X Miséria

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Dele eu sei pouco para contar. Sei que quando cheguei no colégio ele já administrava a cantina. Lembro que usava uns óculos de lentes fundo de garrafa. Isso tornava seus olhos redondos maiores do que deveriam ser. Lembro que costumava pentear os cabelos negros, como as asas da graúna, para trás, usando Gumex ou outro tipo de brilhantina. Trajava terno preto, camisa branca, gravata lisa preta e um avental, semelhante ao guarda-pó dos professores. Chamava-se Zé, Seu Zé. José de quê nunca soube. Para a gente era o Zé da cantina.

Eu vinha de outra escola de inclinação ou inspiração religiosa, católica apostólica romana, mas não beneditina. Eu vinha dos salesianos de Santa Teresinha. Na cantina dos salesianos era um moço magro, sem óculos e cabeludo que atendia junto a seu pai na cantina de lá. Eu tinha saudade do gosto engordurado do sanduíche de mortadela na chapa com vinagrete, que minha mãe aprendeu a imitar. O moço cabeludo se chamava Carlos. Não sei o nome do pai dele, mas me lembro de que era um senhor careca.

No São Bento, na cantina, para além dos mistos e hambúrgueres, havia o X Miséria, que de X (cheese) não havia nada. Era um pão de hambúrguer na chapa acrescido de uma camada de maionese. Era a coisa mais engordurada que eu já tinha comido na vida, mas era barato, mas era gostoso e os moleques e meninas se acotovelam na hora do recreio para pedir e comer o lanche.

Era dar o sinal do recreio, a gritaria começar, e as crianças e adolescentes começarem a correr rumo ao pátio, rumo à cantina. Antes do recreio no Colégio de São Bento, eu tive meus dias de recreio no Externato Santa Teresinha. O São Bento ficava (e fica ainda) no Largo São Bento, no centro de São Paulo. O Externato ficava (e ainda fica) no bairro de Santa Teresinha, ao lado do colégio das freiras, perto da praça onde tem a igrejinha.

Antes ainda de ser aluno no Externato Santa Teresinha, eu tinha sido aluno de Jardim e de primário no Externato Chapeuzinho Vermelho. Formei-me no primário lá. Com direito a medalha e diplominha. Tenho esse diploma até hoje. E a memória de não gostar de ir àquela escola. E de chorar por ficar longe da mãe. E de chorar quando a professora faltava. Lembro-me também da hora do soninho, que era uma soneca à tarde, depois de brincar, de tomar lanche e de escovar os dentes.

Do Chapeuzinho Vermelho também me lembro de que tomei parte na fanfarra da escola. Tocava prato. A gente ensaiava na parte da frente da casa. Na formatura, houve um desfile de moda. Fui modelo. Mas não sem antes quase desistir. Coisas de Dudinha.

Para voltar ao lanche, ao recreio, no Chapeuzinho, a gente fazia roda, cantava e depois comia. Quando fui para o Santa Teresinha, estranhei na hora do recreio, porque, no primeiro ano primário, o lanche a gente comia sozinho, não tinha roda, nem musiquinha.

Eu conto isso meio rindo, meio com lágrimas nos olhos. E quando a gente vai cantar a musiquinha?

Não tinha musiquinha. Foi duro aprender isso. Mal sabia quantas durezas ainda viriam, todas as durezas nas medidas das fases vividas.

Até que eu soubesse cantar, com Adoniran, que Deus dá o frio conforme o cobertor. A hora do recreio no Santa Teresinha, no primeiro dia de aula lá, foi minha Iracema. Mas quem atravessou contramão fui eu.

Do Santa teria mais alguns episódios, umas peripécias, como as com sorvete de pistache, a história das idas à mesa da professora. Ficam para outra crônica. Está é X Miséria.

O X miséria do Zé da cantina do São Bento tinha o pão quente, casca torrada e miolo macio e úmido, untado de maionese caseira. Eu o comia bebendo refrigerante. Pegava o meu e desocupava a moita. Seu Zé dizia para os meninos se amontoando no balcão:

– Já comeu? Vai comer? Já pagou? Vai pagar?

Esse já comeu ficou em meus ouvidos até hoje. E aquele jeito brejeiro do dono da cantina.

Eu comia, limpava a boca e as mãos, embora menino. Eu cumpria essa higiene porque, ao invés de correr, brincar ou jogar nos minutos restantes do recreio, eu abria um livro.

Eu me alimentava de X Miséria naqueles dias. E era por Clarice Lispector fisgado. Começara a ser seu leitor de toda a vida. Pego que estava por Um Sopro de Vida. Livro dificílimo para um menino. Mas para quem sabia o valor de um X Miséria, aquele livro não era ovo, nem galinha. Aquele livro era pinto.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Um dia dentro do dia. Foto: Chronosfer. Disponível em: https://chronosfer2.wordpress.com/2020/09/

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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