Tenho um grande amigo, o Mago dos Graves, que escreve textos muito, muito bons! Eu leio sempre e fico com a vontade de escrever algo também. Queria escrever um texto mais pessoal, não acadêmico, mas é difícil escapar ao que vou chamar de “encucamento” da academia. Entre esses receios, resolvi, então, tentar. Já havia um tempo que ficava com vontade de escrever sobre a minha infância. Não como um ponto final ou uma ruptura, mas, na altura onde quase chego a quatro décadas de existência, pensei esse exercício de escrever como um tributo ou um agradecimento por ter sido uma criança feliz.
Durante a Pandemia de COVID-19, uma das coisas mais importantes que podia fazer era, de alguma forma, revisitar o passado, meu passado. Nessas visitas, percebia o quanto pequenas coisas, como fotos, ferramentas e brinquedos, eram pontos onde se cruzavam diversas linhas. Espécies de nós. E puxa! Como esses nós ficaram bem nítidos! Certo dia, resolvi limpar o maleiro do guarda-roupas e eis que encontro uma velha caixa de papelão com meus antigos brinquedos. É estranho como o plástico resseca, a borracha fica grudenta e os mecanismos não funcionam mais. Os brinquedos não servem mais para brincar. Porém, a tarefa de colar, montar, consertar e procurar peças de reposição na internet se tornou muito forte, impulsionada por um desejo de voltar ao lar, pagar uma dívida com a generosidade dos meus pais, me voltar a um tempo feliz que passou muito rápido. Sei lá, algo assim…
Na caixa tinha de tudo um pouco: Batman, um Cavaleiro dos Zodíaco, o Ninja Jiraya da TV Manchete, uma Tartaruga Ninja, um dinossauro a pilha e os meus favoritos na época: Comandos em Ação. Eu sei, eu sei, eu sei: fiz o dever de casa no curso de Contemporânea II. Comandos em Ação constituem uma linha de brinquedos ou miniaturas de soldados e seus antagonistas – o grupo terrorista Cobra – que celebra o Imperialismo e o Militarismo Estadunidense dos anos 80 e início dos 90. Mas sua história vai mais longe. As primeiras ideias e esboços para brinquedos militares do pós-Segunda Grande Guerra davam expressão ao triunfalismo do Tio Sam. Mais do que isso. O brinquedo era um negócio lucrativo, bem lucrativo, onde os executivos “puxavam tapetes”, enganavam e faziam o impossível para tornar a guerra consumível para as crianças. A série da Netflix sobre a História dos Brinquedos me leva a uma conclusão simples: na produção e venda de brinquedos, sempre há brigas e ressentimentos por dinheiro. E o Capitalista da Hasbro sabia e sabe que brinquedo gera uma quantidade incalculável de dinheiro. Com as figuras de ação dos G.I. Joe não foi diferente.
Comandos em Ação foi – ainda é – em diversos sentidos, um brinquedo colonizador. Mas hoje quero me deter no nó onde o brinquedo colonizador encontra a criança brasileira do bairro Floramar. Minha mãe era auxiliar de Dentista – leia-se “faz tudo”: empregada, faxineira, office boy, cobradora, babá. A ideia de desvio de função, nos anos 90 e no início dos anos 2000, era bem elástica, não obstante a legislação dizer o contrário. Havia um momento muito especial no ano, onde ela recebia o PIS (Programa de Integração Social). Na época eu não entendia muito o que era, mas sabia que era um dinheiro extra. Me lembro também da apreensão, pois havia ano que ela recebia e havia ano que ela não recebia. Hoje entendo que o patrão não cumpria as obrigações trabalhistas da forma correta e a relação que se traduzia no “é da família”, junto com o medo do desemprego, abafava qualquer possibilidade de reação ou reivindicação. Reformas e mais reformas trabalhistas deixavam a situação mais incerta e eram a cereja do bolo podre do trabalhador. Eu sentia como séculos de Escravidão, Ditadura e um Conservadorismo hipócrita misturado com um Liberalismo safado fizeram um Brasil nojento, preconceituoso, escravocrata, cruel – não é sem raiva que escrevo essas últimas linhas. Há algum tempo, Jair disse que é difícil ser empresário no Brasil. Pois bem, ser funcionário é muito mais difícil. Posso afirmar isso, pois já partilhei da marmita da mãe, já atravessei a Afonso Pena, na altura da Professor Moraes, às sete da manhã, não sem antes passar debaixo da catraca do antigo e sempre lotado 5507.
Por que falei do PIS? Sim, 1991 foi um desses anos felizes onde o esperado dinheiro foi concedido. Recordo de irmos a um supermercado, o Mineirão, e lá estava o S.T.A.R ou, a “Nave”. Eu queria muito aquele brinquedo. Via as propagandas na TV, lia os quadrinhos, assistia aos desenhos na TV Colosso da Rede Globo. Já estava fisgado pelo desejo de consumo. Minha mãe me apresentou uma escolha: a Nave ou o tênis Kichute que eu precisava para a escola. A escolha era óbvia para mim: a Nave, pois bem. Com uma cara de poucos amigos, minha mãe me deu a “Nave”. Fomos para o consultório e lá eu comecei a montar o brinquedo. Quanto ao tênis, pelo milagre econômico dos meus pais, o Kichute novo também estaria nos meus pés. Eu já tinha um boneco da Linha que ganhara no Natal de 1990. Cara, eu me diverti muito no quintal de casa com aquele brinquedo. Os colegas de escola também tinham e, após os trabalhos em grupo, juntar uma ou outra pedra para o seminário de Geografia ou fazer vulcão de barro, sempre sobrava tempo para Joes e Cobras lutarem entre si para salvar, a partir do Floramar, o planeta. Na maioria das vezes, chegava do Tristão da Cunha, trocava o uniforme e o dever de casa pela nobre tarefa de salvar o mundo.
Entre 1990 e 1995 mais brinquedos do Tio Sam vieram. Havia datas específicas para pedir: Dia das Crianças, Natal, Aniversário. Ainda lembro o nome de cada um deles, 8 bonecos e dois veículos. Recordo também a bronca que meu pai me deu quando, em 1993, a minha professora de matemática e vizinha dedurou meu mau comportamento ou minha pouca disposição para os estudos. Estudar era chato e ser vizinho de professores não tornava a vida mais fácil. Hoje, do outro lado da sala de aula, sou grato aos professores vizinhos. Quanto ao meu pai, ele era um caminhoneiro aposentado pelas Farinhas Vilma. Um homem já idoso muito simples, mas que reconhecia o valor dos estudos. Da mesma forma que eu gostava de madrugar com minha mãe, adorava “ir receber” com o meu pai. Receber é um verbo que sintetiza o momento de ir ao Banco BEMGE, enfrentar uma longa fila, conversar com idosos e perceber a frustração do meu pai ao ver o quanto, entre Collor e FHC, a aposentadoria se tornava cada vez menor. Como o meu amigo Mago diz, “o Brasil não é para principiantes” e, naquele momento, eu sabia que não era, também, para auxiliares de dentista e motoristas aposentados das Farinhas Vilma. Mas receber era o momento, também, de comer pastel, beber Água Tônica ou Guarapan em alguma pastelaria nas proximidades da Praça Sete. Me lembro de uma na Espírito Santo, outra na Afonso Pena, uma outra na Rio de Janeiro, enfim… Havia espaço também para ir às lojas Brasileiras e em uma das últimas memórias do “ir receber”, meu pai me deu um boneco, um Cobra, que tinha os cabelos brancos, como os dele.
Meu pai faleceu em 1997 e fico pensando como o senhor que teria hoje 107 anos, que votou, na eleição presidencial de 1994, no Brizola e não no FHC, pensaria do Brasil de hoje. Nos últimos anos de vida, ele não votava mais, pois estava muito desapontado com o país. Se contentava, em cada eleição, escrever nas cédulas com sua letra de alfabetização elementar: “Brasil, covil de ladrões, governado por canalhas”. Entre mansões, rachadinhas e cambalachos com verbas públicas para vacinas, ele lamentaria não poder digitar o lema de sua indignação na urna eletrônica. Porém, mesmo sendo um brasileiro simples, muito simples, não daria ao filho historiador esquerdista o desgosto de ser um velho minion. Bolsominon, não…
Mas voltemos aos Comandos em Ação. A linha de brinquedos começou o seu ocaso entre 1995 e 1996. Eu percebia como as fôrmas dos bonecos eram as mesmas, só mudavam a pintura e o nome. O Capitalismo se agarra em tudo, engana com tudo. Os “puxões de tapete” se faziam sentir nos pés dos executivos responsáveis pela linha. O mundo mudara. Em 1997, quando fui menor aprendiz, no SENAC, tive meu primeiro acesso a um computador. A Livraria Leitura, junto com meus colegas de SENAC e do Instituto de Educação me abriam as portas para o RPG de mesa. Em 1994, já começara com o Hero Quest e passei, três anos depois, para os livros Mestre, Monstro e Jogador do Advanced Dungeons and Dragons. Filmes fracos de 2009 e 2013 tentaram se aproveitar da nostalgia dos G.I. Joes e impulsionaram o relançamento fracassado dos brinquedos. Nostalgia e consumo estão bem ligados, desde uma experiência pandêmica de montar e colar brinquedos velhos, até o esforço para lucrar com o que já fora lucrativo. Aliás, o título deste texto poderia ser “A economia do trabalhador brasileiro e as estratégias de consumo das empresas de brinquedo – dois pontos – entre os anos oitenta e o início do século XXI” (risos)…
Como eu disse, o mundo mudara e mudara rápido. O lugar do brinquedo colonizador dos anos 80 e 90 é, agora, na minha casa, a memória e as caixas de papelão. Uma hora ou outra, para uma visita ou outra, posso abri-las e mexer nos nós que ligam a criança do Floramar com a História do Mundo nos anos 80 e 90 ou contar sob a perspectiva infantil acerca da economia do trabalhador brasileiro do final do século XX. De fato, é difícil escapar ao “encucamento” acadêmico, mesmo em um texto tão pessoal e tão disperso. Isso soou, a propósito, com outro título de trabalho de historiador (risos, novamente) – não resisti. Só uma correção, agora, passei os brinquedos para duas caixas de plástico…
Créditos na imagem: Fotografia do arquivo pessoal do autor.
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