o leitor é remetido à terceira e última parte do Almanaque, que reúne os verbetes explicativos para os conceitos e expressões utilizadas tanto no diário, como também na coleção de crônicas reunidas na segunda parte. Nessas crônicas, os autores oferecem análises mais densas e verticais sobre os fatos políticos produzidos pelo governo Bolsonaro no decorrer do período, e incluem: reflexões sobre as estratégias adotadas pelo bolsonarismo para tentar capitalizar politicamente os efeitos devastadores da pandemia; a atuação da máquina de desinformação e fake news, bem como de setores da imprensa conservadora brasileira e estadunidense; a promoção de uma visão olavista da história; a queda em sequência de ministros importantes do governo durante o período, entre outros assuntos relevantes.
Quanto aos dezoito verbetes da terceira parte, a linearidade cede de vez espaço para uma leitura cruzada, que pode ser trilhada com grande liberdade e conforme o interesse do(a) leitor(a). Escritas em uma linguagem leve e informativa, as entradas incluem conceitos analíticos (como “infodemia”, “atualismo”, “tempo epidêmico”), e expressões relativas ao contexto atual (“mulheres e a pandemia”, “os indígenas e os negros na pandemia”, “dados da pandemia na América Latina”).
Assim, colocando em prática diferentes enquadramentos temporais na escrita de nossa história imediata, este Almanaque oferece a(o) leitor(a) um quadro mais amplo sobre o momento histórico crítico em que estamos vivendo. Esse exercício reflexivo permite avaliar com maior clareza as ameaças e possibilidades que nos cercam, algo que o fluxo atualista tende a impedir, visto que sua força provém de ele não admitir paradas e interrupções. Realizar essa interrupção torna-se, assim, um passo fundamental para compreendermos a nossa situação presente e, assim, rearticular nossa relação com o tempo. Mais do que nunca, fazer uma pausa para respirar é um ato urgente, oportuno e, potencialmente, transformador.
NOTAS
[1] ARAÚJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. 1ª edição. Mariana: Editora SBTHH, 2018.
[2] Sobre o conceito de crise e sua dimensão temporal, cf. KOSELLECK, Reinhart. “Some Questions Regarding the Conceptual History of ‘Crisis’”. In: The practice of conceptual history: timing history, spacing concepts. Stanford: Stanford University Press, 2002, p. 236-247.
[3] Para uma discussão sobre a relação entre o conceito de crise e a ideia de kairós, remeto o(a) leitor(a) ao primeiro episódio da série Crise & Historicidade, no qual trato dessa questão. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=9MhyIhlpfm0 (link da primeira parte); e https://www.youtube.com/watch?v=UQmMbiImwTA&t (link da segunda parte).
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Walderez Ramalho
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