O cosmopolitismo-caipira de Poços de Caldas

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José Custódio dos Santos era carreiro, fazendeiro e meu bisavô. Vulgo Zé Luís Bastiana, era dessas figuras estranhas, nascidas nos tempos do “imperadô” e que viu inúmeras coisas: abolição de escravos, advento da república, chegada de rádio, da TV e, por último, e não menos importante: mulheres de calças e minissaias. Viveu quase um século e, por isso, lá em casa, diziam que o danado do velho tinha era o corpo fechado!  Começou a vida de camarada, ganhou lugar de confiança em Fazenda de família rica, ajuntando dinheiro e indo depois trabalhar por conta própria.   Comprou sede e fixou-se ele no Ribeirão dos Quatis, propriedade distante de Poços de Caldas, apenas meio dia de viagem no lombo de burros ou um dia inteiro no carro de bois. Na referida propriedade, residia não só ele, mas morava também a Dona Gasparina (esposa e matriarca de sete filhos),  os camaradas, agregados, meeiros e animais. Ali plantava-se e criava-se um pouco de tudo: do milho ao feijão, das vacas às cabras e galinhas. Papai me conta da fartura dos passeios dele em criança por lá: “eram reses e reses no curral! Porcos e mais porcos no mangueiro! Doces e mais doces, fervendo em tachos de cobre na cozinha!”. O quarto da vó era quase secreto e bem módico, tinha um catre de palha, uma canastra em folhas de lata e uma  penteadeira velha encimada por retroses e carretéis de linha, frascos de colônia e imagens de santo de todo feitio – trazidas, provavelmente, de uma romaria à Aparecida do Norte ou herdadas de mães e avós. Faltavam lá eram os coloridos para as bocas e unhas femininas, mas isso era para elas “coisa de mulher perdida”. Minha bisa, beata e resistente às modernidades e “tentações” do mundo resistiu a eles até o fim da vida, nunca “encarnou” seus lábios. Esse quarto que tão amiúde acima descrevi, abria-se em duas folhas de porta para um cômodo sem janelas e  mais recôndito ainda, era a alcova das meninas –  hoje tias velhas (finadas, que Deus as tenha!)  e uma ainda solteirona.  Somando-se esses quartos a mais dois (o dos viajantes, sem contato com o interior da casa – onde dormiam os viajeiros andantes-  e o dos meninos, onde havia mais três catres) e mais uma sala, tinha-se a sede dos Quatis, caiada de branco com janelas azuis.

Nesse lugar, tirando-se  uma exceção ou outra, a se contar nos dedos, era bem tranquilo e monótono, quase protocolar, o  cotidiano diário da fazenda não mudava muito  e, de  lá, saía-se apenas para algumas poucas e esporádicas coisas: as missas de domingo na cidade de Caldas – onde tinham casa, as semanas Santas, algum velório, batizado ou casamento e com constância um pouco maior: para se levar mercadorias ao antigo Mercado Municipal de Poços de Caldas (hoje Casa Carneiro)– e, deste último afazer, só se ocupavam os homens. Era a década de 1930.

Poços por esse tempo consistia em algo bem menor do que hoje e era um desses lugares acontecidos apenas uma vez: tinha-se ali águas termais, sulfurosas e quentes e era “temperada” com ares frescos da Montanha, possuindo verdadeiros luxos e requintes do cosmopolitismo da belle époque tupininquim: hotéis e piscinas, cafés e teatros, livrarias, casas de jogo e até prostitutas, ou cocotes, que falavam francês. A cidadela apelidada por Olavo Bilac de Fonte de Juventa era pacata e pequena durante a maior parte do ano, porém, enchia-se no verão: na chamada época das águas, virava palco de gente elegante que para o coitado  e ensimesmado  do  vó Zé Luis, que lá ia de carro de bois –  e ainda mal acostumado ao regime de 15 de novembro- “era  gente da corte!” E, de fato, tinha-se lá por nessa época figurões remanescentes da elite imperial. Eram janotas e ricaças decadentes portando títulos sem nenhuma valia ao lado de cantores como as irmãs Miranda (Carmen e Aurora), políticos do feitio de Rui Barbosa, Rodrigues Alves Campos Sales, Afrânio de Melo Franco e escritores como Olavo Bilac e Mário de Andrade. Até eclesiásticos do alto escalão católico faziam figura por lá. O João do Rio, cronista famoso e verdadeiro dândi republicano, era um desses. Chegou até a escrever um livro fictício que se passava nas ruas da pitoresca estância de verão, o  Correspondência de uma Estação de cura.

Vivia por ali também nessa época, mas em outros meios e grupos, Antônio Cândido de Mello e Souza, o futuro mestre e ensaísta – referência acadêmica e intelectual de todo o país.  Filho de um médico responsável pelas Thermas de Antônio Carlos e rapazola por esse tempo, era personagem ainda incógnito dessa Poços de Caldas de início do Século XX, quase mítica e imaginária para os dias atuais. Morava para as bandas da Matriz em casa antiga e de esquina. Vivia ao que se conclui por suas entrevistas e depoimentos a “roer livros”. A cidade era assim para ele “associada de modo essencial à ideia de livro e de leitura”. Tanto, que, em uma de suas memórias datilografadas em máquina de escrever e hoje acessíveis a dois cliques no computador, ressalta um desses pontos da cidade que a ele eram centrais: a livraria vida social.  Lugar de “singularidades”. Mas, deixando isso um pouco de lado, é fato que Antônio Cândido depois se mudaria de lá e estudaria a nossa literatura bem como a figura do caipira, desses iguais ao meu bisavô Zé Luis, que carreava bois, enquanto o futuro intelectual lia.

Nunca conheci nenhum dos dois pessoalmente, nem Antônio Candido, nem meu bisavô, porém tornei-me admirador de ambos. O literato e mestre ensaísta, eu o conheci pela academia, pelos livros e entrevistas. Vô Zé Luiz, eu só o acessei pelas memórias dos meus parentes. Às vezes, pergunto-me em pura divagação imaginativa se ambos não teriam se cruzado, mesmo sem se conhecerem lá nessa Poços de Caldas do século passado, em meio a caipiras e de gente do grand monde. Hoje, quando vou a Poços, a cidade não é mais aquela de nenhum dos dois. A cidade deles é letra morta, reminiscência amarelada. Na de hoje, não desfilam grandezas, mas apenas problemas de qualquer cidade média brasileira: está inchada e cresce a esmo, vende-se de tudo e ostenta pobreza e mazelas.

Na mobília dos hotéis, nas estátuas marmóreas das fontes, dorme hoje o brilho de uma elite corrupta republicana. Não se fala mais francês nos cafés, mas nas ruas ainda se ouve o “R” retroflexo tão forte e típico da região.  Poços de Caldas era assim e continuou assim:  caipira igual ao fazendeiro Zé Luís Bastiana e cosmopolita igual ao Antônio Cândido.

 

 

 


Créditos na imagem: Antonio Candido no jardim da casa em Poços de Caldas, década de 1970 / Arquivo IEB-USP – Fundo Antonio Candido.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Isaías Gabriel Franco

Graduado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto - Instituto de Ciências Humanas e Sociais; especialista em Música e interdisciplinaridade pelo Departamento de Música do Instituto de Filosofia, Arte e Cultura- IFAC - UFOP. Atualmente cursa Filosofia e mestrado acadêmico em História pela mesma instituição.

1 comment

  1. Wilson 12 fevereiro, 2020 at 23:09 Responder

    Que belo texto! Sei onde é a casa que foi de Antônio Cândido! Morei ali perto na minha infância/adolescência. Em minha última ida a Poços, passei por diversas vezes em frente e notei os muros altos a protegê-la. Acho que pertence a família Miguel. Li um ótimo texto do Luís Nassif aqui na Internet que fala da casa.
    Abraço!

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