sempre acho, no fundo no fundo, bem no fundinho, que o amor é aquela coisa que Machado diz, mais ou menos assim: era flor, mas era coxa. era flor de moita. era bela pretendente, mas o pai jogava nos galos. era vicioso. era riso com e sem dor. metáforas agudas a doer mais do que a maldade.
Eduardo Sinkevisque
Fiquei tentado a fazer de meu segundo texto desta coluna uma quase continuação do primeiro, do anterior, em que Machado de Assis está de passagem, como um dispositivo, um motor, um estalo.
Fiquei tentado a conversar com o leitor, chamando-o para o texto, numa espécie de emulação do Bruxo do Cosme Velho, e dizer: fique atento! Não vou fazer isto, propriamente.
Trago, porém, Machado de Assis para esta coluna mais uma vez. Paciência, leitor, não será sempre assim.
Releio romances de Machado. Sinto-me tão íntimo dele, ao ponto de suprimir sobrenome. E assim como no século XVII leitores chamavam Marco Túlio Cícero de Túlio, tamanha a intimidade com o orador, eu me refiro a Machado de Assis apenas como Machado.
Não sinto saudades do século XIX, nem do XX, que foi XIX também, ou ainda foi XIX. Romances de Machado são romances de Machado. Não vou discutir aqui, nem agora, aquela velha história canônica que diz que ele tem duas fases, nem que neles, nos romances, as ideias estão fora de lugar ou que no Brasil do tempo de Machado as ideias estavam fora de lugar. Não vou discutir, nem debater isso agora.
Vou apenas dizer do sabor que é ler romances de Machado. Vou dizer que é prazeroso ser leitor dele no século XXI, ainda XIX. Há olhos abundantes, não apenas dissimulados. Há olhares, não apenas trocados, ao alto e ao baixo. Há imitação. Sobretudo emulação. Há verossimilhança e morte dela em Machado. Há o fantástico, antes mesmo de Borges. Antes mesmo de Virginia Woolf.
Releio romances de Machado e fico novamente encantado com sua prosa seca, enxuta, breve, lacunar, beirando a Tácito. Releio e revejo lugares por onde andei quando fui pesquisador residente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Por onde estive andando quando para o Rio viajava mensalmente a trabalho. D’ Ouvidor, travessa e rua; Gonçalves Dias; Sete de Setembro; Catete; Largo do Machado. Até a Biblioteca Nacional, onde trabalhei por um ano, revejo relendo Machado. Revejo uma casa de mate aqui, uma sorveteria ali. Uma confeitaria. Outra. Todas com produtos da doçaria conventual portuguesa, como as ferraduras, de massa leve de pão doce com recheio de creme de ovos; os pasteis de nata; de amêndoas; os mil folhas; os jesuítas; as súplicas de coco; os ovos moles; o pão-de-ló; os travesseiros, as queijadas. Confeitarias me levam à mudança de placa, aquela da ironia com a República.
Não fico seco, não fico ácido. Irônico? Cínico? Talvez. Mas não, talvez, para além do que já sou, já era, já fui. Releio romances de Machado pensando que deveria escrever sobre eles outra coisa, não isto. Deveria me ater a Machado e suas referências cínicas, nas matérias sociais, como catolicismo, seu rito, sua moral; definições dos papéis sexuais; propriedade privada, agregados, escravos, família patriarcal, liberalismo; legalidade, legitimidade, poder, direito, política, exclusões de direitos; sociedade escravocrata, Império; barbárie; corrupção; violências; positivismo, cientificismo, evolucionismo, ordem e progresso, biologia, medicina etc.
Os romances de Machado diferenciam-se pelas singularidades, por meio das particularidades (não que tivessem matérias realistas ou românticas), suas particularizações de objeto, de escrita; no modo de construção da escrita é que diferem, não nas matérias, acrescidas agora àquelas, hábitos cariocas do século XIX, letras antigas gregas, latinas, os ingleses, franceses e espanhóis dos séculos XVI, XVII e XVIII, Shakespeare, Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, La Bruyère, Xavier de Maistre, Cervantes, Calderón de la Barca; romancistas do XVIII, Defoe, Swift, Richardson, Sterne etc.
Quem sabe lembrar que Machado foi leitor de Luciano de Samósata do Banquete, falso banquete? Das narrativas verdadeiras, que de verdadeiras não têm nada; dos Diálogos dos mortos; do “Maníaco de Atenas”, que Machado parece ter se mirado no exemplo. Mirem-se no exemplo do Maníaco de Atenas.
Acontece, e isso acontece, que tenho estado com ele, com Machado. E este estado tem me deixado não crítico em demasia, paradoxalmente, mas impressionista. A impressão, por exemplo, relendo Esaú e Jacó é a de que o Brasil é por demais supersticioso. E que o fla x flu que vivemos hoje vem de longe.
Brás Cubas me faz reler a sociedade de privilégios, política da amizade que estudei quando tive que enfrentar textos dos séculos XVII e XVIII do Estado do Brasil. E, como me sinto íntimo, chamo as Memórias Póstumas de Brás Cubas de apenas Brás Cubas.
Ler Machado é ler e reler e se ver e se rever. Não é simplesmente identitário. É acurado, apurado, certeiro. Tenho pensado na coragem. E, ao mesmo tempo, na conivência.
Por outro lado, naquilo que pode o texto, o romance, o gênero. Ser combativo como os meninos secundaristas de São Paulo? Do Brasil todo? Aqueles que ocuparam as escolas, em greve, desafiando o Governador, o Secretário da Educação do Estado? O ministério?
Ser incisivo como os dentes dos poderes eleitos, constituídos, usurpados, violados? Ser incisivo como oponente?
Fico pensando nos jogos de Machado. Nos jogos que ele deve ter visto, vivido, aceitado, rejeitado. E nos jogos que propôs na trama de seus romances. Djalma Lima Espedito estudou, na USP, justamente os jogos em Machado. Ele enumera os principais jogos encontrados no romance de Machado, assim como descreve os modos de representação do lúdico na construção daquilo que ele, Djalma, chamou de “imaginário”. Djalma Lima Espedito defende que “o jogo participa da ficção machadiana ora como objeto cenográfico, ora como metáfora das relações sociais. Além disso, o jogo pode dinamizar a interação das diversas instâncias ficcionais de produção e recepção”.
O leitor atendo, e/ou interessado, pode encontrar a tese de Djalma no catálogo digital da USP. Estou impressionista, como disse. E secundarista. É com “Coração de Estudante” que me movo.
Fico pensando que sempre foi tradicional a leitura de Machado no ensino secundarista. Por razões tortas talvez sempre foi obrigado a ser lido. Mais do que por ser o suposto maior escritor brasileiro, ele deveria ser lido sempre por ser crítico e, principalmente, por ser divertido. Ele não precisou ser reconhecido na América do Norte, nem virar best-seller em Nova Iorque para sempre ser lido. Para ter que sempre ser lido.
Não quero descambar em receita. Nem reivindicar nada agora. Bastam-me as patrulhas. Hoje, começa a abrir um dia belíssimo.
O plano, o desejo, o objetivo é continuar a reler Machado. Apaixonado não por ele e sua crítica. Apaixonado pelos meninos secundaristas. Eles não precisam de Machado. Eles precisam do livre exercício de exercer sua meninice. E ter lugares para ler, escrever, desenhar, pintar, construir. Ter condições de viver e não serem apenas divididos em ciclos, etapas, estatísticas. Ter escolhas seria uma boa utopia para os meninos secundaristas. Ter utopia seria uma boa para mim, que releio romances de Machado sem saudosismo. Os meninos secundaristas mereciam uma proximidade com Machado, não o ensino precário, remoto, transmitido em baixa velocidade de dados.
Eis a folha de Colombo! Ou a folha de Machado. Eu fui fotografar minhas impressões ao reler Machado e o vento deslocou-o tal qual a folha no parapeito da janela de meu quarto. Por sorte, meu dedo foi rápido e consegui este registro. Parece que coloquei a folha em pé e fotografei, não é, leitor?
Uns colocam o ovo em pé. Outros, a folha. Secundaristas nos provam não serem secundários. Machado sempre necessário.
[Uma primeira versão deste texto foi escrita, em 2015, quando os alunos do Ensino Secundário, em São Paulo, ocuparam várias escolas (os edifícios) da Rede Estadual de Ensino, como forma de protesto e resistência. Mobilizados contra a proposta de “reorganização do Ensino” do governo de São Paulo, os secundaristas ocuparam uma a uma das Escolas Estaduais. O movimento se alastrou pelo Brasil. Reescrito, hoje, este texto é também água de reuso, na medida em que a luta agora é contra a precarização do ensino público e contra o descalabro que tem sido a ausência de políticas públicas no MEC.]
Créditos na imagem de capa: Machado de Assis, aos 25 anos – Foto: Joaquim José Insley Pacheco/ABL via Wikimedia Commons/ Reprodução. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/machado-de-assis-foi-contabilista-mostra-pesquisa/
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Eduardo Sinkevisque
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