Como qualquer conceito de grande porte, da mesma maneira que ESTRUTURA, SISTEMA, SOCIEDADE, CAPITALISMO, o termo LUGAR DE FALA é trabalhado muitas vezes de uma forma irresponsável, como se fosse alguém usando um equipamento tecnológico sem ter lido as instruções ou sequer experimentado o produto. Muitos esquecem de que todos esses conceitos carregam uma bagagem enorme de pesquisas, eventos, aulas, assim como milhares e milhares de artigos e debates, não sendo apenas palavras, mas redes materiais carregadas de suor, sangue, brigas, frustrações, testes, e tantas outros detalhes. Esse meu ensaio de hoje é uma crítica ao uso superficial desses conceitos, principalmente o de lugar de fala, o que jamais significaria uma negação de sua importância e de seu caráter revolucionário. Infelizmente, como em qualquer outra área de conhecimento, os amadores são os que comandam o jogo, definindo os contornos de tudo ao redor. Cheios de pressa, além de uma falta de cuidado fora do normal, oferecem um retrato bizarro das ciências sociais e humanas, assim como dos seus conceitos e critérios fundamentais, quase sempre distorcendo e simplificando a rede institucional de fundo. É em homenagem aos milhares de pesquisadores que participam dessa rede, e em nome da própria UFBA, enquanto um espaço de criatividade e inovação científica, que esse texto é dedicado.
A primeira coisa que se aprende em cursos de psicologia, além de disciplinas de humanas e sociais, é aquilo que foi chamado de “paradigma cartesiano” (Foucault). “PENSO, LOGO EXISTO”… todos já ouviram essa frase em algum momento, seja na escola, na casa de um amigo, no programa de tv, embora poucos tenham dissecado sua estrutura interna. Seguindo o raciocínio, se “Penso, logo existo”, o pensar é condição de existência, certo? Mas para isso acontecer, esse pensamento precisa ser claro, limpo e confiável, ao definir os contornos da própria existência.
Segundo esse paradigma cartesiano, a mente humana é apresentada como transparente a si mesma, o que significa um acesso direto aos meus próprios conteúdos internos, assim como suas interrelações. Quando esse modelo é criticado, como acontece na chegada das ciências humanas, no século XIX, além da própria psicologia, isso significa que a mente perde sua transparência, ganhando uma sombra ao redor, assim como percebe em si mesma traços estranhos, dúvidas e uma inconsciência nos bastidores. Ou seja, graças à quebra do paradigma cartesiano, apresentado no final do livro “As Palavras e as Coisas”, a mente perde o seu selo de confiança, sendo atravessada agora por dimensões sombrias, ocultas e contraditórias, além de um manto de nebulosidade.
Por conta da tradição fenomenológica, reforçada com os trabalhos do filósofo Martin Heidegger no século XX, o paradigma cartesiano é restabelecido, embora apareça com novos contornos. Ao invés do PENSAR como um parâmetro autotransparente, colocamos a EXPERIÊNCIA e a PRÁTICA como critérios de acesso privilegiado ao mundo e a nós mesmos, numa espécie de neo-cartesianismo. Segundo fenomenólogos, principalmente o primeiro Heidegger, aquele do “Ser e Tempo”, com destaque aqui ao seu famoso “caso do martelo”, a prática e a experiência são entendidas como passaportes de entrada no mundo, o que podemos chamar de um espaço “ontológico”. A experiência, nesse sentido, é entendida como transparente a si mesma, nada mais do que uma ponte de acesso ao que existe e ao que nós somos. Ou seja, teorias distorcem, reprimem, simplificando tudo o que tocam, mas o corpo e as experiências, ao contrário, libertam, conectam e revelam. Essa abordagem pode ser vista em correntes como “interacionismo simbólico”, “etnometodologia”, “virada ontológica”, “sociologia existencial”, além de muitas outras tendências. Diante disso, existem seis motivos que me levam a suspeitar do uso irresponsável de conceitos como “lugar de fala” ou frases como “precisamos ler autores negros”:
1- Seus defensores oferecem argumentos e teses como se fossem revolucionários, como se marcassem uma fronteira óbvia e profunda, quando, na verdade, reproduzem uma tradição de pensamento clássica, como a própria fenomenologia e sua defesa da EXPERIÊNCIA como acesso privilegiado ao mundo. Essa premissa fenomenológica, ou seja, essa defesa da experiência como critério ontológico, é acolhido até mesmo por pessoas que jamais ouviram falar dessa tradição de pensamento, ou sequer leram os autores desse universo filosófico. De qualquer forma, suas premissas passeiam pelos corredores universitários, atravessando aulas, artigos, palestras, encontros, ainda que muitos não percebam seus contornos.
2- A experiência existe, e é um conceito importante, sendo usado por mim dezenas e dezenas de vezes ao longo dos meus artigos e aulas, mas partir da ideia de que ela é transparente a si mesma, acaba sendo exagerado demais, quase um retrocesso, até porque métodos do século XIX como a empatia (Dilthey) e a introspecção (Wundt) perderam há muito tempo o brilho. É quase como apostar no argumento de que um indivíduo depressivo precisa ser atendido por um psicólogo que passou por depressão, caso contrário o atendimento seria prejudicado. Em outras palavras, um filósofo negro supostamente capta melhor o racismo do que um branco por conta da EXPERIÊNCIA do racismo, indicando que o indivíduo possui um acesso privilegiado a si mesmo e aos outros que compartilham desse pacote experiencial. Mais uma vez entendemos a experiência como um passaporte confiável de contato com a realidade, uma ponte direta ao meu universo interior, assim como ao mundo externo. Até mesmo abordagens contemporâneas dentro da antropologia, como a virada ontológica de Viveiros de Castro, seguem por um caminho parecido, entendendo o nativo em termos fenomenológicos, principalmente porque ele “vive” e “experimenta” sua própria realidade. Ou seja, os antropólogos, com suas teorias e critérios, distorcem o mundo, enquanto os nativos, no fluxo do cotidiano, ao contrário, se conectam com as coisas de uma forma direta, em que o “corpo” e a “experiência” são passaportes espontâneos e confiáveis.
3-Muitos que defendem frases como “precisamos ler autores negros”, ou conceitos como “lugar de fala”, confundem muito facilmente EPISTEMOLOGIA e ÉTICA. Essas frases e conceitos precisam ser defendidos, e sempre carrego isso comigo enquanto professor de esquerda, mas não porque oferecem um acesso privilegiado ao mundo, como se fossem mais verdadeiras. Não é esse o critério que deveria ser usado, por mais conveniente que pareça. O critério sempre foi político, ético, envolvendo a diversidade e as vantagens de um espaço acadêmico diverso, assim como seus desdobramentos pragmáticos. O fato de ser um escritor negro, vítima de racismo, não faz dele mais ou menos verdadeiro, embora potencialize a diversidade do espaço acadêmico e seja indispensável na criação de um ambiente mais plural e acolhedor. Ou seja, o critério é ÉTICO, envolvendo a inclusão, a democracia e o respeito, e não EPISTEMOLÓGICO, como se envolvesse verdades ou falsidades. Além do mais, a experiência não é um critério tão confiável assim, principalmente por conta de seu nível de opacidade, conveniência e até conservadorismo. Se ela fosse tão autotransparente, e tão confiável, ninguém precisaria de psicólogos e psicanalistas. A existência desses profissionais sinaliza o fato de que o campo das experiências não é um terreno tão óbvio, claro e seguro como muitos acreditam.
4- Como reflexo de um amadorismo irritante, muitas vezes essas frases e conceitos são usados como formas de anular o debate e a reflexão. Em outras palavras, se eu afirmo que determinado autor é “branco, europeu e homem”, isso, automaticamente, garante a mim um suporte crítico, uma vantagem inquestionável. Na maioria das vezes nem sequer preciso argumentar, mostrando as falhas na análise ou as lacunas no discurso do outro, já que as palavras “branco, europeu e homem” seriam autoexplicativas. O debate acadêmico se reduz a argumentos Ad Hominem, quase sempre envolvendo o caráter do pesquisador e não aquilo que é dito e feito. Essa estratégia retórica, de maneira geral, não é apenas amadora, apressada e pouco científica, como também é infantil, quase um mecanismo de defesa aplicado por pessoas desesperadas.
5- Se você não tem a EXPERIÊNCIA das minorias, se você não vive como um negro, gay, mulher, proletário, você não tem direito a opinar ou sua opinião é deficiente, como se faltasse algo. Engels, um empresário do século XIX, companheiro de Marx em seus escritos, escreveu um livro chamado a “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, em 1845. Livro incrível, com uma sutileza fora do comum, mas temos aqui um problema… Ele não era um proletário, um trabalhador como os outros. Kafka escreveu um ensaio chamado “A Toca”, onde conta a história de um animal indefinido, mas cheio de energia. História incrível, com uma sutileza fora do comum, mas temos aqui um problema… O autor não era um animal. Em outro conto, chamado “Odradek”, Kafka narra as aventuras de um objeto esquisito, difícil de definir, como é de costumes no universo kafkiano. História incrível, com uma sutileza fora do comum, mas temos aqui um problema… O autor não era um objeto. Dostoiévski escreveu um livro chamado “Bobok”, onde narra a experiência de pessoas numa espécie de limbo, logo após suas mortes. Livro incrível, com uma sutileza fora do comum, mas temos aqui, mais uma vez, um problema… O autor não estava morto. O fato desses escritores não terem a EXPERIÊNCIA do proletário, do animal, do objeto e do morto reduz o brilhantismo dessas obras? Elas são menores ou deficientes por falta da EXPERIÊNCIA?
6-Partem da ideia de que indivíduos experimentam o mundo “enquanto negros” (gays, mulheres, trabalhadores, etc), como se a experiência fosse acessada dessa forma, ou seja, de um jeito fragmentado. Na verdade, temos aqui uma má compreensão desse conceito fenomenológico. A experiencia é sempre dada em um nível pré-reflexivo e não conceitual. Nesse sentido, antes de “ser negro”, “mulher”, “gay”, ou qualquer outro critério ou rótulo, eu estou lançado em um mundo complexo e indefinido. A experiência não existe de uma forma fragmentada, mas em uma totalidade de fatores. É apenas no momento da crítica, da reflexão, das palestras, eventos, que essa experiência é nomeada e abstraída. Mas enquanto vivência, ela é vivida como um todo, como um conjunto de fatores, como uma rede de afecções. Logo, falar de uma “experiência do negro ou de ser negro” deve ser entendida como um exercício político, ético, ou seja, sendo uma frase pragmática que gera efeitos no mundo e desperta novas possibilidades, mas isso não significa que descreve uma essência ou uma dimensão óbvia do meu mundo experiencial.
Como disse no começo, esse ensaio não foi bem uma crítica ao conceito de “Lugar de Fala”, apesar do título provocativo, mas uma crítica ao amadorismo, aos que simplificam muito o espaço das ciências sociais e humanas, negando o trabalho de milhares e milhares de pesquisadores e pesquisadoras ao redor do Brasil. Precisamos honrar a rede complexa que nos ampara, a incrível rede de profissionais, pesquisas, aulas, palestras, eventos, encontros, congressos. E só existe uma forma de fazer isso… É PRECISO INSERIR ESSA REDE NA LINGUAGEM, JAMAIS SIMPLIFICANDO NOSSO RACIOCÍNIO, JAMAIS SE RENDENDO A FÓRMULAS PRONTAS E INTERPRETAÇÕES DE BOLSO.
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Excelente ensaio! Parabéns por ajudar a mim – homem branco e hetero – a situar melhor minhas reflexões sobre o conceito de lugar de fala. Um abraço, Adriano
Acredito que cabe uma observação: “pensar”, na célebre frase de Descartes, não é “condição para a existência “, como dito no artigo, mas apenas “prova” da existência do sujeito que pensa. Dessa forma o filósofo pretendia superar a dúvida cética e estabelecer uma verdade incontestável.
Rogério
Texto muito útil para os debates em torno do tema.
Sem sombre de dúvida, antes de tudo falar da condição de ser negro, dos preconceitos que as pessoas de pele negra vivenciam é um posicionamento ético, mas não deixa de ser, também, uma questão de luta epistemológica. Pois, sabemos haver uma epistemologia dominante, euro-estadunicentrica, que silencia outros tipos de saberes; configura em um processo de epistemicídio e de desperdício de experiências, conforme defende Boaventura de Souza Santos. Contudo, penso que um ponto a ser considerado seja o fato de que mesmo que pessoas não negras estejam aptas a falar sobre pessoas negras e suas experiências com o racismo, conforme defende Foucault, (em Microfísica do Poder. Se não me falhe a memória) elas não precisam de intérpretes. Por isso é, também, um posicionamento ético e político, constituirmos espaços para que essas pessoas falem sobre suas experiências e sobre qualquer outro assunto. Pois, o que ocorre, e isso é facilmente constatável, é o oposto. Isto é, pessoas de pele negra, sobretudo as mulheres, mas também membros dos povos indígenas, pessoas trans etc. Não dispõem das mesmas oportunidades de acesso aos espaços (nem mesmo o espaço acadêmico) para, como dizia Paulo Freire, dizerem as suas palavras.
Muito interessante o ensaio, desperta uma série de questões necessárias ao debate acerca do tão polêmico, e como o próprio professor diz, tão mal interpretado conceito de Lugar de Fala. 🙂